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A RMSM da ESP-MG, em parceria com a Secretaria de Municipal de Saúde de
Betim4, teve início em agosto de 2010 e tem como objetivo "formar especialistas em
Saúde Mental, segundo as diretrizes das políticas nacional, estaduais e municipais da área, no âmbito do Sistema Único de Saúde."5 Seu cenário de aprendizagem são os
diversos níveis de atenção de uma rede de serviços de saúde mental substitutivos aos
hospitais psiquiátricos, visto que seu intuito é possibilitar uma formação em serviço
condizente com os princípios da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial.
Pensar o papel do técnico de referência na saúde mental torna-se um desafio,
uma vez que categorias profissionais, como os assistentes sociais, enfermeiros e
terapeutas ocupacionais, entre outras, não tiveram durante sua graduação uma formação
específica nessa área. Algumas nem sequer contaram com disciplinas referentes à saúde
mental em seus currículos.
A residência em saúde, de modo geral, é definida pela Lei nº 11.129, de 30 de
agosto de 2005, como uma "modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu, voltada
para a educação em serviço."6 Sua carga horária ocorre predominantemente no campo,
já que se trata de uma aprendizagem em serviço, pois 80% das atividades são
realizadas nos locais de prática e apenas 20% do tempo são destinados a atividades
teóricas.
A partir dessa legislação, algumas residências em áreas específicas foram
estabelecidas no Brasil. Esse é o caso da RMSM da ESP-MG, em parceria com a
Secretaria Municipal de Betim. Vale lembrar que, desde 2009, o município de Betim,
através de seu Conselho de Saúde, estabeleceu as residências em saúde como estratégias
fundamentais para a formação dos profissionais assistentes sociais, enfermeiros,
médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros, a partir das diretrizes do
Sistema Único de Saúde.
As áreas integrantes da RMSM da ESP-MG e da Secretaria Municipal de Saúde
de Betim são: enfermagem, psicologia, serviço social e terapia ocupacional.
_____________________________________
4 A discussão dos aspectos relacionados à RMSM e, de modo particular, sobre a preceptoria, neste texto,
foi feita a partir das contribuições das preceptoras da RMSM, a quem agradecemos: Ana Lúcia Souza
(psicóloga), Rosangela Rodrigues Morais (terapeuta ocupacional), Silvia Pereira de Melo (psicóloga) e
Teresa Cristina Barbosa Ricaldone (enfermeira).
5 Projeto da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Escola de Saúde ública/Secretaria
Municipal de Saúde de Betim, 2010, p.9. (Inédito).
6BRASIL. Lei nº 11.129 de 30 de agosto de 2005. Disponível em
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004 - Acesso em 22 nov. 2011.
Participaram da primeira turma quatro residentes, sendo um de cada área. Em agosto de
2011, teve início a segunda turma, também com um residente de cada área. Os
participantes dessa residência foram inseridos nos diversos serviços da rede de atençãoà saúde mental de Betim, a saber: um CAPS III (Centro de Atenção Psicosocial/
CERSAM Betim Central), dois CAPS II (CERSAM Citrolândia e CERSAM
Teresópolis), um CAPSi (Centro de Atenção Psico-social Infantil/CERSAMI), um
CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas), um Centro de
Convivência e três Unidades Básicas de Saúde que atendem usuários dos serviços de
saúde mental.
Nesses locais, os residentes desempenham diferentes atividades da assistência à saúde mental, acompanhados por trabalhadores da rede ou por seus preceptores. Sobre
os cenários de atuação dos residentes, vale destacar que neles não estão incluídos
hospitais psiquiátricos, até porque, por questão de princípios da política de saúde de
Betim, eles inexistem no município. Toda a assistência aos usuários da saúde mental se
dá a partir de uma rede de serviços substitutiva aos manicômios, em consonância com a
Política Nacional de Saúde Mental. Basta ver que a diretriz da política nacionalé justamente a "implantação de serviços substitutivos e a redução gradual e planejada de
leitos psiquiátricos" (SILVA e COSTA, 2010, p. 636).
Cada residente tem um preceptor de sua área específica, cujo papel é orientar,
discutir, apoiar e avaliar as suas ações no cenário de prática, bem como fazer reflexões
sobre elas7. De acordo com a Resolução da Comissão Nacional de Residência
Multiprofissional em saúde/CNRMS, de 2 de abril de 2012, compete ao preceptor:
____________________________________________
7Sobre a função do preceptor, o projeto da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, estabelece: - é papel do preceptor discutir com os residentes "...os aspectos teóricos relativos à especificidade de cada
profissão (eixo específico)" (...) e acompanhar suas atividades práticas, sejam elas específicas de sua área profissional (eixo específico) sejam atividades comuns às diferentes áreas (eixo transversal). Outras
atribuições do preceptor nessa residência seriam participar dos seminários da Escola de Saúde Pública;
manter uma interlocução com os serviços em que o residente está inserido sempre que for necessário; e
intervir nas situações-problema identificadas durante a Residência, visando à qualidade do processo
ensino-aprendizagem. Nessa discussão sobre a função do preceptor, vale destacar que, no formato da
RMSM de Betim/ESP, o preceptor faz um acompanhamento do residente na rede e não em um serviço
específico. Trata-se de um profissional que discutirá a atuação do residente nos diferentes locais. Enfim,
ainda estamos definindo a função de preceptor, pois é fato que o seu entendimento sofreu mudanças
significativas ao longo da história. Basta ver que a "palavra preceptor vem do latim praecipio: "mandar
com império aos que lhe são inferiores". Era aplicada aos mestres das ordens militares, mas, desde o
século XVI (já aparece com este sentido em 1540) é usada para designar aquele que dá preceitos ou
instruções, educador, mentor, instrutor. Mais tarde, passou a identificar alguém que educa uma criança ou
um jovem, geralmente na casa do educando..."( In: Revista Brasileira de Educação médica. "Preceptor,
supervisor, tutor e mentor: quais são seus papéis?" , de Sérgio Henrique de Oliveira e Sérgio Rego.
