ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 06 Setembro de 2008 à Dezembro de 2008
 
   
 
 
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Inclusão e (des)inserção em Saúde Mental

 
   
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Equipe CliniCAPS

 
 

Antônio Márcio Ribeiro Teixeira
Wellerson Durães de Alkmim
Aline Aguiar Mendes
Anamáris dos Anjos Pinto
Cláudia Maria Generoso
Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Maria Carolina de Andrade Freitas
Maria Inês Meireles Junca
Renata Dinardi Rezende de Andrade
Simone de Fátima Gonçalves

maleclinicaps.com
 
     
     

. Resumo: O artigo aborda criticamente os mecanismos de inclusão propostos pelos dispositivos de saúde mental, que buscam oferecer ao paciente as condições de cidadão, em conformidade com a expectativa igualitária da oferta de bens relativos ao que se habitualmente se entende por cidadania, afim de estabelecer, a partir do termo de inserção, um processo que vai além dessa expectativa. A inserção implicaria uma relação definida pelos meios possíveis de negociação do sujeito com Outro, em cujo saldo se manifesta não apenas uma transformação do modo anterior de vínculo do paciente, como também uma modificação essencial da parte do Outro com o qual o sujeito vem compor, ilustrada na discussão de dois casos clínicos.
. Palavras-chave: inclusão, inserção, saúde mental.

. Abstract: The article is a critical approach of the including mechanisms offered by mental health dispositives, which seek to provide citizens' conditions to the patients, as stated by their egalitarian expectances in the supply of conditions according to their usual idea of citizenship, in order to establish, by means of the term of insertion, a process that goes beyond this expectation. The insertion would involve a relationship defined by the possible ways of dealing with the Other, whose balance is reflected not only by a transformation of the previous mode of attachment of the patient, but also a essential modification regarding the Other with which the subject composes, as noted in the discussion of two clinical cases.
. Key-words: insertion, inclusion, mental health

 

Pois veja só que coisa mais insignificante você me considera! Em mim você quer tocar; pretende conhecer demais os meus registros; pensa poder dedilhar o coração do meu mistério. Há muita música, uma voz excelente, neste pequeno instrumento, e você é incapaz de fazê-lo falar. Pelo sangue de Cristo!, acha que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser – pode me dedilhar quanto quiser, que não vai me arrancar o menor som...
 
(Hamlet, Ato III, Cena 2)

. Ao comentar, a propósito do nascimento do asilo, o célebre gesto em que Pinel desacorrentava os loucos, Foucault não se privaria de nos indicar, sob esse aparente propósito de libertação, o movimento que faria da alienação mental objeto de um programa estatal de controle através da inclusão. Se a cura do louco, para Pinel, consistia na sua estabilização em um tipo social aprovado e reconhecido, era porque se encontrava, no horizonte do tratamento, a perspectiva de uma conformidade aos tipos sociais. No lugar, portanto, da exclusão gerada no início da era clássica, que visava o confinamento indiferenciado daqueles que se desviavam da norma social, o seqüestro do século XIX almejaria à normalização dos indivíduos pela inclusão nos grupos, formando-se assim uma rede institucional de controle intra-estatal (FOUCAULT, 1996, p. 113). Se este século assistiu ao surgimento das ciências do homem, foi na medida em que nele se gerou um saber – ou poder epistemológico - mediante a prática de observação, de registro e de comparação dos comportamentos humanos que objetivava, em última instância, à classificação dos indivíduos nos grupos sociais definidos pelo Estado (IDEM, p. 125).

. Se a possibilidade, portanto, de se engendrar uma organização classificatória da loucura derivou de seu isolamento social via regime asilar, o poder médico que a delimitaria se valeu, nesse momento, de sua autoridade ao estabelecer tais tipificações, dando origem à figura de uma objetividade nascente que, no asilo, passou a ser determinada. Pois sejam quais tenham sido os seus propósitos, o fato é que o dispositivo asilar gerado nas sociedades disciplinares do século XIX foi palco, pela primeira vez, de uma experiência controlada da doença mental, à qual daria lugar à constituição da psicopatologia que hoje herdamos, cujo objeto seriam os tipos clínicos nesse espaço definidos.

