. O Centro de Referência em saúde mental infanto-juvenil de Betim – Cersami (hoje um Capsi(2)) se estruturou a partir de algumas premissas básicas: atender as crianças e adolescentes do município dentro dos princípios do Sistema Único de Saúde-SUS , do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA e do movimento da luta anti-manicomial, bem como, abordar o sujeito a partir de sua singularidade(3). Coloca como prioridade o atendimento aos quadros de psicose, autismo e neuroses graves. Pensado como serviço de portas abertas, o acolhimento é um dos pilares de sustentação do projeto e seu modelo assistencial vem sendo construído através de constantes discussões e avaliações da nossa prática clínica.
. Desde o princípio se colocou como necessário a construção de um dispositivo para acolher os pacientes que demandavam atendimento em regime de urgência, nos momentos de crise. Entendíamos ser necessário assistir intensivamente a esses pacientes, fazer uma observação após a medicação ou mesmo retirá-los de uma situação desencadeadora da crise. Assim, foi a partir dessas demandas da clínica que a permanência-dia(4) do foi criada em maio de 1998.
. O funcionamento temporário do Cersami em um espaço físico partilhado com um Caps(5) III (Cersam Betim Central) possibilitou o estabelecimento de um novo padrão de serviço em rede, com esse último funcionando como retaguarda em diversos momentos. Naquele período foi necessário que alguns dos nossos pacientes adolescentes ficassem em permanência noite ou dia no Cersam Betim Central.
. A mudança do Cersami para a sede própria deixou em evidência três fatores: a existência de uma grande clientela infanto-juventil grave e desassistida , a disposição da equipe para atender esses pacientes em crise e as dificuldades da organização do serviço ( recursos humanos insuficiente, falta de medicamentos, leitos improvisados, não havia uma sala de enfermagem estruturada, nem mesmo materiais como seringa, luvas, roupas de cama...). Tais dificuldades estruturais foram sendo superadas e a pd foi organizada no próprio Cersami, tornando-se imprescindível no tratamento dos pacientes. Temos hoje um recurso que busca preservar as especificidades da clínica com a criança, mas ainda está aquém do que pretendemos.
. Na história da construção da pd talvez o mais importante seja destacar que desde sua implantação buscamos afirmá-la como um dispositivo clínico, complementar ao atendimento individual. Seu objetivo é possibilitar o acolhimento da crise, o ajuste do medicamentoo, o esclarecimento do diagnóstico. bem como, contribuir com a construção de cada caso. Com o intuito de repensar a sua organização e a sua clínica realizamos em 2002 uma pesquisa sobre o perfil de seus usuários. Queríamos saber mais sobre quem era o usuário da pd. Naquela época, setenta e seis adolescentes ou crianças haviam passado por esse dispositivo. O aumento desse número de usuários têm sido motivo de preocupação, uma vez que tratam-se de crianças e/ou adolescentes com quadros graves, sejam eles psicóticos ou neuróticos. Outro dado dessa pesquisa que tem nos preocupado é que 41% desses pacientes já haviam retornado à pd, confirmando a gravidade desses quadros.
. De maneira geral podemos destacar quatro pontos dessa pesquisa: 1) Sobre os motivos que levaram a indicação do paciente para a pd – verificamos que iam desde agitação psicomotora, hetero e auto-agressividade, observação para esclarecimento de diagnóstico , tentativa de auto-extermínio, ajuste de medicamento até casos de adoecimento mental associados ao uso abusivo de drogas e/ou situação de risco pessoal e social; 2 ) sobre a idade do paciente – constatamos que no momento da realização dessa pesquisa ( e também hoje) todos os usuários da pd. eram adolescentes, sendo que historicamente apenas 11% dos que passaram por ela eram crianças; 3) sobre a hipótese diagnóstica: observamos que prevalece na pd os usuários psicóticos (70%) ; e 4) Sobre a pd como um dispositivo de tratamento: notamos que a ela deixou de ser um recurso somente para o momento agudo da crise, pois 60% dos pacientes inseridos nesse dispositivo estavam nele há mais de 6 meses.
. Com relação ao fato de todos os usuários da pd hoje serem adolescentes fomos remetidos as seguintes perguntas: - por que é na adolescência que os sujeitos surtam tanto? O momento da adolescência reatualiza questões que desencadeiam surtos? Ou seria por que, diferentemente das crianças , onde a família consegue ter maior controle sobre as mesmas, na adolescência isto torna-se mais difícil devido a auto e hetero-agressividade?
