. Operando na lógica do discurso médico, a instituição psiquiátrica se coloca em um
lugar de saber sobre os seus pacientes. Objeto deste saber, os pacientes são inseridos na lógica das discussões clínicas e dos casos sociais. Caso Social - termo proposto por Carlo Viganó (VIGANÓ, 1999), para fazer oposição ao caso clínico; é a construção baseada num saber outro que não o do paciente, aponta para o manejo institucional. Enquanto o caso clínico é o resultante da construção do próprio sujeito, de seu trabalho subjetivo.
. Como tentativa de romper a lógica das discussões clínicas e dos casos sociais inaugura-se no IRS(1) há quatro anos um espaço de conversa, uma Sessão Clínica, onde o saber que se privilegia é o saber do paciente. Operando com a Construção do Caso Clínico(2) a Sessão Clínica do IRS aponta a construção do próprio sujeito a partir de sua singularidade.
. Neste texto pretendo desenvolver a idéia de Construção do Caso Clínico em contraposição à de Discussão do Caso Clínico a partir um breve relato de caso.
. Trago o caso de Gustavo para pensarmos uma lógica de trabalho que foi apreendida através da singularidade do sujeito tendo em vista a Construção do Caso Clínico. Gustavo é um sujeito psicótico, de 28 anos, solteiro, filho caçula de uma prole de três, pai falecido. Inseriu-se na rede de saúde mental aos seis anos. Desde a infância apresentou dificuldades de relacionamento, não se interessando por brincadeiras e permanecendo distante das pessoas. Criava constantemente personagens e estórias de super-heróis, mantendo um interesse fixo por contá-las e desenhá-las. Acreditava que seus desenhos um dia seriam publicados, quando então se tornaria rico e famoso. Como uma forma de circular pela cidade, Gustavo entrava em estabelecimentos comerciais oferecendo seus desenhos às pessoas para que elas pudessem comprá-los. Desta forma Gustavo se sustentou até os 28 anos sem nenhuma internação psiquiátrica.
. Em 2003 Gustavo é encaminhado para a internação psiquiátrica por um serviço aberto da rede de saúde mental, ao qual estava inserido desde os dezoito anos, com a indicação clínica para o uso de eletroconvulsoterapia – ECT. Esta indicação é feita por tratar-se de um paciente que apresentava efeitos colaterais importantes com o uso de antipsicóticos típicos e atípicos(3) e por apresentar um quadro grave de ansiedade, exaltação do humor, acompanhado de freqüentes episódios de agitação psicomotora. Este quadro aponta para o limite da conduta médica à medida que as indicações medicamentosas eram sempre insuficientes para a melhora do paciente. Desta forma inaugura-se a sua primeira internação psiquiátrica, ordenada pelo discurso médico, esta por sua vez dura cerca de oito meses. É importante demarcar que este não é o tempo do paciente, mas da equipe. Tempo tencionado por uma resistência da equipe na desconstrução de uma saber.
. Não foi sem dificuldades que uma outra lógica pode dar lugar àquela em que o tratamento de Gustavo era anteriormente conduzido. Não se trata de excluir o discurso médico ou de prescindir da prescrição medicamentosa, mas de levar em conta, como desenvolverei adiante, aquilo que o saber já constituído exclui: o que há de mais singular no paciente.
. Para esta elaboração, tomarei como referência o seminário teórico ocorrido na Sessão Clínica do IRS em junho de 2002. Neste seminário Wellerson Alkmim propõe três pontos para pensarmos a diferença da Discussão do Caso Clínico para a Construção do Caso clínico: o lugar do profissional na equipe; a posição investigativa e o ato clínico. (ALKMIM, 2002)
1. LUGAR DO PROFISSIONAL NA EQUIPE
. Na discussão do caso clínico o que impera é o discurso do saber já constituído, da investigação científica e da moral sobre o caso. Ostenta-se a lógica de quem sabe mais pode mais. Prevalece o status do profissional ora representado pela figura do coordenador, ora de um médico ou de qualquer outro técnico que se coloque neste lugar de saber. A discussão caminha para a universalização, o enfoque dado é o saber sobre o paciente. Os técnicos atuam de acordo com a sua especificidade, com o seu entendimento sobre o caso, e com um saber pronto. Não há uma lógica única para o caso.
