|
Resumo: Este artigo discute a experiência de David Rosenhan, publicada na revista Science em 1973, a partir da qual demonstrou-se que os diagnósticos psiquiátricos possuem pouca confiabilidade e dizem mais sobre o ambiente em que os pacientes foram diagnosticados, que sobre eles mesmos. A partir disso, o autor expõe uma série de medidas tomadas pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) para reafirmar a afiliação da psiquiatria à medicina científica, como a elaboração de princípios a partir dos ensinamentos de Kraepelin para reordenar a prática psiquiátrica e a reformulação dos critérios diagnósticos do DSM-II, segundo inspiração em protocolos de pesquisa de campo. Apesar desses remanejamentos internos à classificação e das propostas para aumento da confiabilidade dos diagnósticos psiquiátricos, questões importantes do ponto de vista científico, como a questão da validade, não foram resolvidas.
Palavras-chave: Diagnóstico, psicanálise, DSM, psiquiatria, validade
Abstract: This article discusses the experience of David Rosenhan, published in the magazine Science in 1973. It showed that the psychiatric diagnoses have little reliability and speak more about the environment in which the patients were diagnosed rather than themselves. Taking this into account, the author exposes a series of measures taken by the American Psychiatric Association (APA) to reaffirm the affiliation of psychiatry to scientific medicine with the elaboration of principles taken from the teachings of Kraepelin in order to reorganize the psychiatric practice and the reformulation of the criteria of diagnoses of DSM-II, based on protocols of field work. In spite of these internal reorganization of the classification and the proposals to increase the reliability of the psychiatric diagnoses, important issues from the scientific viewpoint, such as the validity, were not resolved.
Keywords: Diagnosis, psychoanalysis, DSM, psychiatry, validity
1) O experimento de David Rosenhan
Na década de sessenta, as relações entre psicanálise e psiquiatria achavam-se desgastadas. Os psiquiatras consideravam que a psicanálise não oferecia eficácia além de ser uma teoria que postulava uma etiologia psicogênica, mais afrouxava que fortalecia os laços com a medicina científica. O assunto seria retomado em 1985 por Spitzer e Bayer em um relatório de 1985 onde defendiam que se extirpasse a neurose da nomenclatura do DSM1 além de outros freudismos (KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 140).
Além da presença de conceitos psicanalíticos no DSM, eventos como o debate sobre a validade científica do conceito de homossexualidade e a publicidade em torno da falta de confiabilidade dos diagnósticos, abalariam a psiquiatria americana. Robert Spitzer, nomeado presidente do Grupo de Trabalho sobre Nomenclatura e Estatística da APA, em maio de 1974 (KIRK & KUTCHINS, 1988, p. 166), enfrentaria, ainda na condição de defensor do DSM, os efeitos da divulgação de uma pesquisa conduzida por David Rosenhan, professor emérito de psicologia e de direito da Universidade de Stanford, na prestigiosa revista Science (ROSENHAN, 1973, pp. 250-258).
Rosenhan, psicólogo, empreendeu um experimento em psicologia social considerado um dos mais importantes do século XX. Sua pesquisa destinava-se a verificar até que ponto os diagnósticos psiquiátricos baseados em categorias sindrômicas diziam mais sobre o ambiente e o contexto em que se observam os pacientes que sobre os próprios pacientes observados. Ele não pretendia negar a existência da doença mental nem do sofrimento psíquico, mas questionar até que ponto as noções de normalidade e de anormalidade dependiam de diagnósticos que não diziam a verdade sobre as pessoas que os recebiam. Com isso, Rosenhan postulava que, assim como na teoria estatística, em medicina há um tipo de viés que induz os médicos a dois tipos de erro na atribuição de um diagnóstico.
O erro mais comum em medicina denomina-se “erro de tipo 2” e refere-se à maior inclinação dos médicos em atribuir a alguém saudável um diagnóstico de enfermidade (falso positivo, tipo
2), do que atribuir a alguém enfermo um estado de boa saúde. Esse tipo de erro acontece devido à prudência médica, porque é preferível se enganar e submeter a tratamento alguém que goze de boa saúde, que dispensar alguém doente sem providenciar-lhe nenhum cuidado. É melhor errar por precaução.
