ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 10 Janeiro à Abril de 2010
 
   
 
   
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  . Uma "brecha" na fantasia: o traço de perversão  
 

A "hole" in the phantasy.

 
     
 

Celso Rennó Lima
 Formado em Medicina pela UFMG em 1971.
Título de Especialista em Psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria.
Psicanalista Membro da Associação Mundial e Psicanálie
Ex Diretor da Escola Brasileira de Psicanálise
Ex Membro da Conselho da Associação Mundial de Psicanálise.
Docente do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de MG.
 Endereço postal
Av. do Contorno, 4.747, sala 909. CEP: 30.921-110.
 Email: celso.renno@gmail.com

 

 
     
 

Resumo: Trata-se de um trabalho de pesquisa no texto freudiano em alemão sobre a palavra traço. Pode-se constatar que existem três palavras diferentes (Zeichen, Spur e Zug) que são traduzidas para as línguas latinas e inglés por uma só, perdendo-se com isto as importantes difetrenças conceituais. A partir desta constatação pode-se estabelecer um novo aporte teórico à clínica das perversões a partir do traço de perversão.
 Palavras-chave: Fantasia, Inconsciente, Traço, Perversão

Abstract :This text is a work of research in the freudian text in germany of the word trace. It coulf be verified that there are three diferent words (Zeichen, Spur e Zug) thar can only be translated for one word to the latin and english languages. With this, important conceptual diferences are lost. This finding made possible the construction of a new teoretical approach to the clinic of perversions taking into consideretion the trace of perversion. 
Key-words: Phantasy, Unconscious, Trace, Perveversion

A Clínica

.

Quando João me procurou pela primeira vez, deixou bem claro porque o fazia: «Quero dar um jeito para evitar que minha mulher me deixe». Logo em seguida ele esclareceu do que se tratava: «Minha ejaculação precoce e minha compulsão para me masturbar em situações estranhas estão me prejudicando».
João tinha, à época desta primeira entrevista, mais de qua­renta anos de idade, uma posição sócio-econômica boa e uma famí­lia. No entanto, mais uma vez, tudo isto estava sendo ameaçado pelo seu comportamento "incontrolável".

À medida que as entrevistas foram se sucedendo e a história de João foi sendo construída, alguns pontos puderam ser destaca­dos: nascido de família pobre, foi filho caçula de uma prole não muito numerosa. Desde cedo sofreu muito com as brutalidades de seu pai, nos raros momentos em que este estava presente em casa. Isto fez com que se "achegasse" muito à mãe, com quem sempre manteve uma relação muito próxima. Talvez por isso tinha muita raiva quando percebia as "saídas" de sua mãe para encontros amoro­sos.
Data desta época o relato feito por sua mãe, nos raros momen­tos em que demonstrava alguma ternura por seu pai: «Quando o conheci ele estava lindo, todo vestido de branco, parado, olhando fixamente para uma imagem de Nossa Senhora» (talvez seja importan­te assinalar aqui que João tem uma profissão que lhe exige andar vestido de branco todo o tempo).

A vida sexual de João começou muito cedo e de forma intensa. De suas lembranças, a que mais o incomoda, e que custou um bom tempo até que pudesse ser relatada, dizia respeito aos momentos em que aguardava sua mãe trocar de roupa para observá-la, através de uma brecha na cortina que separava os cômodos da casa. Observan­do-a, João se masturbava.
Desde então João aderiu à prática sistemática da mastur­baç­ão, sempre procurando uma brecha (ele denominou esta prática de "bre­char") para olhar alguma mulher e, no espaço de tempo entre ela ir e vir, passando pelo seu campo de visão, ele "tinha" que atingir o orgasmo. Isto, conforme sua própria interpretação, era a razão de sua ejaculação precoce.

Com o passar do tempo, esta prática foi se acentuando até começar a acontecer em lugares públicos (ônibus, praia, local de trabalho) sempre sob a égide de um impulso incontrolável. Diga-se de passagem que, apesar de João dizer que «sempre tomava cuidado para não ser visto», foi expulso de seu trabalho por duas vezes, por ter sido «apanhado em flagrante». Inclusive, recente­men­te, sua mulher o havia "visto" se exibindo para a empregada doméstica e por isso estava com receio de perdê-la.

Apesar destes fatos da clínica de João, aqui descritos, não serem suficientes para que possamos definir um diagnóstico, posso dizer-lhes que se trata de um sujeito histérico com traços de perversão bem definidos e que se sustentam no par "olhar - ser olhado".

