É sabido que Freud não tinha muito entusiasmo por si mesmo como terapeuta. Por outro lado, falava com confiança das possibilidades de pesquisa que a psicanálise ----a psicanálise que ele chamava de aplicada ----poderia oferecer: “[...] essa perspectiva de ganho científico tem sido a feição mais orgulhosa e feliz do trabalho analítico” (FREUD, 1926/1976,
p. 291).
Se é verdade que “o único critério de validade para a teoria psicanalítica é sua transmissibilidade” (SILVESTRE, 1991, p. 35), ele observará que, embora o estudante de uma faculdade de medicina jamais aprenderia algo da psicanálise propriamente dita ----a psicanálise pura ----, por não possuir uma experiência direta e pessoal da análise, nem por isso a transmissão nesse contexto perderia sua utilidade: “será suficiente que ele aprenda algo sobre e que aprenda algo a partir da psicanálise” (FREUD, 1919/ 1976, p. 220).
Em Lacan, registramos as duas principais entradas sobre a psicanálise aplicada, em sua obra, primeiramente no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris, em 1964, e pouco depois, já como psicanálise em extensão, na Proposição de 9 de Outubro de 1967. Se a psicanálise aplicada atende essencialmente à interlocução com a terapêutica e a clínica médica ----aqui, ele acompanha os passos de Freud ----, a psicanálise em extensão surge como a função de nossa escola como presentificadora da psicanálise no mundo.
Foi a partir dessas referências que, no começo dos anos 1990, como uma estratégia clínica sustentada por Antonio Di Ciaccia e demais integrantes da Antenne 110, da Bélgica, instituição de tratamento para crianças autistas e psicóticas, surge o desdobramento aplicado da prática entre vários.
Além de outros autores que, desde aquela época, irão contribuir para a ampliação dessa experiência ----Baio, Viganó, Zenoni, são alguns deles ----, a função da prática entre vários e da psicanálise aplicada em instituições reproduz uma pragmática clínica orientada pela própria psicose, pelo autismo e pelas condições dramáticas de discurso que recolhemos do contato diário com aqueles pacientes mais graves.
No Brasil, e especialmente em nosso estado, após mais de duas décadas de inserção da psicanálise aplicada nos serviços de saúde mental (BARRETO, 2009), podemos comemorar a publicação recente, na revista psicanalítica eletrônica Clinicaps: impasses da clínica, de um mapeamento dos CAPS em Minas Gerais e de uma “Avaliação da Metodologia da Conversação Clínica junto aos CAPS de Minas Gerais”.
Seja como for, a partir dos discursos originais de Freud, Lacan e outros, hoje aceitamos a tese de que a construção do caso clínico enseja um valor de método para a psicanálise aplicada, na prática entre vários.
De nossa parte, acolhemos sem ressalvas o fato de que a conversação clínica em torno de um caso não admite seu tratamento como mais um entre amostras de uma coleção, sob pena de se apagar tanto seu valor de exemplo quanto sua potência de invenção sintomática singular.
É a particularidade do caso e seu valor de exemplo, sob o ângulo de relações visíveis, manifestas, o que se apresenta em sua simplicidade, e à maneira como se diz em geometria que um caso particular tem uma certa superioridade de evidência totalmente deslumbrante em relação à demonstração, cuja verdade subjaz, em razão de seu caráter discursivo, velada sob as trevas de uma larga cadeia de deduções”. (LACAN, 1952/ 2008)
Além disso, entendemos que é no contexto da prática entre vários que a construção do caso na prática entre vários pode se tornar “a única resposta praticável, quando não há meio de fazer de outra forma” (ZENONI, 1998, p. 12).
Com base nesses argumentos, gostaria de arriscar alguns elementos mínimos para a CCC nas comunidades de trabalho em que nem todos são analistas. Proponho que esses elementos correspondem à “lógica interna” (PINTO, 2009, p. 08) da construção de casos clínicos, conferindo-lhes forma e função, e que, além disso, estão dispostos numa certa combinatória que pode mudar de acordo com as próprias experiências locais. A importância de cada elemento varia conforme a condição clínica de cada equipe ou instituição.