1American Psychiatric Association: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.
Rosenhan alertava, entretanto, que as conseqüências de um erro tipo 2 em psiquiatrianão são as mesmas para o paciente que as de outra área médica, como a cardiologia ou a nefrologia. Doenças fisiológicas não têm, geralmente, uma conotação pejorativa e não produzem, em sua maioria, nenhum tipo de estigma social. A situação dos diagnósticos psiquiátricos é bem diferente para o paciente, porque induzem a estigmas e são geradores de preconceitos sobre a vida pessoal, no plano legal e social.
O experimento visava testar se pessoas normais podiam ser identificadas em ambientes de tratamento para alienados. Se assim fosse, normalidade e anormalidade seriam distintas e discerníveis pela confiabilidade das categorias diagnósticas usadas nessas situações. Porém, se a sanidade dos pseudopacientes não fosse descoberta, isso reforçaria a tese de que os diagnósticos psiquiátricos dizem pouco sobre o paciente e mais sobre o ambiente em que ele é submetido à observação.
Oito pseudopacientes, entre eles Rosenhan, se apresentaram a hospitais psiquiátricos com alegação de ouvirem uma voz que lhes dizia “vazio” ou “oco”. As vozes seriam do mesmo sexo do paciente. A expressão do delírio, sugestiva da alucinação verbal, foi previamente combinada pela equipe de pesquisa pelo fato de fazer referência a dilemas existenciais, poder ser expressa sob a forma de um fenômeno clínico da psicose e por não haver na psiquiatria nenhuma referência a nenhuma psicose ou esquizofrenia existencial. Sete dos pseudopacientes foram admitidos com diagnósticos de esquizofrenia e um com o de psicose depressiva. As equipes dos hospitais não tiveram, em nenhum momento, conhecimento oficial do experimento. Para o restante da entrevista, os pseudopacientes combinaram entre si que forneceriam informações verídicas, pois estas informações poderiam influenciar favoravelmente num diagnóstico de sanidade, já que as histórias retratavam vidas comuns sem comportamentos considerados patológicos.
Uma vez internados, os pseudopacientes voltaram a se comportar normalmente, e passaram explicitamente a tomar notas sobre a conduta da equipe na relação com os internos. Passaram também a dispensar a medicação recebida nos lavatórios o que comprovaram ser uma prática comum entre os pacientes. Também era comum que os pacientes verdadeiros identificassem a sanidade dos pesquisadores.
O tempo de internação em média foi de dezenove dias, e os pseudopacientes receberam alta com o diagnóstico de “esquizofrenia em remissão”. O termo “em remissão” observa Rosenhan, não significa que os pacientes tenham sido necessariamente acompanhados. Indica que, uma vez diagnosticados como esquizofrênicos os pseudopacientes ficaram marcados com um rótulo e, já que receberiam alta, não poderiam receber outra classificação que não essa.
Rosenhan, logo após a realização dessa pesquisa, empreendeu outra pesquisa visando verificar se a tendência dos psiquiatras em classificar pessoas normais como loucas poderia ser revertida. Ele acertou com um hospital de pesquisa e ensino que enviaria alguns pseudopacientes para entrevista de internação, advertindo previamente as equipes sobre os resultados da pesquisa anterior. Durante três meses, que foi o prazo acordado entre Rosenhan e a direção do hospital, as equipes trabalharam na expectativa de que pseudopacientes tentariam ser admitidos à internação. Combinou-se que os psiquiatras usariam uma escala de 1 a 10 para aferir o nível de certeza do profissional sobre se tinha a frente um pseudopaciente ou não.
Os resultados indicaram que cento e noventa e tres pacientes foram avaliados e admitidos no hospital e todos da equipe não só psiquiatras emitiram opiniões baseadas na classificação do DSM-II. Quarenta e um pacientes foram indicados com alto grau de certeza como pseudopacientes por pelo menos um membro da equipe. Vinte e três foram considerados suspeitos por pelo menos um psiquiatra e dezenove pacientes também o foram por pelo menos um membro da equipe e um psiquiatra. Após a apresentação dos resultados, Rosenhan, convidado a dizer o verdadeiro número de pseudopacientes que teria enviado às equipes, revelou não ter enviado nenhum.