O objetivo agora será tratarmos, pontualmente, destes "impul­sos" que escapam ao "controle" e que demonstram uma incapacidade do sujeito de se interpor, enquanto efeito, a esta vontade de gozo. Em outras palavras, incapacidade de fazer existir um tempo para compreender entre o instante de olhar e o momento de con­cluir.

Mas, o que se passa com esta estrutura que vai possibilitar esta "brecha"?

Traço de Perversão     

Uma questão, mais do que outras, se me apresenta neste ponto: o que é traço? Optei por começar com uma pesquisa: como e em que contextos Freud utiliza a palavra traço em sua obra? Trabalhando então com o texto original, em alemão, e cotejando-o com as traduções em inglês e português, pude observar que em alemão existem pelo menos três versões para a palavra traço: Zeichen, Zug e Spur. E, como não podia deixar de acontecer, cada uma delas nos remete a recortes conceituais diferentes que, infe­lizmente, se perdem quando da tradução por uma única palavra em outras línguas.

Com o intuito de dar uma sequência ao trabalho, escolhi algumas passagens da obra de Freud onde encontramos cada uma destas palavras. Penso que são passagens representativas e que poderão clarear suas respectivas conceituações.
Encontramos a palavra Zeichen (traço, sinal, distintivo, insígnia, indício) principalmente no "Projeto para uma psicologia científica", "Carta 52 da correspondência a Fliess" e "Interpre­tação dos sonhos". Tomemos como exemplo a "Carta 52" e vejamos como Freud se dirige a Fliess: «[...] Você sabe, eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico aparece através de camada sobre camada: o material presente na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren) sofre de tempos em tempos um rearran­jo, uma transcrição após novas relações. O essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (indícios: Zeichen)[...]»1.

Mais adiante, na mesma "Carta 52", quando está a definir o que seja cada uma das "camadas", Freud vai nos dizer que uma delas é a WZ (Wahrnehmungszeichen) - traços de percepção - e que consiste no «primeiro registro da percepção[...]»2. Sem muito me alongar em citações, posso dizer-lhes que em todas as outras ocasiões, por mim analisadas, em que surge a palavra Zeichen, ela vem sempre com o sentido de indicações, insígnias, ou seja, ligada à percepção. Posso inclusive associá-la à palavra Vorstellung (apresen­tação), tão comum nos escritos freudianos posteriores.
Quanto à palavra Zug (traço, sulco, puxada, puxão), vamos encontrá-la principalmente em duas passagens:

1 FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 254; Aus den Anfängen der Psychoanalysis, London, Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185; Standard Edition of the Complete Psychological Works, vol. I, London, The Hogarth Press, 1973, p. 233.
2FREUD S., ibid.

1. No texto "Uma criança é batida", primeiro parágrafo da segunda parte: «Uma fantasia deste tipo, proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primaren Zug) de perversão»3.

2. Em "Psico­logia das massas e análise do eu", parte VII - A identifi­cação. Esta citação foi a mesma utilizada por Lacan em seu seminário "A identificação", para trabalhar o conceito de traço unário: «Deve também nos surpreender que em ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada (höscht beschränkte), tomando emprestado apenas um traço único (einzigen Zug) da pessoa que é seu objeto»4.

Talvez possamos encontrar outras passagens em que Freud utilize a palavra Zug; a mim, no entanto, não foi possível localizá-las nos textos que trabalhei. Portanto penso que posso dizer-lhes que o conceito de Zug está fundamentalmente associado aos conceitos de primário e unário. Para dar um passo a mais posso dizer-lhes, também, que o einziger Zug tem como consequência lógica a Bejahung primordial.

Enfim, examinemos a palavra Spur (traço, vestígio, pista, rastro). Esta, talvez, seja a palavra alemã, para traço, que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Dois textos, no entanto, são de capital importância para apreendermos o conceito de Spur em Freud: "Carta 52" e "Notas sobre o bloco mágico". Na "Carta 52", por exemplo, quando Freud nos descreve a camada W (Wahrnehmung) ele é bastante claro ao dizer que se trata de neurônios nos quais "ne­nhum traço" (kein Spur) do que acontece permane­ce5. Só vamos ver surgir os traços (Spuren) quando

