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O presente trabalho parte de um projeto de pesquisa em andamento, a qual propõe
investigar a estabilização na psicose via sintoma. Para investigar de que forma o sintoma na
psicose permite o alcance de uma estabilização, faz-se necessário trabalhar com algumas
definições importantes para o desenvolvimento do artigo - A definição lacaniana de sintoma
como função de gozo, que remete à estabilização no sentido de uma localização e retenção do
gozo (LAURENT, 1989); e a definição freudiana de sintoma como relação de compromisso
entre recalcado e força recalcante, que permite a estabilização na neurose (FREUD, 1915-
1916).
Com relação ao sintoma, consideramos que na neurose há um sintoma padrão,
tipificado, ligado a função fálica. Já na psicose há uma construção singular do sujeito, um não
previsto (VIEIRA, 2005). Mas nesse singular que não se repete, há algo que se repete, o
invariante. O que há de constante, invariante no singular do sintoma do sujeito pode permitir a
estabilização. Nesse sentido, buscamos o elemento invariante como posição de gozo. Esse
algo que aparece como constante nas relações do sujeito é teorizado por Geneviève Morel
através da Clínica da Frase, ((MOREL, 1999) que vai tentar circunscrever o invariante do
sintoma na construção do caso clínico, apontando para uma posição de gozo que permite certa
estabilização ao modo do sujeito, como uma saída encontrada pelo próprio sujeito.
O caso clínico apresentado permite mostrar como a clínica da frase pode ser a melhor
opção para se pensar um caso onde não existem sinais de construção de uma metáfora
delirante pelo sujeito, embora haja um sistema organizado no qual podemos notar a
constância que fornece uma amarração, mesmo que precária, ao sujeito.
O caso Marcelo¹
Marcelo é o primogênito de sete irmãos e filho de um pai com o mesmo nome. Do
casamento de seus pais nasceram quatro filhos, sendo que o mais novo nasceu de uma das
relações extraconjugais da mãe, que segundo Marcelo, eram constantes. No entanto, o pai de
Marcelo registra esse filho como seu.
Quando Marcelo conta com cinco anos de idade, a mãe sai de casa com os dois filhos
mais novos. Marcelo e a irmã Marcela continuam morando com os avós paternos, já que o pai
também sai de casa para trabalhar. Marcelo perde o pai no início da adolescência, e, embora o
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¹ Nome fictício.
convívio entre eles tenha sido breve, este demonstra grande admiração e uma aparente
identificação com a figura paterna.
Quando a mãe fica viúva, casa-se novamente e nascem mais quatro filhos. Marcelo
continua morando com os avós paternos e começa a trabalhar antes de completar 18 anos de
idade, nos anos 80 administrava uma pizzaria que montou.
No início da década de 90, casa-se e sai da casa dos avós. Em 1993 nasce sua única
filha, por quem mantém grande afeição. Afirma sua profissão como contador, porém muda de
emprego várias vezes, acreditando ser vítima de injustiças por parte dos patrões e colegas de
trabalho, através de baixos salários e carga horária maior dos demais.
Entre o final de 1998 e início de 1999, constrói uma casa para sua família, apesar da
instabilidade financeira devido às constantes mudanças de emprego. E, no final de 1999 o
casamento é desfeito por iniciativa da esposa, o que deixa Marcelo desorganizado diante do
seu não saber acerca do motivo da separação. Naquele momento, acreditava que o
relacionamento estava bem. A esposa, então, muda-se para outra cidade com a filha. Marcelo
se mantém passivo diante das decisões do outro.
Após alguns meses morando sozinho na casa construída para a família, decide vendêla,
e o faz por um valor muito abaixo do real. Esse fato o deixa com uma sensação de ter sido
injustiçado, embora a oferta tenha partido do próprio sujeito. Assim, vai morar com uma tia
materna, trabalhando com esta na produção de guirlandas. Em pouco tempo, descobre que
estava sendo roubado pela tia, e a própria o expulsa da casa. Retorna o mesmo sentimento de
ter sido vítima de uma grande injustiça.