1. A CCC requer desierarquização, transferência de trabalho e desejo do analista
O valor de método clínico da construção de casos está determinado por seu caráter de transmissão a partir de exemplares ímpares, em que se destaca um pormenor ou resíduo de saber que autoriza aquele caso, e nenhum outro, como passível de reconhecimento e de acolhimento clínico pela comunidade de trabalho que o recebe.
Ele envolve, porém, o privilégio de uma abordagem mais literal ou textual dos fenômenos da clínica, por oposição a um saber referencial ou semântico-conceitual. A abordagem literal é a que privilegia, anteriormente aos enunciados, a enunciação. O saber fazer a que o paciente se dedica, nas diferentes atividades clínicas, diz mais de sua posição subjetiva – daquilo que ele suporta ser – do que o que ele diz querer, do que o que ele almeja ser ou do que os conceitos da psicopatologia indicam. Nessa vertente da letra, do literal, é menos a dimensão da significação e mais o registro do ato que orienta a direção do tratamento. Por conseguinte, ela implica também que os praticantes da construção a ela se apresentem mais munidos de um estilo pessoal de convívio do que de um saber prévio, acadêmico, universitário. Diremos, portanto, de uma desespecialização (STEVENS, 2007) e uma desierarquização (ZENONI, 1998) que não isentam, nem o psicólogo, nem o terapeuta ocupacional, médico, analista ou qualquer outro, de assumir um lugar de referência clínica, para além de sua formação profissional. A prática entre vários é, portanto, desierarquizante, porque faz de cada um o responsável pela invenção constante, diária, dessa própria prática. Ela “fura a instituição e o trabalho analítico através da construção do caso que atravessa todos os pontos de vista dos especialistas” (STEVENS, 2007, p. 79). Neste sentido, inclusive, podemos entender que o primeiro caso clínico é o da própria instituição, que precisa rever seus protocolos clínicos e regulamentos muito hierarquizados, estanques, e começar a se perguntar sobre o que resta de inventivo e indecidível na experiência diária, seja com seus usuários, seja com os da própria equipe.
Pois, se a política institucional, habitualmente, faz terraplanagem das diferenças mínimas e engaja sua prática na tautologia, na repetição, na inércia do discurso do mestre, ao contrário, com a desierarquização exigida pela CCC, os vários integrantes da equipe posicionam-se no mesmo nível de responsabilidade transferencial, desde o vigilante até o analista, passando pelos assistentes sociais, pessoal administrativo, enfermeiro, médico, etc. Na CCC, tanto o PTI, Projeto Terapêutico Individual, quanto o saber prévio do técnico de referência perdem força, esvaziados dos seus ideais de orientação clínica uniformizante.
Equipe multidisciplinar |
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Prática entre vários |
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Projeto terapêutico individual |
Construção do caso clínico
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Técnico de referência |
Técnico de transferência |
Nossa aposta é, assim, que essa estratégia se articule através da transferência de trabalho, para proceder à construção do caso e “fazer caminhar o coletivo não-todo da equipe, sustentando um certo vazio de saber” (FIGUEIREDO; GUERRA; DIOGO, 2006, p. 138).
Se nem todos ali são praticantes da psicanálise, um acordo sobre os fundamentos básicos, sobre as premissas conceituais da construção do caso, seria suficiente para que cada um, como Freud indicou, pudesse aprender algo sobre e algo a partir da psicanálise e, assim, orientar analiticamente aquela construção.
Ao examinar essa questão a partir de uma fórmula atribuída a Éric Laurent, Alexandre Stevens concorda que são “analisantes civilizados” aqueles que, na comunidade de trabalho institucional, ou estão em análise ou suportam uma transferência com “a psicanálise enquanto sujeito suposto saber”, e que são “regulados por essa transferência” (STEVENS, 2007, p. 8081).
Portanto, não necessariamente analistas, mas necessariamente sob transferência.