. Nascida, portanto, nesse contexto de separação e controle disciplinar da loucura, complexificado, é claro, pelo uso cada vez mais amplo de psicotrópicos na condução do tratamento, a reforma psiquiátrica brasileira, fortemente inspirada no movimento da psiquiatria democrática italiana, foi o fruto de uma tentativa de dar a esse problema uma resposta baseada na inclusão social do louco e na proteção de seus direitos fundamentais. Essa proposta se concretizou na oferta universal de dispositivos de atenção psicossocial, criados em substituição ao modelo asilar, segundo um programa calcado nas noções de cidadania e contratualidade social como motores da inclusão. Mas, a despeito da validade incontestável desses princípios, sua aplicação não basta para suscitar, por parte daqueles que compartilham desse programa, uma inserção efetiva na cena de inclusão social para eles criada. Conforme tentaremos demonstrar, a partir da discussão de dois casos clínicos, a possibilidade efetiva da inserção depende fundamentalmente da oferta não somente de serviços de inclusão, mas do lugar de construção de um sujeito social capaz de transformar não somente seu modo de ligação com o Outro social, como também o próprio campo do Outro no qual ele irá se inserir.

. Essencialmente distinto, portanto, da inclusão, vem a ser o processo de inserção , cuja semântica a experiência, que hoje exercemos, da psicanálise aplicada nas instituições, permite-nos finalmente habilitar: a inserção é um termo que passa a significar, a nossos olhos, um processo que se demarca desse modo de inclusão no campo do Outro calcado nos mecanismos de contratualidade social. Pois ali onde a inclusão, via contratualidade, propõe dar ao paciente as condições de cidadão, em conformidade com a expectativa igualitária da oferta de bens relativos ao que ela própria entende por cidadania, a inserção depende, para se constituir, de um processo que vai além dessa expectativa. Sua visada implica antes, por essência, uma relação definida pelos meios possíveis de negociação do sujeito com o Outro, representado pelo modo de organização social do discurso ao qual ele responde, mas em cujo saldo se manifesta não apenas uma transformação do seu modo anterior de vínculo, como também uma modificação essencial tanto da parte do sujeito quanto da parte do Outro com o qual esse sujeito vem compor.

. Propomos, então, apresentar a conversação de dois casos clínicos que nos parecem paradigmáticos para ilustrar essa diferença entre a inclusão e a inserção calcada na construção do caso clínico. O primeiro caso é o de um paciente a que chamaremos de Gabriel, de 18 anos, que já veio ao mundo marcado, se podemos dizer assim, por uma desinserção traumática. Nascido de um parto demorado, complicado por um quadro de hipóxia que obrigou a sua retirada com o fórceps, sua seqüelas logo se fizeram notar: segundo a mãe, era uma criança diferente das demais, chorava muito, não firmava o pescoço e levou longo tempo para andar e para falar. O pai, por não aceitar seu problema, isentava-se de ir procurar-lhe um tratamento. Somente aos quatro anos de idade começou a freqüentar uma instituição especializada para crianças excepcionais (APAE), aonde permaneceu até os 14 anos. A equipe responsável relatava comportamento constante de fuga e atitudes de solilóquio; consta que nessa ocasião fazia uso de medicação neuroléptica e timo-reguladora.

. Em 2004, quando Gabriel tinha 14 anos, seus pais se separaram e o irmão, que o acompanhava nas atividades da vida diária, mudou-se de cidade para trabalhar. Houve um agravamento nítido das condutas de fuga e de agressão a terceiros, o que tornou difícil sua permanência na APAE. Ele ficaria então, a partir de 2005, sob cuidados da mãe, por sua vez acometida de esclerose múltipla e que, sem meios para lidar com seu comportamento, mantinha-o trancado dentro de casa. Após um breve período, Gabriel compareceria ao Centro de Saúde Mental de sua cidade, manifestando intensa raiva de sua mãe, que o mantinha em cativeiro, chegando mesmo a agredi-la com uma faca. Chegou escoltado por policiais, extremamente agressivo e agitado, sendo necessária contenção mecânica e medicamentosa. Nesse momento, dizia ouvir a voz de um padre que lhe dava ordens verbais. Apesar de todos os esforços para mantê-lo em acompanhamento no Centro de Saúde Mental, a família solicitava sua internação psiquiátrica, alegando o risco de seu comportamento violento.