O experimento confirmou a existência da inclinação entre as equipes que usam a classificação oficial, a designarem pessoas normais como insanas. O efeito somente poderia ser revertido, argumentava Rosenhan, “quando a sagacidade na realização do diagnóstico é alta” (ROSENHAN,1973, p. 4). Sagacidade é uma qualidade que se adquire com a prática clínica.
Da amostragem apresentada, para os dezenove pacientes sobre os quais coincidiram opiniões de um psiquiatra e de outro membro da equipe, Rosenhan perguntava se essas pessoas eram realmente “sãs” ou se a equipe, evitando o erro de tipo 2, não teria cometido o erro de tipo 1 denominando loucos como sãos. Com isto, ele advertiu que um sistema de classificação e diagnóstico em psiquiatria “que se rende tão facilmente a erros desse tipo não deve ser um meio estritamente confiável” (ROSENHAN,1973, p. 4).
2. Os Critérios Feighner
Como dissemos, Spitzer se contrapôs à pesquisa empreendida por Rosenhan, logo após a revisão do DSM-II, quando se preparava para assumir a coordenação dos trabalhos para elaboração do DSM-III. Segundo Kirk & Kutchins (1998, P. 159), durante um simpósio do qual participava para avaliar os resultados apresentados por Rosenhan, Spitzer qualificou a pesquisa de pseudociência e argumentou que o diagnóstico “esquizofrenia em remissão”, alegado na pesquisa, não era de comum utilização. Apresentou dados coletados por ele mesmo em outros hospitais, buscando demonstrar que os registros sobre as altas dos pacientes quase sempre mantinham o diagnóstico de admissão. Desta exposição, concluiu que os psiquiatras dos hospitais onde o experimento Rosenhan foi desenvolvido haviam percebido que pseudopacientes eram pessoas normais e que o diagnóstico “em remissão” significaria um estado de “boa saúde mental camuflada” (KIRK & KUTCHINS, 1998, P. 162).
Na verdade, o debate reaberto por Rosenhan sobre a confiabilidade dos diagnósticos do DSM-II indicou a Spitzer que, se o problema era esse, a solução deveria ser buscada aí e não na tentativa de apurar a validade dos conceitos. A falta de consenso entre os psiquiatras sobre as categorias diagnósticas já era de conhecimento público, e a resolução dessa questão sanaria de uma vez por todas as dúvidas sobre a credibilidade da psiquiatria, seu estatuto de ciência e seu pertencimento à medicina. Sustentava que esse problema somente poderia ser resolvido estabelecendo critérios de inclusão e de exclusão para cada uma das categorias do manual. Dessa maneira, o manual seria aprimorado em relação às descrições vagas e generalizadas do DSM-II, que exigiam raciocínio em psicopatologia da parte dos aplicadores.
Spitzer integrava um grupo de pesquisadores composto por psicólogos e psiquiatras que ficou conhecido na história da psiquiatria contemporânea como Grupo de St. Louis. Esse grupo foi responsável pelo lançamento de uma nova abordagem definida em critérios diagnósticos para aplicação em pesquisa, o CDP (Critérios Diagnósticos de Pesquisa). O CDP, a princípio, deveria ter sua aplicação restrita às pesquisas, mas, com o tempo, constatada a dispersão a que os critérios de diagnóstico estavam sujeitos pela maneira como os médicos tomavam decisões diagnósticas, a equipe de pesquisa sugeriu seu uso na clínica.