Como último ponto desta seção: uma transferência com “a psicanálise como sujeito suposto saber” implica, a nosso modo de ver, como condição, que a transferência seja induzida por pelo menos um que faz da psicanálise causa de desejo. Temos, então, a condição do desejo de um analista, ao menos um, para fazer circular a suposição de saber em torno do corpo doutrinário da psicanálise. E aqui, não é somente a presença do analista que conta, mas
o desejo do analista, que condiciona internamente a experiência da construção do caso clínico. Isso nos parece de acordo com a ideia de que esse desejo do analista não está limitado à cura. Ele faz avançar a transmissão, lá onde não seria possível fazer de outra forma (ZENONI, 1998, p. 13). O desejo do analista, mais que sua presença, pode mostrar-se decisivo quanto ao efeito de indução do significante freudiano na prática entre vários. Ele pode inocular um desejo novo no tecido técnico-referencial das equipes convencionais, desenvolvendo as condições para que uma transferência de trabalho instale-se em torno da construção do caso. Outro modo de dizê-lo: há um saber, a ser extraído do paciente, que depende diretamente de uma transferência de trabalho (VIGANÓ, 1999, p. 59). O desejo do analista pode inspirar a constituição dessa transferência no seio da equipe, tomando a construção do caso como meio de trabalho compartilhado.
2 – A CCC envolve a eleição de um saber disjunto, afirmação ética precisa ea conversação clínica
A expressão pedaços de real surge em O Seminário, livro 23 -o sinthoma, para mostrar de que modo, em Joyce, a orientação pelo real forclui o sentido. Os pedaços de real remontam ao S ( A ), a uma falta estrutural no simbólico e, nessa medida, consistem naquilo
tem a propriedade de “não se ligar a nada” (LACAN, 1975-1976/ 2007, p. 119), que subsiste como um nódulo de opacidade significante no aparelho da linguagem. Aqui, portanto, nada de lei simbólica (enquanto o Φ inaugura a lei simbólica pela metáfora da falta); nada de sentido (enquanto o Φ instaura a significação do falo); nada de parceiro (enquanto o Φ, “primeira letra da palavra fantasia”, coage o sujeito à busca pelo parceiro de gozo). |
Pedaços de real são aquilo que os psicóticos e os autistas oferecem como o “caroço” (ZAVALLA, 2004, p. 119), ou como “nódulos verbais espessos e atípicos” (ZAVALLA, 2004, p. 107) a serem assimilados pela prática entre vários. Esses nódulos que “não se ligam a nada” comumente ficam espalhados pelo ambiente dos serviços de saúde, como as pegadas de Sexta-feira na praia de Crusoé. Nada se sabe delas, exceto que não se dirigem a nós. A decisão pela conversação em torno desses pedaços de real (BAIO, 2007, p. 168) é uma escolha forçada pela ressonância ética do método da CCC. É uma escolha contra a elisão do sujeito sob categorias universalizantes. É uma decisão pela elevação de suas respostas à dignidade de sinthomas. Essa escolha é solidária ao vazio de saber (FIGUEIREDO; GUERRA; DIOGO, 2006, p. 135), ou a posição de “não-saber” (STEVENS, 2007, p. 84) pela qual os praticantes da construção, como “aprendizes da clínica”, podem acolher ou mesmo provocar essas invenções inúteis para o sentido e reconfigurá-las para uso do próprio sujeito que as produziu.
De enunciados sem apelo ao Outro, a tarefa não é de transformá-los em enunciados plenos de sentido: isso nos condenaria a ocupar o lugar do “herói hermenêutico” de que fala Éric Laurent (ANSERMET; BORIE, 2007, p. 157). O desafio é preservar, no dito, sua potência de dizer; viabilizar, no enunciado atípico, a passagem ao estilo de um sujeito da enunciação.
As duas noções anteriores nos parecem articuláveis a outra, de O Avesso da Psicanálise: aquela de um saber disjunto. O que nos interessa de perto é o seguinte: o saber do mestre se produz de forma inteiramente autônoma em relação ao saber mítico, e isto, para Lacan, é o que se chama “ciência”. Esse saber trata da conservação de uma regularidade, de uma cifra ou unidade, que só pode ser construída a partir da ilusão de que o significante seja capaz de significar a si mesmo. Nesse caso, não há nada de um sujeito peculiar capaz de fazer uma entrada inaudita no cálculo lógico, formal. Tudo ali está previsto para excluir a “contingência inoportuna” (LAURENT, 2003, p. 69) do circuito onde se decidem os valores proposicionais. Tudo ali está previsto para afastar o imprevisto ----como vimos, o universo quineano visa ao “extermínio dos intrusos” (MILLER, 2007, p. 236).