. Finalmente, em janeiro de 2006, após agredir o pai, a família exigiu sua internação no hospital psiquiátrico. Gabriel foi então transferido para um hospital psiquiátrico, ali permanecendo durante dois meses, sem que nenhuma evolução favorável se apresentasse. Chegou ao Centro de Saúde Mental após a alta, muito sedado e machucado, com marcas de contenção nos pulsos e tornozelos, várias queimaduras de cigarro, quebrando todos os vidros que encontrava pela frente e agredindo funcionários com os quais tinha estabelecido um vínculo mais próximo. Derrubava ou tentava enforcar o técnico de referência, não permanecia nas consultas médicas, agitava e tentava pular em cima do médico, não aceitava a mediação pela fala e tentava impor suas demandas com a força. Somente então sua família percebeu que a hospitalização de Gabriel não seria a solução final esperada, e passou a aceitar o tratamento em serviço aberto.

. A partir de várias discussões clínicas com o intuito de construir um projeto terapêutico, bem como de entender a estrutura do comportamento de Gabriel, algumas intervenções foram propostas. Percebeu-se que suas reações agressivas, assim como suas constantes fugas, deveriam ser pensadas como passagens ao ato, produzidas por encontros com algo que Gabriel não conseguia simbolizar. Conseguiu-se, com o apoio da prefeitura, contratar um acompanhante terapêutico que passou a estar presente nas diversas atividades relacionas a seu tratamento. Ao acolher as queixas da mãe, debilitada por sua doença e sem condições de zelar por Gabriel, a equipe viabilizou uma articulação entre o conselho Tutelar e o promotor de justiça, cuja intervenção foi solicitar uma maior participação do pai no processo. Essa intervenção, assim como outras propostas “socializantes”, relacionadas á elaboração de regras de convivência, permitiu que finalmente uma modificação então se produzisse: Gabriel passou a circular nos diversos espaços do serviço e a negociar com os membros da equipe, formulando outras demandas. Percebendo-se acolhido, passou a também acolher e a ficar mais tranqüilo. Na semana do dia 18 de maio, data em que comemora o movimento de luta anti-manicomial, por ocasião de uma visita ao fórum, Gabriel fez uma demanda pessoal ao juiz da cidade, solicitando que, em nome da lei, ele interviesse proibindo seu pai de agredir sua mãe. Sua fala foi validada e sua demanda recebeu a atenção devida do juiz.

. Impossível não perceber, nos efeitos dessa condução clínica, que o processo de inserção de Gabriel se encontra necessariamente atravessado por uma modificação essencial do encaixe que ele mantinha, em sua relação com o Outro. Foi preciso esperar a falência da internação, que na verdade respondia à demanda de exclusão, por parte de sua família, para que o processo de sua possível inserção no tecido social pudesse finalmente se produzir. Essa inserção no tecido social apenas foi possível porque conseguiu-se compor uma rede estruturada a partir da lógica do caso, apreendida a partir da disponibilidade de escuta do técnicos. Isso possibilitou à equipe se posicionar como um Outro capaz de escutar o pedido do paciente por uma Lei reguladora, que não se o colocava em lugar de exceção. A um sujeito que sempre se viu submetido a uma lei desregulada, que seus pais encarnavam, foi oferecido um Outro regulado por uma lei que o ultrapassa.

. Dali resultou a adoção, por parte de Daniel, de uma conduta agora de negociação com o Outro pela via da palavra, e não pela reação de fuga ou de agressividade. Essa aposta finalmente o deslocava da posição de exceção, em que ele antes se situava, uma vez que a negociação com o Outro se mostrava ao alcance de todos. Gabriel passou, então, a circular em vários discursos que o acolheram, tal como o Jurídico e a Educação, encontrando um lugar em que pudesse se mostrar de outra forma, tal como o de “apresentador” na escola onde estuda, e também descobrindo que sua fala é respeitada e considerada.