. Já a construção do caso clínico implica em compor a história do sujeito, partindo do princípio que a equipe que o acompanha não sabe nada a seu respeito. O lugar que cada técnico ocupa na relação com o paciente é interrogado pela própria equipe. A decisão de uma condução não é tomada pela maioria, não se trata de uma decisão democrática, a autoridade clínica passa a ser o saber do paciente, este é o saber focalizado na construção do caso clínico.
. Antônio Di Ciaccia nos lembra que o paciente é o verdadeiro mestre de ensinamentos sobre o saber e sobre a estrutura do inconsciente. (CIACCIA, 1999)
. Trata-se de um trabalho de recolhimento das passagens subjetivas que possam apontar a relação do sujeito com o Outro, assim como pontos de desestabilização, desencadeamento, repetição, permitindo a equipe que o acompanha operar em uma lógica de trabalho na qual o próprio paciente nos dirá qual é a direção de sua cura. Neste sentido todos os técnicos passam a operar de forma integrada.
2. POSIÇÃO INVESTIGATIVA
. A discussão do caso clínico propõe a investigar as causas, formas de apresentação e intensidade dos sintomas, enfocando novamente o comportamento. O objetivo é eliminar a sintomatologia da doença buscando aproximar o sujeito da normalidade.
. Na construção do caso clínico as causas, formas de apresentação e intensidade dos sintomas também são importantes, mas não nos atemos somente a estes pontos. Segundo Carlo Viganò, construir o caso clínico é colocar o paciente em trabalho, registrar os seus movimentos, recolher as passagens subjetivas que contam, para que a equipe esteja pronta para escutar a sua palavra, quando essa vier. É compor a história do sujeito, de sua doença delimitando assim os fatores que favoreçam o início da doença, buscando reconhecer os pontos mortíferos, os pontos de repetição, assim como os tratamentos realizados, e ainda as saídas que o próprio sujeito tem desenvolvido para lidar com seu sofrimento. A construção serve para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso. É necessário reativar a relação do sujeito com o Outro, de tal forma que essa relação possa se sustentar na realidade.
. A partir da história do sujeito, apreendemos a sua relação com o Outro, como ele interpreta o mundo. O objetivo é intervir na relação do sujeito com o Outro, intervindo no seu modo de gozo, possibilitando assim, alguma mudança subjetiva.
. Desta forma, os efeitos colaterais causados pela medicação reproduzidos por Gustavo tomam outra dimensão quando são entendidos como uma maneira de prender a atenção dos profissionais. Os tremores eram freqüentes e com eles vinham as agitações e a falta de implicação diante dos atos. Tais episódios demonstravam um contentamento em ocupar um lugar de destaque, sustentado em suas atuações e em frases repetidas: o meu caso é grave, é muito grave. Do destaque ao ataque surgia o sujeito e algumas perguntas para a equipe do IRS. O que fazia este sujeito aparecer? O que motiva suas agitações? Do que ele sofria?
. A partir das frases repetidas Gustavo é incentivado a localizar o que antecede os seus atos.
. Neste contexto cabe grifar a fala que escapa em uma das entrevistas realizadas com sua mãe. Dona Maria diz: “deixei de ter um homem para ter Gustavo”. Esta frase permite a equipe escutar a lógica das respostas dadas pelo paciente frente ao desejo do Outro. Gustavo faz a todo momento um pedido de aproximação excessiva. Podemos verificar isto quando ele quer a todo custo se colocar em destaque. Ao mesmo tempo, se o Outro responde o colocando neste lugar isto é insuportável para ele e no momento seguinte desencadeia uma crise como uma tentativa desesperada de distanciamento.
. Testemunhamos inúmeras tentativas de separação feitas por Gustavo em resposta ao Outro materno. Uma delas se deu após liberação da equipe para passar um final de semana em casa. Gustavo deixa o hospital em companhia da mãe e retorna dois dias depois, conforme o acordo feito, porém desacompanhado. Chega contando que dormiu uma noite fora de casa, pois havia reencontrado uma namorada antiga. Gustavo não foi o primeiro a dar esta notícia à equipe. Sua mãe já havia se adiantado e em conseqüência deste adiantamento ele tem o pátio externo cortado e sua restrição à unidade indicada.