3 FREUD S., "Uma criança é espancada", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 228; Studienausgaben, vol. VII, Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, p. 233; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 181.
4 FREUD S., "Psicologia das massas e análise do eu", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 135; Studienausgaben, op. cit. vol. IX, pág. 100; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 107.
5 Vide nota 1

do segundo registro (UB - Unbe­wusst): «[...] traços do Inconsciente (UB Spuren) são algo equi­valen­tes a lembranças concei­tuais (Begriffserinnerungen)[...]»6.
Posso lembrar-lhes, neste ponto, que estes UB Spuren são o que Freud vai chamar, mais tarde, de Vorstellungsreprasentanz que é, como nos diz Lacan «o significante que é recalcado, pois não há outro sentido a dar nesses textos a esta palavra»7.
No entanto, é no texto "Notas sobre o bloco mágico" que Freud vai trabalhar exaustivamente o conceito de Spur que estará sempre ligado ao conceito de memória (Erinnerung) e permanência (Dauer).
A partir do que lhes trouxe até aqui, uma hipótese surge: mais do que simples diferenças de traduções ou de grafia, cada uma destas palavras utilizadas por Freud apontam um recorte conceitual preciso e nos ajudam a pensar, não só os vários "tempos" do sujei­to, como também questões clínicas como "traços de perversão".
Na "Carta 52", nosso ponto de partida, Freud nos fornece o seguinte esquema:

W ------ WZ ------ UB ------ VB ------ Bews
         I         II        III

«W (Wahrnehmung) - São neurônios nos quais a percepção come­ça, aos quais a consciência se liga. Neles, nenhum traço (kein Spur) do que acontece, permanece[...]».
«WZ (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro registro (Nie­derschrift) da percepção. Sua conscientização é totalmente incapaz de se fazer (der Bewusstsein ganz unfahig) e são organizados de acordo com associações por simultaneidade (ach Gleichzeitigkeit­sassoziation gefüt)».


6 Vide nota 1.
7 LACAN J., "Sur la théorie du symbolisme d'Ernest Jones", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 714.

«UB (Unbewusst) - É o segundo registro (Niederschrift); é ordena­do conforme algo assim como relacionamento causal. Os traços (Spuren) de UB são equivalentes a algo assim como lembranças conceituais (Begriffserinnerung) e, da mesma forma, inacessíveis à consciên­cia».
«VB (Vorbewusst) - é a terceira transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra (Wortvorstellung), e é aquilo que se refere ao nosso eu oficial»8.

No desenvolvimento que Freud faz do esquema da "Carta 52", ele utiliza de maneira bastante clara os conceitos Zeichen e Spur. Será possível, neste ponto, introduzir no esquema da "Carta 52" o conceito de Zug a partir do que conhecemos da obra posterior de Freud e dos desenvolvimen­tos lacanianos?
Com toda a ousadia que me é permitida numa situação como esta, eu introduzo o conceito Zug, mais especificamente, einzi­ger Zug, entre as camadas WZ e UB:

W ------ WZ ------ einziger Zug ------ UB ------ VB ------ Bews

Com o desejo de substanciar teoricamente o que acabo de propor, lanço mão do esquema R, assim como Lacan o desenvolve no seu texto "Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose"9.


Esquema R 10


8 Vide nota 1.
9 LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 553
10 Lacan,,J. Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose, in Escrito. .

O esquema R é um desdobramento do esquema L, primeiramente desenhado no seminário sobre "A carta roubada". Ele é dividido em três partes:

1. O triângulo imaginário.

2. A faixa do real (leia-se realidade), faixa esta que, uma vez extraído o objeto a, vai sofrer uma meia torção, transformando-se em uma banda de Moebius para nos dizer do sujeito e do pouco-de-realidade.

3. O triângulo do simbólico.
Em cada um dos seus vértices Lacan vai instalar uma letra, designando cada uma, o grande A no caminho do sujeito. Estas letras também nos auxiliam a matemizar as três posições do analista na direção da cura. São elas: M - no instante de olhar, a mãe enquanto das Ding; I - no tempo para compreender, o ideal do eu enquanto matriz simbólica e, enfim, em P - o momento de concluir pelo Nome-do-Pai enquanto represen­tante da lei. No que diz respeito ao caminho do sujeito, posso localizar a privação do sujeito no real em M, onde vai faltar um objeto simbólico no real; a frustraç­ão na posição I, onde falta um objeto real no imaginário especular; e finalmente a castração em P, instalando-se definiti­vamente a falta no simbólico de um objeto imaginário.

Neste ponto uma articulação entre o esquema freudiano e o lacaniano me parece possível: M corresponderia às camadas W e WZ, estas camadas iniciais do aparelho psíquico freudiano da "Carta 52". Este momento onde existem apenas e tão somente percepç­ões, ou seja, nem sujeito nem objeto a serem percebidos. Existem apenas percepções que, num certo momento vão se constituir em traços, insígnias, formando o que Freud denominou no "Projeto para uma psicologia científica" de "o complexo do semelhante" (Der Nebenmensch Komplex).