O Grupo de St. Louis se apoiaria nos critérios Feighner para construção do CDP. O CDP embasaria a elaboração do DSM-III. Para essa empresa o Grupo de St. Louis uniu-se a pesquisadores da Universidade de Columbia e do Instituto Psiquiátrico de Nova York. Formou-se um grupo muito especializado, que mantinha intercâmbio de pesquisa, através de uma rede de trabalhos científicos, de modo que Gerald Klerman, um de seus integrantes, proclamaria o grupo como um “colégio invisível de Neo-Kraepelinianos”. Em 1978, Klerman publicou, na revista Schizophrenia: Science and Practice, um artigo intitulado, “A evolução de uma nosologia científica”, que teve o tom de um manifesto. Nele, Klerman fazia nove propostas que ele acreditava que estavam vinculadas às raízes do pensamento de Kraepelin: 1) a ênfase descritiva na categorização dos sintomas; 2) a devoção à investigação pelo método empírico; e 3) sua postura antipsicanalítica (DECKER, 2007). A referência à Kraepelin, mais que uma homenagem, servia como o resgate histórico das raízes médicas da psiquiatria.
O que se chamou credo Neo-Kraepeliniano era, na verdade, constituído de afirmações que delimitavam o enquadramento biológico da atividade clínica em psiquiatria, e também o limite entre a sanidade e a insanidade que havia sido atacada pelo artigo de David Rosenhan na Revista Science. Foi um tipo de resposta que recolocou a psiquiatria no caminho de sua afirmação como ciência. O credo Neo-Kraepeliniano afirmava o seguinte:
1. A psiquiatria é um ramo medicina.
2. A psiquiatria deve usar modernas metodologias científicas e basear sua prática no conhecimento científico.
3. A psiquiatria trata as pessoas doentes e que requerem o tratamento para a enfermidade mental.
4. Existe um limite entre o normal e o patológico.
5. Há algumas doenças mentais distintas. As doenças mentais não são mitos. Há não uma, mas muitas doenças mentais. A tarefa da psiquiatria científica, como a de outras especialidades médicas, é investigar as causas, o diagnóstico e o tratamento dessas doenças mentais.
6. O foco do médico psiquiatra deve particularmente se colocar nos aspectos biológicos da doença mental.
7. Nisso deve ser explícita e intencional a preocupação com o diagnóstico e a classificação.
8. Os critérios diagnósticos devem ser codificados, e sua validação por diferentes técnicas, deveria ser considerada como um domínio de pesquisa legítima e preciosa. Ademais, os departamentos de psiquiatria das escolas de medicina deveriam ensinar esses critérios e não depreciá-los como foi o caso durante muitos anos.
9. Em esforços de pesquisa dirigidos para melhorar a confiabilidade e a validade do diagnóstico e da classificação, deveriam ser usadas técnicas estatísticas.
O recurso ao método natural como condição para alçar a qualidade de ciência vinha agora ser substituído pelo recurso à estatística; uma ciência associada à epidemiologia e às probabilidades de medida que deveriam ser tratadas. Mas a primeira tarefa desse grupo de pesquisa seria definir critérios específicos para várias categorias que no DSM-II constavam com um elevado grau de generalidade. Alguns exemplos das descrições que vigoravam no DSM-II, são conhecidos:
300.6 Neurose de despersonalização: Síndrome dominada por uma sensação de irrealidade e estranhamento do eu, do corpo e do ambiente. Esse diagnóstico não deveria ser usado se o estado fizer parte de outro transtorno mental, tal como uma reação aguda a uma situação dada. Uma curta experiência de desrealização não é necessariamente um sintoma de doença. (p.41).
301.6 Personalidade astênica: Esse tipo de comportamento é caracterizado por uma grande fadigabilidade, um baixo nível de energia, uma falta de entusiasmo, incapacidade acentuada de experimentar prazer e uma hipersensibilidade ao stress físico e emocional. Esse problema deve ser distinguido da neurose neurastênica. (p.43).
308.3 Reação de fuga na criança ou no adolescente: Os indivíduos que sofrem desse transtorno esquivam-se de situações ameaçadoras de modo característico fugindo de casa, sem permissão, um dia ou mais. Eles são de tipo imaturo e tímido, se sentem rejeitados em casa, inadaptados e sem amigos. roubam sub-repticiamente.