. Num ato de punição a equipe intervém a partir do discurso moral e não do cálculo clínico, que neste caso, seria sustentar junto ao paciente sua opção de afastar-se o mínimo que seja desta condição de cola com a mãe.
3. O ato Clínico
. Na discussão do caso clínico o que prevalece no ato clínico é a história factual do sujeito. Ele é um esquizofrênico, logo necessita desta ou daquela medicação para redução do sintoma, tem habilidade com o desenho então vamos encaminhá-lo para algum lugar que isso possa ser trabalhado, quem sabe uma exposição...
. A construção do caso clínico valoriza, no ato clínico, a história subjetiva. O que irá orientar, estabelecer a condução da escuta é menos a sintomatologia, a conduta ou o comportamento do paciente, mas tudo que se possa extrair de sua história. Gustavo nos diz que aos seis anos via o incrível Hulk na parede, via os monstros que lutavam com o Ultraman, via o Ultraman desfigurado... “Quando eu desenhava as figuras eu as soltava para fora, para fora da mente”. Soltava as alucinações para fora da mente. Gustavo conta-nos que conseguia dar um tratamento para aquele real que o invadia. Passava-o para o papel como uma tentativa de simbolização.
. Se trabalhássemos na lógica do caso social poderíamos incentivar Gustavo pela via da arte, já que o mesmo possuía grande habilidade para isto. Sendo assim, poderíamos ajuda-lo a promover uma exposição dos seus desenhos, como era, a princípio, um pedido seu. Entretanto o que o sujeito nos aponta é o insuportável que aparece cada vez que seus desenhos são colocados em exposição. O lugar de objeto era logo assumido por Gustavo e como resposta a este lugar decorriam os episódios de “agitação psicomotora” seguidos de algumas palavras. “Vocês me fazem de objeto, querem explorar os meus dons...” Tirar da mente e por pra fora as alucinações traz para Gustavo um certo apaziguamento diante do real que o invade. Percebemos que o desenho tem uma função importante em sua história, mas colocá-los em exposição é como se fizéssemos um convite ao real, a devastação, devido a relação transitivista que Gustavo tem com o que desenha. A partir deste ponto a equipe cuida para que Gustavo não se coloque em exposição. Seus desenhos
são trabalhados nas oficinas terapêuticas, mas com o cuidado de não ser colocado em um lugar de destaque.
. Gustavo, atualmente realiza seu tratamento em um serviço de saúde mental, em regime de permanência dia. Podemos dizer que a circulação pela cidade hoje é feita por Gustavo, não sem barulhos, mas com alguma medida: a do seu tratamento!
O que se tenta, com esse procedimento, é introduzir a dimensão do trabalho feito por muitos(4) , proposta pouco sustentada nas instituições, em função da dificuldade de se operar com sua lógica. A tendência institucional é responder com um saber pronto, um saber sobre o paciente, bastando enquadrar aquele caso em um dos diagnósticos já conhecidos, com a proposta terapêutica decidida a priori. Há um privilégio dos discursos em que a subjetividade se encontra excluída.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALKMIM,Wellerson. (2002) “Discussão e construção do caso clínico” In: Seminário- sessão clínica IRS - Belo Horizonte: mimeo.
ALKMIM,Wellerson. (2003) “Construir o caso clínico, a instituição enquanto excessão”. Almanaque - Psicanálise e Saúde Mental. ano 6, no.9 Nov. Belo Horizonte: EBP-MG
DI CIACCIA, Antônio. (1999) Da função do Um à prática feita por muitos. Curinga - Psicanálise e Saúde Mental, no.13, Set. Belo Horizonte: EBP-MG
VIGANÓ, Carlo. A Construção do caso clínico em Saúde Mental. Curinga – Psicanálise e Saúde Mental,. n.13, set. Belo Horizonte: EBP – MG |