Porém, e aqui está estaria o ponto principal: se o discurso da lógica proposicional é fundamentalmente tautológico, porque “rejeita e exclui a dinâmica da verdade” e serve para recalcar aquilo que habita o saber mítico ----paradoxalmente, no mesmo movimento ----ele volta a se deparar com “o que reencontramos nas espécies do inconsciente, quer dizer, como resíduo desse saber, sob a forma de um saber disjunto” (LACAN, 1969-1970/ 1992, p. 85). E
o mais importante: “o que será reconstruído desse saber disjunto não retornará de maneira alguma ao discurso da ciência, nem às suas leis estruturais”, ou seja, é preciso outro aparato metodológico apto a reintegrar o saber disjunto a um campo de saber compartilhado.
É nesse aspecto que a psicanálise se torna um recurso ímpar, no sentido de “preservar um espaço de legibilidade para um sujeito particular” (DHÉRET, 2007, p. 145). A psicanálise é o recurso final de quem sustenta que seu desejo tem uma assinatura, ou que seu gozo não possui precedentes.
O saber disjunto é aquele cuja assimilação pelo universal revelou-se impossível, e que só o dispositivo de uma construção a partir do singular seria capaz de restituir. A eleição do saber disjunto como objeto da prática entre vários não é garantia de nada ----que garantia poderíamos extrair de “pedaços de real”? Assim como o inconsciente furta-se à causalidade lógica e à lei da temporalidade, esse saber, se vier à luz, será obtido por acréscimo, a posteriori, e sua legitimação terá que esperar por suas consequências para se afirmar. Como se manifestaria para nós, então, a articulação entre as três noções acima?
Nossa hipótese para uma fórmula mínima da construção do caso, na prática entre vários, seria a seguinte: quando um vazio de saber institucional suporta acolher um pedaço de real em ato, criam-se as condições de produção de um saber disjunto.
E aqui nos defrontamos com a penúltima e, talvez, a mais difícil de manejar entre as propriedades da construção, no ambiente da instituição. É que o vazio de saber que fundamenta a posição dos praticantes deve incidir, também, sobre o que devemos querer para “o bem dos pacientes”. A afirmação ética precisa que recorta e suspende a “promoção do bem estar” e o “desejo de curar” contradiz o ideal dos serviços de saúde em geral e choca particularmente aqueles que, em saúde mental, se dedicam à condescendência moral para com os loucos, considerados deficitários de racionalidade e de responsabilidade. A virada do último ensino de Lacan, colocando o sinthoma psicótico como paradigma para o sintoma neurótico, representa a tradução clínica do paradoxo ético levantado por Freud, a partir do reconhecimento da pulsão de morte.
Na prática entre vários orientada pela psicanálise, é inevitável certo afastamento da ética do bem-estar, de querer o bem do outro, segundo nossas convenções.
Em Aristóteles, encontramos uma aproximação entre o Bem e o Bem Estar e, na medida em que a busca do Bem consiste num exercício em direção à excelência moral, ela é também da ordem da felicidade (BARRETO, 2009, p. 26). Há em Aristóteles uma “disciplina da felicidade” acessível àqueles que praticam a virtude do mesotes, ou meio-termo; pelo evitamento de todo excesso, seria permitido a cada homem realizar-se em seu bem próprio (LACAN, 1959-1960/1988, p. 351). Em Kant (1788/2002), já surge a cisão entre um e outro, quando ele distingue das Gute, o Bem, de das Wohl, o bem-estar:
O Wohl ou Übel <bem-estar ou mal-estar> sempre significa somente uma referência a nosso estado de agrado [Annehmlichkeit] ou desagrado [Unannehmlichkeit], de prazer e dor, e se por isso apetecemos ou detestamos um objeto, isto ocorre somente na medida em que ele é referido à nossa sensibilidade e ao sentimento de prazer e desprazer que ele produz. Mas o Gute ou Böse <bom ou mau> significa sempre uma referência à vontade, na medida em que esta é determinada pela lei da razão a fazer
de algo seu objeto. (KANT, 1788/ 2002, p. 96-97)
Porém, foi preciso esperar por Freud para formalizarmos clinicamente o fato de que um sujeito que renuncia às pulsões, em benefício da cultura e da civilização, em nada suaviza as exigências do supereu que lhe ordena a renúncia. Pelo contrário, cada desistência de uma satisfação só faz aumentar a severidade do supereu. A psicanálise constata, a partir da clínica, que não é por devotar-se a servir ao Bem Comum que um sujeito se reconcilia com seu Bem Estar Próprio. Alguém pode estar em perfeito acordo com seu máximo Bem, estando em perfeito desacordo com as normas sociais do bem-estar. Os contornos clínicos desse fato nos são acessíveis em fenômenos que vão desde o masoquismo à repetição compulsiva, passando pelo sentimento de culpa, pela reação terapêutica negativa, pelo afeto depressivo, etc.