295.0 Esquizofrenia tipo simples: Esta psicose é caracterizada antes de tudo por uma diminuição lenta e insidiosa dos laços e dos interesses pelo exterior, por uma apatia e indiferença que conduzem ao empobrecimento das relações interpessoais, a uma deterioração mental e a uma estabilização no nível mais baixo de funcionamento. Em geral o estado é menos dramaticamente psicótico que em outras formas hebefrênicas, catatônicas e paranóides da esquizofrenia. Se distingue igualmente da personalidade esquizóide, na qual há pouca ou nenhuma progressão do transtorno. (DSM-II, apud KIRK & KUTCHINS, p. 95).
Expressões vagas como “incapacidade de experimentar prazer”, “sentimento de rejeição” e “sensação de estranhamento do eu” não eram científicos no sentido da precisão que se exigia de conceitos aspirados pelos pesquisadores, e deixavam amplas margens para interpretação. A partir de análise do DSM-II, o Grupo de St. Louis retomou as recomendações do filósofo Carl Hempel, que propusera que as classificações psiquiátricas só contivessem definições operacionais, precisamente especificadas e com regras a serem seguidas pelos clínicos para realização do diagnóstico. Foram elaborados critérios para quinze transtornos mentais que ficaram conhecidos como Critérios Feighner, em homenagem a John Feighner, um dos autores do artigo.
A diferença entre os critérios elaborados e as definições do DSM-II era muito contrastante. Enquanto o DSM-II desenvolvia uma descrição sobre a forma de manifestação da patologia, que expunha toda a influência psicanalítica com uma exigência implícita de exercício psicopatológico da parte do avaliador; os critérios elaborados pelo Grupo de St. Louis eram bastante diretos e indicavam claramente os sintomas que deveriam ser considerados e sua regularidade mínima para definição de uma patologia. Abaixo, apresentamos uma amostra da comparação entre ambas as fontes:
Quadro 1 – Descrição da Depressão
DESCRIÇÃO DA DEPRESSÃO |
DSM-II (1968) |
CRITÉRIOS FEIGHNER (1972) |
Neurose depressiva: Esse problema se manifesta por uma reação excessiva de depressão devida à um conflito interno ou a um evento identificável como a perda de um objeto amado ou de um bem apreciado. Deve ser distinguida da melancolia involutiva e da doença maníaco-depressiva. As depressões reacionais ou reações depressivas devem ser classificadas aqui. |
As três exigências seguintes devem ser reencontradas:
- Humor disfórico caracterizado por sintomas do tipo: depressão, tristeza, abatimento, desespero, sensação de “cafard” (desgosto, angústia), irritabilidade, medo, inquietude e desencorajamento.
- Ao menos 5 dos 8 critérios seguintes:
- Pouco apetite ou perda de peso de 1 kg por semana ou de 5 kg ou mais em um ano, sem regime.
- Sono difícil, aí compreendida insônia e hipersonia.
- Perda de energia, mais exatamente fadigabilidade ou lassidão.
- Agitação ou inibição.
- Perda de interesse para as atividades habituais ou diminuição da pulsão sexual.
- Sentimentos de auto-acusação ou de culpabilidade (uma e outra podem ser ilusórias).
- Queixas que concernem a uma diminuição (real ou não) da capacidade de pensar ou de se concentrar, tais como, reflexão lenta ou pensamentos desordenados.
- Pensamentos recorrentes de morte ou de suicídio, compreendido o desejo de estar morto.
(Nota: se somente 4 desses 8 critérios forem encontrados, diagnostique-se “depressão provável” mais que “depressão”.)
- Uma doença psiquiátrica se mantém- se ao menos por um mês sem condições preexistentes, tal como a esquizofrenia, a neurose ansiosa, a neurose fóbica, as neuroses obsessional ou compulsiva, a histeria, o alcoolismo, a dependência de droga, a personalidade anti-social, a homossexualidade e outros desvios sexuais, o retardo mental ou a síndrome orgânico-cerebral.
(Nota geral: Os pacientes que sofrem prévia e paralelamente de depressão, uma doença incapacitante e que ameaça sua vida não receberão o diagnóstico de depressão primária.) |
Fonte: MATARAZZO, 1983, apud KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 96.