Na procura de um lugar para se instalar, Marcelo é convidado pela ex-sogra para
morar em outra cidade, onde permanece por dois meses. Sentindo que estava incomodando
demais, conversa com o irmão e pede para morar com ele. O irmão, então, o traz de volta, mas
o leva para morar com a mãe. Enganado, Marcelo se vê sem alternativas para recusar.
Mais
uma vez, vítima de uma grande injustiça.
A construção do caso clínico permite que se localize o modo particular de cada um,
sua clínica, sua singularidade e como ele próprio pode indicar a direção do tratamento
(VIGANÓ, 1999). É um método que parte do saber do paciente, na medida em que surge o
sujeito como efeito da construção, ali onde havia somente o comportamento.
Nesse sentido, a "Clínica da frase", utiliza o esquema da função proposicional de
Frege, utilizada posteriormente por Lacan, para circunscrever o elemento constante que
representa o conjunto das relações do sujeito.
Frege tenta captar o que há de constante naquilo que varia, nomeando de função
proposicional esse elemento que se mantém no conjunto. A função proposicional de Frege
representa uma maneira diferente de decomposição da frase, não apenas em sujeito e
predicado, mas introduzindo furos na frase, os quais podem ser substituídos. O sujeito é o
furo, mas o que há de constante nesses furos, nessa variável?
A proposta é de pensar a clínica em conformidade com a estrutura de uma frase,
através da qual Morel tenta localizar o gozo do sujeito que aparece apenas nos furos do
discurso. (MOREL, 1999). Dessa forma, o sujeito se apresenta através de uma variável que o
representa, localizado nos furos dentre aquilo que é constante.
Parece que Marcelo se apoia em identificações imaginárias nas quais ele ocupa a
posição do x, como objeto que sofre injustiça do Outro, y. Dessa forma, injustiçado é o
significante que o representa em seu sintoma, é o significante do gozo que permite certo
apaziguamento, e, sobretudo, sustenta esse sujeito em suas relações sem que haja um
desencadeamento.
Nesse sentido, podemos tentar formalizar a aparente ordenação do mundo para
Marcelo, baseada no significante da injustiça, da seguinte forma:
Ser o (x) que é injustiçado por (y)
O pai (Marcelo) |
A mãe (que o traiu) |
empregado |
patrões |
marido |
esposa |
sobrinho |
tia |
filho/irmão |
mãe/irmãos |
Morando então com a mãe, Marcelo recomeça a trabalhar em 2001 como contador,
sendo demitido em 2003 devido ao seu baixo desempenho. Em setembro de 2004 tem notícia
de uma vaga em outra cidade e viaja em busca desse novo emprego. Os acontecimentos no
trajeto provocam o desencadeamento, e as identificações imaginárias que permitiam certa
estabilização, não mais se sustentaram.
Durante a viagem, Marcelo é acusado por duas garotas de fazer gestos obscenos no
ônibus. Na chegada é abordado por policiais que o levam para a delegacia da cidade, ficando
durante algumas horas em uma cela, junto a outros presos, com os quais diz ter sofrido "tudo que se pode imaginar" (sic). Foi um fato que o deixou marcado por uma extrema humilhação
e injustiça.
Assim, a formulação nos moldes da Clínica da Frase seria da seguinte forma:
Ser o (x) que é injustiçado por (y)
A partir de então, Marcelo começou a apresentar fenômenos de alucinação verbal,
sentimentos persecutórios, medo de sair às ruas, sensações de conspirações contra ele e medo
de policiais. As conseqüências desse desencadeamento o impedem de trabalhar. Iniciou
tratamento psiquiátrico e, atualmente, continua morando com a mãe, um irmão, uma irmã e
um sobrinho, os quais, segundo Marcelo, o persegue e o submete a constantes injustiças.
É nesse momento que Marcelo procura a clínica de atendimento psicológico, quando
iniciamos o tratamento. Em seguida, é encaminhado para o Ambulatório Bias Fortes para
acompanhamento psiquiátrico.
As identificações imaginárias nas quais Marcelo se apoia, fazendo do significante
injustiçado o que o representa em seu sintoma, parecem não se sustentar mais, desmoronando
seu sistema significante. Marcelo construiu um mundo onde as oposições significantes se
baseiam em injustiçados e abusadores, por não contar com a inscrição do significante Nomedo-Pai para o registro da função fálica.