. Em função das constantes atuações de auto e hetero-agressividade dos adolescentes, como podemos trabalhar a nossa capacidade de suportar um episódio de agitação psicomotora, de oferecer e buscar alternativas junto com o paciente para essa necessidade de se quebrar e quebrar as coisas ao redor , já que a palavra não vem e não se consegue elaborar essas questões? Como podemos intervir sem recorrer ao recurso da contenção , que deveria ser o último a ser usado ou ser utilizado apenas quando for necessário?
. Considerando que a maioria dos pacientes da pd são psicóticos; que esse dispositivo tem deixado de ser um recurso somente para o momento agudo da crise ; e considerando as questões que os pacientes nos trazem faz se necessário também entendermos: - por que esses adolescentes estão fora do laço social? Qual é a lógica que está operando nesse sujeito?
. Levantamos ainda como questão se a condução do caso inserido na pd , não estava ficando por demais com o técnico de referência, sem uma construção e uma articulação com a clínica da pd. Então nos demos conta que a clínica feita por muitos não é a clínica feita por cada um isoladamente. Nossa avaliação era que estava criado um impasse teórico e clínico, visto que a condução do tratamento acontece no ambulatório e a pd estava ficando como um espaço anexo ( ou à parte). Questões apontadas pelo paciente tais como a necessidade de permanecer por um tempo e em um lugar onde o tempo de chegar , o tempo da atividade e o tempo do almoço - momentos que não acontecem no consultório – não estavam sendo trabalhadas pelo técnico de referência e pela pd de maneira articulada. Questões essas fundamentais, visto que podem possibilitar um tipo de intervenção clínica para o trabalho de elaboração do psicótico na sua relação com o outro.
. Frente a essas reflexões nosso grande desafio passou a ser: como pensar a clínica e a organização da pd de modo que ela pudesse propiciar uma situação favorável para colocar o paciente em condições de trabalho psíquico, de produzir , visto que é nesse momento que se abre possibilidades para ele dizer sim ao laço social?
. Foi então que em 2002 organizamos uma equipe específica (que incluía assistentes sociais, auxiliar de enfermagem, enfermeiros, psicólogos e terapeutas ocupacionais) para atuar como referência diária na pd. Entendíamos que o papel central dessa equipe seria então de intervir no cotidiano da permanência-dia, anotar falas, registrar movimentos, gestos, e chamar a atenção para passagens subjetivas valiosas. Nossa idéia era que assim poderíamos colaborar com a construção do caso a caso, a partir das reflexões decorrentes das falas e das situações que os pacientes traziam para o espaço da pd. A partir desse momento, a clínica da pd começou a constituir-se também através do estabelecimento de alguns projetos que foram configurando-se a partir do interesse dos próprios pacientes.
. Atualmente esses projetos são: as assembléias, oficina de culinária, espaço musical , projeto circulando pela cidade, espaço de auto-cuidados e de bijouterias, e as atividades esportivas, desenvolvidas em pareceria com a Secretaria de Esportes e Lazer do Município. Lembrando que alguns desses projetos já existiam antes desse período e que outros estavam suspensos, mas nosso esforço nesse momento era implementá-los a partir de uma clínica, do caso à caso.
. Mas, afinal qual é o nosso entendimento da clínica? A palavra clínica vem do grego Kliniké e é relativa a leito. De acordo com o psiquiatra e psicanalista Carlo Viganó a “ clínica é o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito. É um ensino que não é só teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito.”(VIGANÓ, 1997, p.2) Assim, podemos dizer que a tentativa da pd é tomar como direção de atuação o trabalho no um a um. Resumindo, nossa proposta é intervir junto aos usuários da pd, ou seja, junto aos pacientes que demandam cuidados intensivos a partir do caso a caso, do um a um.
. Quanto aos projetos desenvolvidos na pd pode-se dizer que de um modo geral as assembléias têm entre seus objetivos discutir as questões apresentadas pelo paciente, questões essas que na maioria das vezes envolve seu cotidiano, sua relação com o serviço, as atividades que gostariam de participar, a organização do próprio serviço, bem como, a formação de atitudes e de uma postura política enquanto cidadãos.