Quando, então, dedicamos nosso enfoque de atendimento à intenção de fazer o bem, como saber que não estamos impelindo o sujeito, justamente, ao mal-estar? Que sabemos do que, para ele, é seu bem-estar no Mal, ou seu mal-estar no Bem? A direção ética da construção do caso entre vários deve reservar-se a não querer o bem. Mas, dirão alguns: vocês se meteram no serviço público, para o qual o mais importante é o bem comum, é procurar fazer o bem como um dever. Certo. Isso, porém, não se faz sem o consentimento do sujeito. “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”, é o que Lacan ( 1965/ 1998, p. 859) relembra em A ciência e a verdade.
Um caso construído por Valérie Péra-Guillot evoca esse tema. Trata-se de um jovem esquizofrênico que procura a instituição visando assegurar-se de alguma “socialização”, quando tinha problemas sérios com a mulher que amava e já havia perdido todo o status social. Como gostava muito de música, a equipe achou por bem que ele participasse de um ateliê musical – algo semelhante a nossas conhecidas “oficinas”. Ele compareceu somente a uma sessão, e não mais voltou. Dois anos depois, retorna, agora em cadeira de rodas, após uma passagem ao ato suicida. Começam, então, a se empenhar em sessões de fisioterapia e exercícios variados, acreditando que ali estava o bem último a ser resgatado para esse sujeito. O ponto principal é o seguinte: a equipe, letárgica, ficou fascinada pela paraplegia, dedicandose com furor ao desejo de restituir-lhe o uso das pernas, enquanto o próprio sujeito manifestava persistentemente que sua autonomia passava por outros caminhos: ele gosta de escrever, torna-se locutor na rádio da instituição, quer colocar a estética musical a serviço da ética, ou seja, do laço social. “Minha potência está na voz, o importante é o verbo”, diz ele, “Depois que fiz o luto de meu corpo, posso andar”. Ensurdecidos diante da ideia de que seu Bem passava pela recuperação do uso das pernas, a equipe esqueceu-se de ouvir o Bem que ele reconquistava pelo uso das palavras. “A imagem do corpo ferido e desamparado mobilizou nosso desejo por muito tempo: furor de curar. Ora, o essencial desenrolou-se alhures, nas ‘deflagrações de palavras’ que ele fez ressoar em seus textos e sobre as ondas do rádio...” (PÉRA-GUILLOT, 2007, p. 201).
Em geral, a ética resume-se a um código impresso que fica esquecido até que alguma infração dramática venha convocar sua releitura e as sanções devidas. Cai um prédio, um paciente morre à mesa de cirurgia, um deputado rouba: invoca-se o código de ética. Em psicanálise, a ética é operativa. É uma ética prática. Ela consta em cada sessão, em cada intervenção do analista, como um operador clínico que relembra a esse analista, a todo instante, a questão de partida: qual a medida de tua ação? É assim que entendemos o que foi escrito por Lacan no Ato de fundação: “Ética da psicanálise, que é a práxis de sua teoria” (LACAN, 1964/ 2003 p. 238).
Talvez seja mesmo necessário apresentar aos operadores da transferência, na prática entre vários, certas premissas fundamentais decorrentes do ato psicanalítico, pautado por tal ética. Por exemplo: i) frear o furor terapêutico; ii) não se colocar no lugar do paciente; iii) evitar a interpretação pela intersubjetividade; e, sobretudo, iv) não querer o bem do paciente. Nas palavras de Lacan: “Diria mais – poder-se-ia, de maneira paradoxal, ou até mesmo decisiva, designar nosso desejo como um não-desejo de curar” (LACAN, 1959-1960/ 1988, p. 267).