O importante aqui fica por conta do fato de que não se dis­tingue ainda a qual destes traços de percepção vai se ligar todo o processo de identificação que irá se constituir no nome próprio, a partir do qual o sujeito advirá para nomear todas as coisas que vão fazer existir o pouco-de-realidade de seu mundo ficcional.

Entre as camadas WZ e UB, no esquema freudiano, e entre M e I, no esquema lacaniano, faço incidir a presença inaugu­rante do traço unário que «é aquilo que apaga A Coisa», como nos diz um autor anônimo em Scilicet n° 2/3, «ele aí apaga tudo, exceto este um que ela foi, e jamais será substituída; Lacan dá esta fórmula: Wo es war, da durch das eins werde ich - aí onde era (A Coisa), aí pelo um advirei eu, e é o traço unário que faz aparecer o sujeito como aquele que conta. Mas o primeiro passo do sujeito não pode ser articulado a não ser como a introdução do nada como tal, no sentido do Nihil Negativum de Kant, objeto vazio sem conceito (Leere Gegenstand Ohne Begriff)[...]»11.
Este é o começo do sujeito: uma vez instalado o traço unário, não vemos aparecer, como se pensa por aí, um «isto-bom que é incluido no eu e um isto-mau que é expulso do eu, mas parece que estamos antes autorizados a pensar que não há dois "istos", mas sim um e que o sujeito incorpora, e o que se encontra é que, neste momento, algo se perde (dechoit) desta incorporaç­ão[...]»12.
Assim com o traço unário instala-se o que Freud denominou de segundo registro, uma vez que o ordenamento aqui já se faz em função de um relacionamento causal, produzindo lembranças conceituais. É o momento em que um «eu ideal é a imagem que se fixa desde o ponto em que o sujeito se detém como ideal do eu [...] Na captura que experimenta de sua natureza imaginária, mascara sua duplicidade, a saber, que a consciência em que se assegura de uma existência inegável não é em absoluto imanente, mas sim transcendente posto que se apóia no traço unário»13. Ou seja, é no Outro que ele vai existir, na medida em que, dependente fundamental­mente de seu amor, «quer dizer, pelo desejo de seu desejo, se identifica com o objeto imaginado desse desejo enquanto que a mãe mesma o simboliza no falo»14.


11Scilicet, n°2/3, Paris, Seuil, 1970, p. 124.
12 Intervenção de A. Didier-Weil no seminário de Lacan, em 05/05/79.
13 LACAN J., "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien", op. cit. p. 809.
14 LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 554.

Passagem fundamental acontece neste ponto quando, de acordo com o esquema da "Carta 52", a terceira transcrição é possível, ligando lembran­ças conceituais (Begriffserinnerungen) a representações de palavras (Wortvorstellungen). É o momento de instalação da lei, quando vai-se colocar em relevo a duplicidade que a imagem do eu ideal tentava mascarar. Com isto precipita-se o ideal do eu como herdeiro deste momento que se resolve na separação. Em outras palavras, é a entrada do significante fálico que vem ordenar, estabelecer uma seqüência e um tempo de espera para o que só visava o imediato do gozo sem limites.
E assim, num só-depois, poderemos observar a evolução que os esquemas apontam em sua dimensão cronológica. É a série que, começando no universo perceptivo das imagens ideográficas (Zei­chen) vê eleger-se um traço unário (einziger Zug), um «traço distintivo, traço exatamente tanto mais distintivo quanto mais está apagado tudo que o distingue, salvo ser um traço, acentuado o fato de que quanto mais parecido, mais funciona, não digo como signo, mas sim suporte da diferença[...]»15que, ao constituir-se em letra, vai tornar-se o que sustenta materialmente o significante enquanto traço de memória (Erinnerungsspur).
Sendo, portanto, recortes conceituais precisos, quando fala­mos em "traços de perversão", de qual "traço" se trata: Zei­chen, Zug ou Spur?
Freud, no texto "O problema econômico do masoquismo" nos diz: «A castração, ou seu substituto, a cegueira, deixam, com freqüên­cia, um traço negativo (negative Spur) nas fantasias (masoquis­tas), pois nenhum dano deve ocorrer precisamente aos genitais ou aos olhos»16. Seria possível interpretar esta frase de Freud, no que diz respeito ao traço negativo, como um traço que, uma vez instalado, foi negativado? (Ou, quem sabe, desmentido?)