É notável a influência da psicanálise nas referências ao “conflito interno” ou a “um evento identificável como a perda de um objeto amado”. O conceito de ‘“objeto” remete sem preocupações de velamento ao texto de Freud, Luto e Melancolia (1917). O DSM-II comportava categorias cujas definições imprecisas pediam importantes conjecturas clínicas sobre a natureza do transtorno; basta ler o exemplo acima para se ter idéia do trabalho que um clínico não familiarizado com os conceitos psicanalíticos teria que empreender. Baseada no pressuposto segundo o qual o analista deveria “escavar sob o relato do paciente” para chegar à verdade, a psicanálise havia retirado a ênfase histórica que a psiquiatria havia dado à fenomenologia.
O grupo de St. Louis, presidido por Robert Spitzer, serviu-se dos Critérios Diagnósticos de Pesquisa (CDP) para elaborar um sistema prévio de classificação, denominado critérios Feighner, que serviria como preparação do DSM-III. Mais tarde, quando pesquisas de campo permitiram verificar que uma das mais importantes fontes de erro em diagnóstico devia-se à dispersão de critérios que os clínicos usavam para atribuir diagnósticos, o CDP passou a ser recomendado para uso clínico até a publicação do DSM-III.
O tema da dispersão de critérios diagnósticos e da dispersão de informações clínicas, revelou à força tarefa do DSM-III o foco da intervenção necessária para correção do problema da confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico. A ação metodológica deveria incidir nos instrumentos de avaliação (a entrevista psiquiátrica) e sobre seus protagonistas, a saber, o entrevistador e o paciente entrevistado.
A questão insolúvel da validade recebeu um tratamento a partir da proposição de revisões sistemáticas, que seguiam seu curso com a elaboração do DSM-III. A questão da solução do problema da validade científica do DSM poderia ser definida como a de uma validade postergada, uma vez que, para a maioria das categorias clínicas, não há achados laboratoriais que justifiquem uma condição médica. Andreasen (2007) informa que “a maioria das categorias diagnósticas são baseadas em julgamento clínico, e não foram totalmente validadas por dados importantes como correlação do curso clínico, da história familiar, e resposta ao tratamento”.
A expectativa de solução do problema da confiabilidade, intimamente relacionada ao consenso entre opiniões clínicas sobre um determinado caso avaliado, foi depositada no DSM-III, como declarado por Gerald Klerman num debate em 1982:
A meu ver, a realização do DSM-III representa uma reviravolta decisiva na história da profissão psiquiátrica americana [...]. A decisão da APA de elaborar e promover seu uso significa da parte da psiquiatria americana a reafirmação vigorosa de sua identidade médica e de seu pertencimento a medicina cientifica [...]. E continuou: o tema desse encontro é a ciência a serviço da cura. Como compreendo, o DSM é a encarnação mesma desse tema, mais que qualquer outro adquirido pela psiquiatria americana desde o aparecimento dos novos medicamentos.
E concluiria: não existe manual de psicologia e de psiquiatria que não utilize o DSM-III por princípio organizador [...] esse debate já é anacrônico. A vitória do DSM-III foi reconhecida pelos nossos colegas e nossos adversários em psicologia e outras profissões da saúde mental e em outros países. (KLERMAN, 1984, apud KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 27).
Outro registro da importância do lançamento do DSM-III em 1980 para a psiquiatria americana foi realizado por Gerald Maxmen, também defensor do manual, em seu livro “Os novos psiquiatras” (1985):
Em 1º de julho de 1980, a supremacia da psiquiatria tornou-se oficial. Naquele dia a APA publicava um sistema de diagnóstico psiquiátrico radicalmente novo, o DSM-III. Adotando o DSM-III, cujas bases são científicas, como sistema oficial diagnóstico, os psiquiatras americanos rompiam com a tradição que já durava 50 anos de diagnósticos baseados na psicanálise. Talvez mais do que qualquer outro evento, a publicação do DSM-III mostra verdadeiramente que a psiquiatria operou uma revolução. (MAXMEN,1985, apud KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 27-28).