Suportar não querer o bem não é tão difícil. Difícil é querer o bem e não suportar seus efeitos, que adveem como fenômenos do transitivismo imaginário: a erotomania, a persecutoriedade, a demanda insaciável, a ira da insatisfação, a angústia pela perda do amor, a dependência compulsiva, etc.
Chegamos ao final. O último de nossos elementos mínimos se refere aos meios de suporte coletivo da construção dos casos. Eis a questão: a elaboração do caso clínico envolve redação, escrita do caso, ou simplesmente comentário e conversação?
A CCC em psicanálise é de hábito associada a uma narrativa que comporta variações, seja na perspectiva de um “relato contínuo do sujeito com seu inconsciente” (LAURENT, 2003, p. 70) – como nos casos freudianos clássicos –; seja ao modo de uma monografia exaustiva – como no caso Aimée, de Lacan –; seja no relato sessão-por-sessão – inaugurado por Melanie Klein –; ou, finalmente, nos relatórios do tipo vinheta clínica, em que se busca recuperar um fragmento em destaque na história pulsional de um sujeito ou na pertinência doutrinária de um conceito psicanalítico.
O material comum às diferentes versões da apresentação de casos clínicos é que, primeiramente, eles testemunham a tensão inerente ao encontro de cada sujeito com um problema de gozo, o que se traduz, no dispositivo da cura, como algo de impossível redução pela via do significante: é isso o que Eric Laurent identifica como a contingência inoportuna a ser capturada pelo caso clínico, ou seja, uma “gravitação da lógica do significante no campo de gozo” (LAURENT, 2003, p. 69). Outro elemento em comum nos casos psicanalíticos é que eles se depositam em escritos. Nas diversas variações da estrutura de suporte do relato, persistiu a necessidade de se fazer uma redação, uma escrita do caso.
Sabemos que o vocábulo caso originou-se do verbo latino cadere: cair, tender para baixo. Em nossos termos, significa ir para fora de uma regulação simbólica, num encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível e que é, portanto, impossível de ser suportado. Clínica, por sua vez, vem do grego klyné, ou seja, leito: é o ensinamento que se recolhe ao lado do leito do paciente, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito. Um ensinamento que não é teórico, mas que se dá a partir do particular. Não é construído a partir do universal do saber, mas do singular de cada sujeito (VIGANÓ, 1999, p. 51).
Sabemos também que a construção e a interpretação não coincidem. Interpretação éa decifração dos significantes recalcados, perdidos ou esquecidos, aqueles que a transferência atualiza. É uma operação simbólica que visa extrair o real do gozo pela via dos significantes. A construção, por outro lado, nos remete à indestrutibilidade do objeto psíquico. A construção visa a restaurar a topologia de um furo que não é o furo da perda dos significantes, mas o furo de um objeto perdido que causa o desejo. Esse furo marca o objeto, mas enquanto perdido para sempre, assim como marca as tentativas de cada sujeito de haver-se com ele e de reavê-lo. O trabalho de construção consiste no “testemunho das diversas fases do trabalho do analisante” (VIGANÓ, 1999, p. 55), no sentido de recapturar o objeto precioso que lhe falta, ou de reencontrar um lugar discernível para o que é sem sentido em sua história pulsional, em sua vida.
Assim, construir o caso clínico é colocar o paciente em trabalho, registrar seus movimentos, recolher as passagens subjetivas que constam em sua história de vida, para que o analista esteja pronto para escutar sua palavra, quando esta vier, se vier.
Recolher e registrar as passagens importantes na história de um sujeito corresponde a inscrevê-las em alguma instância de discurso. A inscrição da trajetória de um sujeito, marcada pelo seu encontro e desencontro com o Outro e com o real pulsional, é o que entendemos por “meios de suporte coletivo” para a CCC. Haveria necessidade dessa inscrição depositar-se numa escrita do caso?
Reconhecemos no dia a dia da clínica a hipótese de que, na prática entre vários, no âmbito da APS, do CAPS ou do hospital, a construção do caso decorre, antes, de uma conversação clínica.