. A conversação clínica desse caso possibilitou à equipe, por sua vez, examinar o lugar que ela ocupava na economia de gozo de Gabriel, como também construir o modo pelo qual se estruturava sua relação com o Outro. Ao transformar esse Outro terapêutico, procedendo a um esvaziamento dos saberes prescritivos que até então se colocavam, a conversação permitiu o desenvolvimento de um trabalho pautado por processos de negociação, a serem constantemente inventados, na relação que o paciente mantinha com sua realidade. Foi por proceder mediante esse esvaziamento prescritivo que sua psicóloga teve um papel marcante na evolução do caso clínico. Foi ela quem efetivamente operou essa difícil função de amalgamar a referência com a transferência, fazendo da relação com a lei uma dimensão subjetivável para Gabriel.

. Esse processo de inserção baseado na construção do caso clínico em nada se confunde, contudo, com a tática histérica do assistencialismo, que de certo modo dá permanência ao discurso do mestre, contra o qual ela protesta, geralmente representado pelo poder médico presente nas práticas de controle disciplinar. O assistencialismo histérico, que proclama a igualdade dos sujeitos contra a autoridade hierárquica do saber médico, nas instituições de saúde mental, termina frequentemente caindo nos embaraços inevitáveis das relações especulares. Ao se afirmar em posição de igualdade para com o sujeito atendido, numa posição de identificação especular com o doente mental, ali representado como figura do Outro carente, o assistencialista histérico impossibilita o processo de inserção, na medida em que se torna parceiro de um encaixe sintomático que deixa intocado o modo de gozo do paciente. Esse encaixe somente se desfaz no momento da exaustão, quando então é, por fim, re-convocada, no seu mesmíssimo lugar de exceção, a figura de autoridade do mestre contra o qual inicialmente se insurgiu. Senão vejamos, mediante o que foi extraído numa conversação clínica, os impasses que essa parceria produz.

. Referimo-nos ao caso de Eliseu, cuja conversação foi solicitada em razão dos problemas gerados pela relação entre esse paciente e o corpo técnico que dele se ocupava. De acordo com informações extraídas de um relatório datado de 2002, Eliseu, que naquele momento contava com 30 anos de idade, era descrito como um homem solteiro com curso primário incompleto, que ganhava a vida como servente de pedreiro. Sendo filho caçula de uma família cujo pai, que sofria de hanseníase, já havia falecido, residia então com sua mãe. Seus pais, segundo as palavras do paciente, “batiam gato”, expressão que designa a atitude do sujeito pedinte, geralmente atribuída aos pacientes hansenianos. Por ser a mãe uma alcoolista crônica que vivia caída pelas ruas, Eliseu foi criado pelas irmãs, que deles se ocuparam até irem morar com os tios, que o rejeitavam, segundo relata, por ser “preto e feio”. Foi um momento para ele devastador, que marcou sua condição de sujeito abandonado.

. Seu primeiro episódio de desencadeamento psicótico ocorreu aos 16 anos de idade, época em que fazia uso abusivo de bebida alcoólica. Tal episódio foi descrito pela mãe como um quadro de intensa agitação,.comportamento delirante, seguido de desmaio. Iniciou seu tratamento psiquiátrico em um dos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) de seu município em 1997, num momento em que apresentava atitudes de reivindicação constantes referidas a seu pedido de aposentadoria por invalidez, sob efeito de bebidas alcoólicas. Manifestava pensamento delirante de cunho persecutório, assim como comportamento de errância e incúria agravados pela precariedade de sua condição sócio-econômica. Comparecia ao serviço ora conduzido pela mãe, ora pela irmã, ora pela polícia, e às vezes espontaneamente, mas sempre em estado de embriaguez. No ano de 2001, quando foi encaminhado para tratamento intensivo no CAPS de sua cidade, o psiquiatra que sempre o atendia em crise tornou-se seu médico de referência. Foi nesse período que o serviço que o atendia passou a adotar uma estratégia assistencialista, chegando seu psiquiatra a assumir o cargo de curador provisório do paciente, diante da indisponibilidade de um familiar que o fizesse.