Encontro em outro texto de Freud subsídio para tentar respon­der esta questão. É na "Carta 52", esta inesgotável fonte teórica: «Uma falha na tradução, isto é o que sechama, clinicamente, recalque [...]. Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os regis­tros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devida à produç­ão de desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória (Erinnerungsspur) de uma fase anterior que não foi traduzido»17.

Partindo daí, penso poder dizer que um traço negativo é exatamente um traço que, tendo chegado a se constituir em mais um na cadeia, "regride" ao que passa a ser um traço (Zug) que, assim, adquire a função da qual não sofreu tradução, ou seja, passa a não se submeter à ação ordenadora do significante falo, exigindo, portanto, a ação de mecanismos de defesa patológicos. «Uma fanta­sia deste tipo (perversa), proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primären Zug) de pervers­ão»18.

Coloco-lhes então minha proposta: localizar a ação da Ver­leugnung, este mecanismo de defesa patológico que tenta dar conta do que não sofreu tradução entre as camadas WZ e UB no esquema modificado da "Carta 52" ou, no esquema lacaniano, entre o I e o P (esquema R). Agindo neste ponto, a Verleugnung (desmentido) negativa a ação legislativa do significante falo, deixando sobre­viver, sem tradução um traço primário (primären Zug) que se faz o único, neste momento, a ditar as leis: é a vontade de gozo que surge na brecha aberta da tela protetora da fantasia fundamental. É a marca estrutu­ral que diferencia um traço de perversão de um acting-out, que se caracteriza por ser um signo cênico transitório em seu endereçamento a um outro que não está. Se diferencia também dos traços da fantasia, estes significantes, que surgem no per­curso de uma análise, a partir dos quais pode-se, eventualmente, construir-se a fantasia fundamen­tal.

15 LACAN J., "A identificação", seminário inédito, aula de 13/12/61.
16 FREUD S., "O prolema econômico do masoquismo", Obras Completas, op. cit. vol. XIX, p. 203; Studienausgaben, op. cit. vol. III, p. 346; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XIX, p. 162.

17 FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, op. cit. vol. I, p. 256; Aus den Anfangen der Psychoanalysis, op. cit. p. 187; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. I, p. 235.
18Vide nota 3.

Conclusão

Todo este percurso teórico, motivado pela clínica de João, assim como os resultados apresentados ao longo de um trabalho de mais ou menos três anos, possibilita a seguinte conclusão:
O relato que a mãe de João lhe fez do momento em que conheceu seu pai, assim como a "brecha" na cortina, propiciando a visão do corpo nu, favoreceram à fixação de uma imagem que, no a poste­riori, desencadeou uma prática masturbatória que se sustentou como "satisfação auto-erótica", uma pulsão que se antecipou à maturaç­ão e desmentiu a ação fálica. A falta de um pai real foi, talvez, o fator preponderante desta fixação.
Durante todo o tratamento analítico, objetivou-se a construç­ão de um significante que pudesse fazer as vezes do que não pôde ser traduzido e que permaneceu como traço. Desta forma a brecha que se instalou na tela protetora da fantasia pode ser, de alguma maneira reparada e, hoje, João pôde colocar um tempo para compre­ender, um tempo de espera, um intervalo entre o instante de olhar e o momento de concluir.

Referências Bibliográficas

FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 254; Aus den Anfängen der Psychoanalysis, London, Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185; Standard Edition of the Complete Psychological Works, vol. I, London, The Hogarth Press, 1973, p. 233.
FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, op. cit. vol. I, p. 256; Aus den Anfangen der Psychoanalysis, op. cit. p. 187; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. I, p. 235.
FREUD S., "O prolema econômico do masoquismo", Obras Completas, op. cit. vol. XIX, p. 203; Studienausgaben, op. cit. vol. III, p. 346; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XIX, p. 162.
FREUD S., "Psicologia das massas e análise do eu", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 135; Studienausgaben, op. cit. vol. IX, pág. 100; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 107.
FREUD S., "Uma criança é espancada", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 228; Studienausgaben, vol. VII, Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, p. 233; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 181.
LACAN J., "A identificação", seminário inédito, aula de 13/12/61.
LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 553.
LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 554.
LACAN J., "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien", op. cit. p. 809.
LACAN J., "Sur la théorie du symbolisme d'Ernest Jones", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 714.

Recebido em Junho de 2010
Aceito em Agosto de 201


 
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