Os Neo-Kraepelinianos acreditaram que haviam conseguido o intento de melhorar a confiabilidade diagnóstica pela melhoria da taxa de concordância entre atribuições de diagnóstico. Robert Spitzer declarou que o reexame das provas de campo demonstrou boas taxas de confiabilidade, e Gerald Klerman declarou, por sua vez, que o problema da falta de confiabilidade nas categorias havia sido resolvido e que o DSM-III promovera uma revolução na psiquiatria. Entretanto, autores como Stuart Kirk e Herb Kutchins (1998, p.28), psicólogos e professores da Universidade de Columbia e Berkeley, respectivamente, declararam que a revolução do DSM-III foi somente uma revolução de discurso. Ressaltaram que houve vários problemas metodológicos nos testes de confiabilidade tais como o fato de que, diante da dificuldade em controlar estudos realizados em mais de um lugar ao mesmo tempo, os cálculos incidiram sobre os profissionais mais acessíveis, restringindo desse modo o número de pacientes aos quais os diagnósticos foram atribuídos. Ainda assim, nesses casos, a taxa de concordância não ultrapassou o limite estipulado pelo coeficiente Kappa2de (0,7), então usado, para calcular a taxa de concordância entre diagnósticos e apurar a confiabilidade das categorias usadas. Outros pesquisadores observaram que as taxas de concordância obtidas nos testes não se repetiriam no uso clínico cotidiano.
2 Em 1967, Spitzer, Fleiss, Cohen & Endicott publicaram um artigo intitulado “Quantificação do acordo no diagnóstico psiquiátrico”, que propunha o uso de um índice para ajuste da concordância entre os resultados de pesquisa - o coeficiente Kappa de Cohen. Criado para aplicação em outros campos acadêmicos, em psiquiatria ele traria a vantagem de sua destinação inicial como retificador das taxas de confiabilidade. A inconsistência nas taxas de concordância e a necessidade de se apurar a prevalência dos transtornos na população que levaram Spitzer e seus colaboradores a proporem o coeficiente Kappa como um exemplo de fórmula capaz de abolir a incidência do acaso nas pesquisas. Sua fórmula é a seguinte: k=(po-pc)/(1-pc), onde po é a proporção de acordo observado, pc o acordo atingido por acaso e o denominador 1, indica a concordância perfeita. As medidas para avaliação dos resultados considerariam taxas que variam de 0 (concordância devida ao acaso) a 1(índice máximo de concordância) com o índice 0,7 sendo considerado como média aceitável.
Diante dos questionamentos, de acordo com a filosofia de trabalho do Comitê de Nomenclatura e Estatística, de tratar os possíveis defeitos do manual como questões de ajuste entre as edições, a APA investigou a variação dos dados das entrevistas e organizou novos experimentos de atribuição de diagnósticos do DSM-III-R. As pesquisas usaram quatro métodos diferentes, e um deles envolveu o uso de softwares ou de questionários de entrevista para identificação dos sintomas dos pacientes. Foram realizadas, também, entrevistas que foram discutidas pelas equipes para que se chegasse a um diagnóstico pelo consenso. Porém, a comparação entre os resultados dos métodos mostrou que os índices do Kappa oscilaram entre (0,5) e (0,6), enquanto a taxa básica para concordância em Kappa é de (0,7). Dos cinquenta pacientes que participaram do estudo, somente em vinte e sete dos casos observou-se concordância na atribuição diagnóstica.
Os estudos e a reanálise de dados de pesquisa de confiabilidade após a publicação do DSM-III mostraram problemas maiores com relação ao diagnóstico de esquizofrenia. Nos Estados Unidos, por exemplo, os psiquiatras mostraram propensão em expandir a atribuição do diagnóstico de esquizofrenia, identificando sintomas dessa categoria em pacientes para os quais pesquisadores de outros países atribuíram outros diagnósticos.