. O projeto circulando pela cidade, por sua vez, surgiu da vontade dos próprios usuários transitarem nos diferentes espaços da cidade. Todas as suas atividades são decididas e discutidas com os usuários que participam do projeto. Em linhas gerais, a proposta do projeto circulando é “acompanhar de forma sistematizada o paciente nos diferentes espaços da cidade. Tal acompanhamento tem como diretriz o seu projeto terapêutico. A idéia é utilizar o circular pela cidade como uma estratégia para que a criança e/ou adolescente possa descobrir outras formas de relações com o mundo, que não o isolamento, o desânimo, a agressividade ou a passagem ao ato.” (BONTEMPO, 2003, p.251)
. E aqui , vale destacar, que o próprio sentido etimológico do termo circular inclui entre seus significados: “rodear”, “ “girar” “ andar em volta” e “ fazer círculo ou roda”. ...” (HOUAISS & VILLAR, 2001, p.727) Assim, podemos dizer que uma das dimensões do projeto é intervir e acompanhar em determinado momento esse andar, esse girar, esse rodear daqueles que muitas vezes se “encontram isolados em suas casas, não freqüentando escolas e nem espaços públicos de lazer ...” (SILVA, 2003, p. 228)
. A função dos técnicos nesse projeto é, então, estabelecer-se como uma ponte entre o paciente e a cidade, de modo a contribuir com seu processo de autonomia e inclusão social. Neste sentido, o ponto de partida dos técnicos é o próprio paciente, sua história, seus interesses, os significantes que constituem seu mundo, enfim, sua cultura.
. O espaço de auto-cuidados tem como proposta trabalhar atividades como escovação, banho, limpeza, corte e pintura de unhas, lavagem de cabelo, escova de cabelo, maquilagem, dentre outras ações, de uma maneira articulada com o projeto terapêutico do paciente. Temos clareza que esses cuidados são extremamente delicados e que devem partir do paciente. A idéia é que o desenvolvimento dessas atividades acorresse somente a partir da aceitação do paciente mediante o convite da equipe. Entendemos de apenas dessa forma tais atividades poderiam estabelecer possibilidades para trabalhar a relação do usuário com o próprio corpo, visto que através delas o usuário pode tocar seu corpo, ver ou mesmo falar dele. A mediação da palavra neste momento poderia, então, estar colocando para o sujeito, um corpo a ser apropriado pelo ser social.
. A oficina de culinária também é um dos projetos da pd que os pacientes aderiram muito bem, pois eles já vinham demonstrando interesse por atividades de culinária. Seu objetivo é promover uma melhor apropriação do espaço físico pelos usuários, melhorar a relação pessoal entre eles, (visto que a atividade de culinária desperta a afetividade e aproximação entre os indivíduos), desenvolver as habilidades para tarefas domésticas e resgatar os cuidados com o corpo e com o ambiente.
. O espaço musical e a oficina de bijouterias também surgiram a partir do interesse dos adolescentes. No caso do espaço musical a proposta é proporcionar aos pacientes da pd um tempo em que pudesse escutar música, cantar, dançar. Enfim, um espaço onde se pudesse falar sobre música ou até mesmo fazer música, na medida que os usuários da pd chegaram a elaborar um rap, que foi apresentado na comemoração da luta anti-manicomial no município de Betim.
. Como podemos observar os projetos da pd são diversos, estão distribuídos na sua rotina e há uma equipe para trabalhar cada um deles. Mas, talvez aqui o mais importante seja destacar o fio condutor desses projetos, ou seja, o entendimento que para o psicótico existe uma palavra que comanda. E o que vemos é o paciente como um objeto excluído. Mas para o técnico de referência e também para a equipe da pd ( ainda que de lugares diferentes) o paciente é um sujeito e deve ser escutado. Neste sentido, lembro aqui a fala do psicanalista Antônio Benetti em supervisão à equipe de saúde mental de Betim: devemos ter o cuidado para o saber dos projetos não excluir o saber dos pacientes. Se isto ocorrer vai reforçar a posição deles como objeto. Se o paciente não tem chance de expressar seu saber ele passa ao ato. Por isso temos que dar a palavra ao paciente. E no caso do psicótico é exatamente nesse momento que surge a possibilidade dele criar metáforas para substituir a forclusão. Lembrando que no psicótico essa metáfora é um saber louco, delirante. E é por isso, que a direção da cura do psicótico está nele mesmo, e sendo assim, é ele quem vai apontar qual é a sua metáfora.
. Nessa perspectiva, o delírio do psicótico aparece como algo positivo, porém o paciente delirante fica muito sozinho, pois não consegue fazer laço social. Nesse sentido, Lacan afirma que a metáfora delirante não basta. Para ele, o paciente tem que ir além dessa metáfora delirante sem a passagem ao ato. Nessa via entendemos que também os técnicos na permanência-dia, a partir do projeto terapêutico do paciente tem um papel a desempenhar na função de secretariar o paciente de tal modo que ele revele uma outra face que não seja passar ao ato. Ou seja, uma face que permite o paciente a fazer um sintoma, que o possibilite a entrar no social. E por que fazer um sintoma é importante nesse caso? Porque os “ sintomas não são outra coisa que os diferentes modos de adaptar-se a um rompimento com a realidade; de compensar o desencadeamento efetivo da psicose...” (VIGANÓ, 1997, p.2) Isto significa que os sintomas refletem a tentativa do sujeito liberar-se da dependência decorrente da forclusão. Assim, o ponto é saber qual o eixo ou qual é o gancho que vai dar suporte ao paciente.