Como afirma Baio:
Descubro que escolhemos ‘conversar’ a partir dos pedaços de real da criança, a
partir dos impasses estratégicos e táticos do coletivo, passando pelo instante de ver,
levando ao tempo para compreender a lógica e chegando ao momento de concluir,
para que cada um aceite uma mesma política e uma mesma estratégia, mas deixando
cada um, no seu ritmo, encarnar essa estratégia segundo seu estilo, suas manobras,
seu saber-fazer-com-isso sintomático. (BAIO, 2007, p. 168)
A conversação clínica trata, portanto, de adaptar a cura ao caso, de retificar a posição do analista (em nosso caso, dos operadores da transferência) e, ainda, de fazer a experiência clínica avançar (ZAVALLA, 2004, p. 49). Essa conversação seria, a nosso ver, um exercício semelhante ao que Lacan fez em seu exame do drama de Hamlet, o que ele denominou como seu “método implacável de comentário dos significantes” (LACAN, 1959-1960/ 1988, p. 305). Esses comentários se dirigem a um problema de gozo, a um nó que enlaça a dor ao prazer, no cerne de um sintoma; mais especificamente, o problema de gozo se deve a um mal funcionamento desse nó, que se afrouxa ou rompe, liberando uma espécie de hemorragia de libido cujo sinal mais freqüente é a angústia. Os nós de gozo que constituem sintomas estruturam-se como uma linguagem e constituem o texto que ordena a realidade, e o índice de que nos aproximamos da realidade subjetiva no sintoma é a presença da angústia: “a verdadeira captura do real se encontra na função da angústia, única apreensão derradeira da realidade como tal” (LAURENT, 2007, p. 138).
A flutuabilidade do laço que mantém unidos simbólico, real e imaginário, sua ineficiência em restituir a homeostase da libido e equacionar uma ordenação satisfatória da realidade psíquica remonta, portanto, ao erro nodal ou lapso do nó, mencionado por Lacan na última lição de O Seminário, livro 23 -o sinthoma ( 1976/ 2007, p. 148). Nos comentários finais de Miller sobre esse seminário, o que Lacan chamou de “erro do nó” tem a função de uma transformação cuja propriedade é de desenlaçar o nó de trevo, fazendo dele uma simples rodinha de barbante. O princípio do tratamento matemático da questão é de que tal erro, definido como uma singularidade ou uma catástrofe na estrutura dos nós, produz-se quando uma parte do nó atravessa uma outra em um “ponto duplo”: nesse instante, o nó se torna singular, para logo depois voltar a ser comum, ou regular, mas, eventualmente, diferente do nó inicial (MILLER, 2007, p. 217). Podemos, a partir disso, articular a singularidade a um ponto de catástrofe que a, construção do caso viria trazer à luz.
A conversação clínica teria, portanto, a função de destacar os significantes que se desprendem no decorrer de uma catástrofe subjetiva, ocasionada por um lapso na amarração entre os registros do simbólico, real e imaginário.
Nossa fórmula mínima da CCC, então, se especifica ainda mais: quando um vazio de saber institucional suporta inventariar os pedaços de real, os resíduos significantes envolvidos numa catástrofe subjetiva, em torno de uma conversação clínica, criam-se as condições de produção de um saber disjunto.
A nosso ver, o inventário desses resíduos ou destroços significantes não precisa esperar pela redação e escrita do caso para se realizar. Se todo caso é “sempre, de uma certa forma, um ‘caso de urgência’” (LAURENT, 2003, p. 74), a conversação clínica é um recurso de construção mais adaptado ao tempo da urgência. Ele não impede um desenvolvimento, posterior ou simultâneo, na forma da redação, mas, no momento da pressa em que se desenrola uma catástrofe subjetiva, a conversação clínica permitiria aos vários praticantes responder de forma mais imediata, adequada e precisa.
Em nossa pesquisa chegamos, finalmente, a uma formalização mínima da construção de casos clínicos na prática entre vários: quando um vazio de saber, cavado no espaço institucional por uma transferência de trabalho com a psicanálise, identifica os pedaços de real e os resíduos significantes dispersos numa catástrofe subjetiva, criam-se as condições de produção e transmissão de um saber disjunto que permitem ao sujeito tratar, de forma inventiva, suas relações com o desejo e com o gozo do Outro.
Esta é a experiência que estamos iniciando junto ao serviço público de saúde mental de Ipatinga, Minas Gerais. Esperamos divulgar seus resultados, proximamente.
Referências Bibliográficas
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