O uso de sistemas de diagnóstico diferentes também não diminuiu as discordâncias. A comparação dos resultados mostrou que na aplicação dos critérios da CID-8, em um grupo de setecentos e seis pacientes diagnosticados como psicóticos, sessenta e oito receberam diagnóstico de esquizofrenia. Quando foi o caso da apuração da aplicação realizada por um computador o número diminuiu para cinco. Na aplicação dos Critérios Diagnósticos de Pesquisa (CDP), de autoria dos Neo-Kraepelinianos, os resultados indicaram que vinte e oito portavam a doença e a avaliação do DSM-III indicou dezenove pacientes (BENTALL, 2004, p. 65).
3. Conclusão
A persistência do problema da baixa convergência na atribuição de diagnósticos indicava que o foco do controle que permitiria uma solução para o problema da baixa taxa de confiabilidade da classificação poderia se dividir em duas linhas de ação relacionadas à dispersão de critérios na atribuição de diagnósticos e à dispersão de informações fornecidas pelos pacientes e coletadas nas entrevistas clínicas. O enquadramento da entrevista como foco do controle da exploração clínica era uma necessidade, como também a definição de uma fórmula estatística que permitisse abolir o acaso na convergência de pareceres sobre um diagnóstico emitido por clínicos em situações diferentes na avaliação de um paciente. O impacto generalizado que a aplicação dessa fórmula estatística teria na clínica, diria respeito, a partir da formação de novos psiquiatras, não só à exclusão do sujeito, mas também a extirpação, no DSM-III, das referências à psicanálise, totalmente dependentes da imprevisível manifestação do inconsciente como fenômeno clínico. Diria respeito também à demissão da verdade enquanto preocupação teórica sobre a etiologia das doenças mentais e um deslocamento da questão do método, como instrumento de acesso ao real, para a estatística enquanto definidora de evidências clínicas. Diria respeito ao abandono gradual da psicopatologia como uma disciplina de formação e de investigação clínica.
O problema da validade científica dos diagnósticos psiquiátricos, ao invés de apontar para necessidade de uma análise dos fundamentos da pesquisa, que ao mesmo tempo reabrisse o debate sobre os princípios metodológicos usados na clínica dos problemas psíquicos, com o advento do índice Kappa, poderia ser senão abolido, ao menos adiado para as edições subseqüentes.
Referências Bibliográfica
ANDREASEN, Nancy C. et.al.. DSM and the death of phenomenology in America: the rise of psychoanalysis and the mid-Atlantic counterrevolution. The University of Iowa College of Medicine Mental Health Clinical Research Center, Iowa City, IA. Disponível em: <http://www.medscape.com/viewarticle/557763_3> Acesso em: 24, fev. 2009.
BENTALL, Richard P. Madness Explained, psychosis and Human Nature. England: Penguin, 2004. http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/rosenhan.pdf, último acesso em: 31, jan. 2010
DECKER, Hannah S. History of Psychiatry, How Kraepelinian was Kraepelin? How Kraepelinian are the neo-Kraepelinians? Vol. 18, No. 3, 337-360 (2007) DOI: 10.1177/0957154X07078976, disponível em:
< http://hpy.sagepub.com/cgi/content/abstract/18/3/337>
KIRK , S. & HUTCHINS, H. Aimez-Vous le DSM? Le Triomphe de la psychiatrie américaine. Collection Les êmpecheurs de Penser em Rond-Institut Synthélabo pour le progrès de la connaissance, 1998.
OTHMER, EKKEHARD. A entrevista clínica utilizando o DSM-IV-TRtm / Ekkehard Othmer e Sieglinde C. Othmer; PP. 24. trad. Cláudia Dornelles. Porto Alegre: Artmed, 2003.
ROSENHAN. Sobre Ser São em Lugares Insanos. Science 19 January 1973: Vol. 179. no. 4070, pp. 250 – 258): Traduzido por Renata F. Brasileiro, disponível em: http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/rosenhan.pdf, último acesso em: 31, jan. 2010.
SLATER, Lauren- Sobre Ser São em Lugares Insanos – Experimentos com Diagnósticos Psiquiátricos. Mente e Cérebro, (p.82-115):Traduzido por Vera de Paula Assis.- Rio de Janeiro : Ediouro Publicações Ltda., 2004.
Recebido em Junho de 2010
Aceito em Agosto de 2010
|
|