. Em 2003 lhe foi alugado um quarto através do Serviço, na proximidade do centro de atendimento, com a finalidade de dele fazer uma Residência Terapêutica. A situação se manteve estável por alguns meses, até que ele voltou a se embriagar e a usar drogas, colocando a perder todos os projetos de assistência. O serviço passou, então, a adotar medidas de cunho disciplinar, tais como não autorizar sua entrada quando ele se encontrasse drogado ou alcoolizado, mas todas as medidas fracassavam por sua falta de adesão. O único laço que ele constituía parecia ser com a bebida. Mesmo dispondo de uma residência, continuava a errar pelas ruas, pedindo dinheiro e se expondo ao risco de ser roubado e maltratado. A equipe, levada à exaustão, agora se referia a Eliseu como a um saco sem fundo; suas demandas pareciam não ter fim.

. A partir desse momento, colocou-se a necessidade de se organizar uma estrutura de rede, com vistas a distribuir melhor a carga de atendimento. Sua curatela foi então transferida para sua irmã, com quem passou a habitar, o que não deixou de produzir uma certa estabilização. Essa irmã manifestava uma postura maternal que parecia convir a sua atitude de constante demanda, mas em que pese essa relativa melhora, ainda assim Eliseu permanecia em seu comportamento de pedinte errante, sempre à espera de algo que lhe causasse a impressão de estar sendo cuidado.

. Verificou-se, assim, no modo mesmo de inscrição de Eliseu na linguagem, algo que foi prosaicamente traduzido, em uma das reuniões da equipe, pelo termo “pidão”. Trata-se, efetivamente, de um demandante sem limite, para o qual, ao que parece, foi transmitido uma função inicialmente atribuída a seu pai, portador de hanseníase, que passava sua vida a “bater gato”. “Pedir”, para Eliseu, é um verbo quase intransitivo. Pouco importa o objeto que ele pede, o que conta é conjugar o “pedir”. Não é casual, por conseguinte, que ele ponha a perder tudo que adquiriu com o árduo socorro da equipe, pois é a partir dessa perda que ele retorna ao lugar do sujeito pedinte, único predicado que lhe foi transmitido.

. Seja qual for, no entanto, o grau de dificuldade que esse caso por si só encerra, interessa-nos ainda considerar em que sentido a posição quase transitivista, assumida pela equipe, veio multiplicar os impasses de sua condução. Ao buscar “compreender” o paciente, para alcançar as motivações de suas dificuldades, no lugar de criar um lugar vazio de compreensão no qual o próprio paciente viria oferecer as suas coordenadas, alguns atores do corpo técnico acabavam adotando uma atitude pautada pela identificação imaginária, muito freqüente na assim chamada perspectiva igualitária que acompanha os mais bem intencionados movimentos de reforma psiquiátrica. Isso desemboca no campo especular da intersubjetividade igualitária em que terapeuta e paciente se vêem atrelados numa relação de parceria simétrica, conforme ficou patente no relato de seu terapeuta: ao se fazer parceiro de um sujeito indefinidamente demandante, ele tornou-se o provedor sem limite de um pedido de auxílio sem ponto de basta. O terapeuta passou, assim, a dar permanência a uma situação da qual virou parte integrante, impedindo-o de romper com o mecanismo que, a princípio, pretendia-se modificar.

. Nada nos autoriza, portanto, a falar aqui de “inserção”, tal como aqui entendemos esse termo, por melhores que sejam as intenções que motivam esse modo de condução clínica. Trata-se antes de um movimento de inclusão assistencial, freqüente em programas oficiais de atendimento público, que pode assumir as mais variadas formas, desde a assunção da curatela à disponibilização de uma residência, mas que deixa intocada a dialética que o sujeito mantém com o Outro social. Pareceu-nos, por conseguinte, sintomático, por ocasião de uma segunda conversação de retorno, que o posterior deslocamento de serviço do paciente, motivado por questões de distribuição territorial dos atendimentos, em vez de ser abordado como um problema tenha produzido um sentimento de alívio na equipe que, como foi dito, viu-se levada a um estado de exaustão. A parceira especular não poderia ter outro tipo de conseqüência. Foi-nos dito que Eliseu agora encontrava-se “desterritorializado”, e que nas raras aparições que faz no CAPS, está sempre alcoolizado em seu atendimento pelo plantão. Relata-se igualmente que ele é freqüentemente visto no centro da cidade, agindo como pedinte nos pontos de ônibus.