No momento em que ele é considerado um abusador, há uma desorganização desse
sistema, pois, trata-se de uma mudança de lugar, agora ele se encontra do lado do y, do lado
dos abusadores. Podemos pensar na seguinte formulação, na qual há uma subversão:
Ser o (x) que é injustiçado por (y)
Garotas |
abusador -Marcelo |
Ser o (x) que é abusado por (y)
Garotas |
abusador -Marcelo |
Parece que Marcelo se encontra em uma posição na qual o real aparece, impossível de
ser simbolizado, pois até então seu lugar era sempre o x, injustiçado. Apesar de ainda se
considerar um injustiçado nessa situação, a conjuntura fez com que ele trocasse de lado,
provocando uma invasão de gozo que o desestabiliza, que rompe seu sintoma que até então o
estabilizava.
Nesse sentido podemos pensar também no desencadeamento provocado pela ocupação
do sujeito em duas posições simultaneamente, na qual elementos contraditórios se reúnem e
Marcelo é convocado a ocupar o lugar de injustiçado e abusador, ao mesmo tempo.
Ser o (x) que é abusado por (y)
injustiçado - Marcelo |
abusador -Marcelo |
Durante os atendimentos, apresenta várias queixas com relação às suas tentativas de
receber o auxílio doença do INSS. Conta repetitivamente que os médicos peritos não
reconhecem sua impossibilidade de trabalhar e o fazem sofrer diante de tanta injustiça.
Marcelo é extremamente reinvidicador, quer fazer justiça a todo custo. Em uma sessão
se expressa com a frase: "Sou desconfiado. A função de um contador é desconfiar" (sic). No
entanto, assume uma posição de objeto da injustiça.
Nesse sentido, podemos sintetizar, na seguinte formulação, o elemento constante no
conjunto das relações mantidas na vida de Marcelo, e que, de certa forma, ele tenta retomar na
busca de uma reestabilização:
Ser o (x) que é abusado por (y)
doente |
INSS |
filho |
mãe/irmãos |
De fato, trata-se de um sintoma que conseguiu mantê-lo estável durante 44 anos.
A Clínica da Frase neste caso permite-nos pensar sobre uma função de gozo do sujeito
que não possui a função fálica, ligada ao complexo de castração. Embora o sujeito não circule
através do significante universal do falo, há aqui algo singular que permite uma interlocução
entre o gozo e a interdição. Esse algo – podemos chamá-lo de sintoma – explicitado através da
estrutura da frase, conjuga uma amarração entre os registros com vistas ao alcance de uma
estabilização.
Pensar a psicose a partir de uma frase que circunscreve o sintoma do sujeito nos serve
quando não podemos perceber os fenômenos extraordinários definidores de uma estrutura, ou
quando não há sinais de uma metáfora delirante. Ainda que tais fenômenos estejam ausentes,
é possível perceber a repetição com que o ato ou o sintoma se manifesta, de forma seriada, em
uma sequência que poderíamos aplicar à frase. (TEIXEIRA, 1999).
Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1915-1916) Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (Parte III). Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LAURENT, E. (1989). Estabilizaciones em las psicosis. Buenos Aires: Manantial.
MOREL, G. (1999). A função do sintoma. In: Revista Agente de Psicanálise, ano VI, n. 11. Bahia. Publicação da
Escola Brasileira de Psicanálise, p. 4-27.
TEIXEIRA, A. (1999). A colisão da frase: observações sobre um relato clínico de psicose. In: Curinga– Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: EBP – MG, n. 13, p. 140-145.
VIEIRA, M. A. (2005). Por uma epistemologia clínica. Texto redigido para o Livro do II Encontro Freudiano: "As novas formas de transferência". Buenos Aires.
VIGANÓ, C. (1999). A construção do caso clínico em Saúde Mental. In: Curinga – Psicanálise e Saúde Mental.
Belo Horizonte: EBP – MG, n.13, p.50-59.
Recebido em Junho de 2010
Aceito em Agosto de 2010
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