. Para concluir, destacamos que nosso entendimento é que também a pd enquanto um dispositivo complementar ao atendimento individual tem a função de abrir possibilidades para o paciente construir o laço social. E por fim, nossa avaliação é que os projetos da pd só farão sentido se contribuírem com a estabilização do paciente e para que isto ocorra, tanto as intervenções junto aos usuários da pd, como seus projetos, devem estar articulados com o saber do paciente enquanto um sujeito. Para nós não adianta partir de um projeto ou de uma oficina se não houver um enlace com o saber do paciente.
. Fragmento de um caso
. Para ilustrar essa função da pd enquanto um dispositivo complementar ao atendimento individual citamos aqui o caso de Josias, 15 anos, paciente com hipótese diagnóstica de psicose. Ele foi indicado para pd devido a um início de surto psicótico, com risco de passagem ao ato. Inicialmente Josias mostrou-se extremamente resistente ao atendimento individual e a pd. A sua inserção nesse dispositivo só foi possível a partir do momento que ele encontrou nas assembléias de usuários um grupo com o qual estabeleceu uma aproximação, abrindo possibilidades para a sua estabilização. O grupo permitiu a Josias suportar a presença do Outro de forma menos invasiva.
. A assembléia é definida pelos próprios pacientes como “ o lugar de falarmos de nossas coisas e do que vamos fazer na semana”; ou mesmo como um “ espaço onde um grupo se reúne para falar de um assunto ou vários assuntos.” Em uma de nossas assembléias Josias diz: “ Estou aqui para tratar”; “ eu não desejo para ninguém ficar lavando mãos ou tomando banho todo o tempo.” Diante de sua fala outro paciente diz que o seu problema era ficar escutando vozes lhe chamar, mas que achava isto normal. Nesse momento, Josias se posiciona dizendo: “ eu também ouço vozes, vejo coisas, mas para mim isto não é normal.”
. Por esse relato percebemos claramente, que a assembléia, enquanto um dos dispositivos da pd aparece como um lugar onde Josias e demais pacientes sentem-se seguros e confiantes para tomar a palavra e opinar sobre a sua situação. No caso de Josias, notamos que a assembléia vem permitindo uma forma de laço com o outro, algo que Josias tem muita dificuldade para estabelecer. No seu imaginário, a opinião do outro sobre sua pessoa pode desencadear um processo de agressão incontrolável, colocando em risco a integridade física daqueles que o rodeiam. Diante da possibilidade de ser criticado, sua tendência é afastar-se antes da suposta crítica ou agredir violentamente àqueles que ele julga rejeitá-lo. Avaliamos, assim, que pela maneira que Josias se coloca nesse espaço e pela forma que ele funciona, a pd através das assembléias têm proporcionado a ele uma suplência para a estabilização do seu quadro (ainda que frágil, mas é a que é possível nesse momento).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANTUNES, M; BONTEMPO, V. L; CHAVES, R. N & SILVA, M. E. (2002) “Permanência-dia/Cersami: Impasses e possibilidades” , Betim (mimeografado).
BONTEMPO, V. L. (2003) “ Projeto Circulando pela Cidade.” In: GUERRA, A. M. C. & LIMA, N. L. (orgs) A clínica de crianças com transtornos no desenvolvimento – uma contribuição no campo da Psicanálise e da Saúde Mental. – Belo Horizonte: Autêntica:FUMEC, p. 251.
CERSAMI. (1996) Projeto de Saúde Mental Infanto-Juvenil de Betim, mimeografo.
HOUAISS, A. & VILLAR, M S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.I Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 727.
NÚCLEO DE TRABALHO DA PERMANÊNCIA-DIA. (2003) Avaliação da Permanência-dia. Betim. (mimeografado)
SILVA, M. E. (2003) ”Saúde Mental infanto-juvenil: a experiência do CERSAMI”. In: GUERRA, A. M. C. & LIMA, N. L. (orgs) A clínica de crianças com transtornos no desenvolvimento – uma contribuição no campo da Psicanálise e da Saúde Mental. – Belo Horizonte: Autêntica:FUMEC, p.228.
VIGANÓ , C. (1997) Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise. “A construção do caso clínico em saúde mental.” , Belo Horizonte. |