. Se a resposta particular de Eliseu ao problema universal do desamparo se dá na forma recorrente do pedinte intransitivo, o igualitarismo assistencialista por sua vez termina por dar permanência a essa condição por se manter numa dimensão especular, não menos problemática, que faz do prestador de serviço um provedor incapaz de produzir uma mudança na posição do sujeito demandante. Tal especularidade se revela claramente na fala de uma das assistentes, quando ela afirma que no lugar de secretariar Eliseu, a equipe fez o trabalho de se colocar no lugar dele. Insaciável, pedinte e provedor interminável ali se encaixam, num ajuste que deixam o sujeito e o Outro intocados, impedindo a rotação discursiva. O resultado dessa parceria, absolutamente previsível, manifestou-se na exaustão do terapeuta provedor e no alívio que o afastamento do sujeito pedinte nele gerou.

. No que diz respeito, portanto, a uma possibilidade efetiva de inserção do paciente Eliseu, indagou-se, ao fim da conversação, quanto à possibilidade de se fazer de sua condução clínica algo distinto de uma posição de sacrifício. Diante da constatação desoladora de que Eliseu tenha voltado a adotar a atitude de pedinte miserável nas ruas, chegou-se a questionar se não seria essa a melhor condição que ele encontrou, se, de fato, a condição de pedinte seria o único laço que ele é capaz de manter. Mas mesmo que assim o seja, mesmo que hajam pacientes que somente consigam se estabilizar nessa posição, cabe ainda se perguntar se é preciso, por um lado, que ele seja um pedinte tão miserável e se é possível, por outro lado, responder de um lugar distinto do terapeuta provedor. Ainda que a dimensão imaginária dessa parceria possa ser o único elo possível de se fazer no nível do acolhimento desse sujeito, é preciso dela se emancipar para produzir uma inserção para além da inclusão assistencialista.

. Pois, se o que mais parecia incomodar a equipe era o estado de intensa miséria de Eliseu, a tentativa igualitária de lhe prover das assim chamadas “condições dignas de um cidadão” estavam fadadas ao fracasso por uma razão relativamente simples. O que se lhe ofertava dizia menos respeito ao que ele próprio demandava do que a uma demanda da equipe com relação à condição em que ela esperava, especularmente, poder encontrar o paciente. Eliseu, de sua parte, jamais pediu para ser tratado em condições sociais de suposta cidadania que lhe eram constantemente ofertadas pela equipe. Eliseu é antes de tudo um pedinte concreto que exige se manter como tal; ele não quer ser um cidadão emancipado dessa condição, como sonha o discurso igualitário do direito dos homens. Receber Eliseu sem lhe ofertar os direitos do homem, conforme reverbera a ideologia da igualdade, mas ouvindo o que ele tem a pedir e, sobretudo, fazendo-lhe ver que ele tem que aprender a pedir, no sentido de transformar a demanda numa forma de negociação com o Outro ao qual ele se endereça.

. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

FOUCAULT, M. (1972) Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, collection Tel Gallimard n°9, 1996.

 

(1) Pipol 4, sous le titre Clinique et Pragmatique de la désinsertion en psychanalyse, invite à cerner la dimension subjective présente dans les diverses modalités de désinsertion, et les voies qui permettent à chacun, à partir de son symptôme, de trouver son inscription dans le tissu social. Si le terme « désinsertion » n’est pas nouveau, l’abord psychanalytique de la désinsertion l’est entièrement. La perspective ouverte récemment par Jacques-Alain Miller sur le dernier enseignement de Lacan, en introduisant le symptôme comme réel dans le lien social, nous permet de traiter la désinsertion comme l’un des noms du réel par excellence de notre époque.

 
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