I - exercer a função de orientador de referência para o(s) residente(s) no
desempenho das atividades práticas vivenciadas no cotidiano da atenção e
gestão em saúde;
II - orientar e acompanhar, com suporte do(s) tutor(es), o desenvolvimento
do plano de atividades práticas do residente, devendo observar as diretrizes
do PP;
III - elaborar, com suporte do(s) tutor(es) e demais preceptores da área de
concentração, as escalas de plantões e de férias, acompanhando sua
execução;
IV - facilitar a integração do(s) residente(s) com a equipe de saúde, usuários
(indivíduos, família e grupos), residentes de outros programas, bem como
com estudantes dos diferentes níveis de formação profissional na saúde que
atuam no campo de prática;
V - participar, junto com o(s) residente(s) e demais profissionais envolvidos
no programa, das atividades de pesquisa e dos projetos de intervenção
voltados à produção de conhecimento e de tecnologias que integrem ensino
e serviço para qualificação do SUS;
VI - identificar dificuldades e problemas de qualificação do(s) residente(s)
relacionadas ao desenvolvimento de atividades práticas de modo a
proporcionar a aquisição das competências previstas no PP do programa,
encaminhando-as ao(s) tutor(es) quando se fizer necessário;
VI - participar da elaboração de relatórios periódicos desenvolvidos pelo(s)
residente(s) sob sua supervisão;
VII - proceder, em conjunto com tutores, à avaliação do residente, em uma
periodicidade máxima bimestral;
VIII- participar da avaliação da implementação do PP do programa,
contribuindo para o seu aprimoramento (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO,
02.04.2012).
A RMSM prevê ainda um tutor, que tem a função de orientar e apoiar o
residente em seu processo de aprendizagem. Também segundo a resolução citada acima,
compete ao tutor:
I - implementar estratégias pedagógicas que integrem saberes e práticas,
promovendo a articulação ensino-serviço, de modo a proporcionar a
aquisição das competências previstas no PP do programa, realizando
encontros periódicos com preceptores e residentes com frequência mínima
semanal;
II - organizar, em conjunto com os preceptores, reuniões periódicas para
implementação e avaliação do PP;
III - participar do planejamento e implementação das atividades de educação
permanente em saúde para os preceptores;
__________________________________________________________________
Fundação Osvaldo Cruz, Volume 32, Rio de Janeiro, julho/setembro, 2008.Como se observa, na RMSM
nossa proposta é bem distinta de seu sentido inicial.
IV- planejar e implementar, juntamente com os preceptores, equipe de
saúde, docentes e residentes, ações voltadas à qualificação dos serviços e
desenvolvimento de novas tecnologias para atenção e gestão em saúde;
V - articular a integração dos preceptores e residentes com os respectivos
pares de outros programas, incluindo da residência médica, bem como com
estudantes dos diferentes níveis de formação profissional na saúde;
VI - participar do processo de avaliação dos residentes;
VII - participar da avaliação do PP do Programa de Residência, contribuindo
para o seu aprimoramento;
VIII- orientar e avaliar os trabalhos de conclusão do programa de residência,
conforme as regras estabelecidas no Regimento Interno da COREMU
(DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 02.04.2012).
A RMSM estabelece também que os residentes deverão participar de seminários
realizados semanalmente na ESP-MG, os quais representam 20% da carga horária da
residência. Vale lembrar que a carga horária semanal do residente é de 60 horas, sendo
48 horas destinadas a atividades práticas e 12 horas dedicadas a atividades teóricas. Os
seminários citados contam também com a participação dos preceptores, tutores e alguns
trabalhadores da rede de saúde mental de Betim e de outros municípios. Desde o início
dessa residência os seminários realizados foram: A rede de saúde mental; Reunião
clínica; Psicopatologia e Aspectos históricos e antropológicos da loucura. Outros
eventos de aprendizagem e reflexão são o acompanhamento semanal dos residentes por
um preceptor da sua área específica e também as reuniões da equipe de saúde mental de
Betim. Estas acontecem semanalmente, com duração de quatro horas, em todos os
serviços da rede de saúde mental.
Quanto à visão pedagógica prevista na RMSM, ressalta-se que os residentes são
abordados como sujeitos do processo de ensino-aprendizagem-trabalho. Sendo assim, as
diretrizes pedagógicas utilizam metodologias participativas, tais como a discussão de
casos clínicos e situações-problema, apresentação e discussão de temas afins à saúde
mental, bem como a problematização geral de questões do cotidiano.
A metodologia de avaliação da RMSM não segue estratégias e instrumentos
tradicionais, fundados em critérios quantitativos. A proposta é adotar as estratégias
educacionais sustentadas pela concepção da Educação Permanente, que tem como
objetivo a "formação de cidadãos que possam utilizar seus conhecimentos e
experiências prévias para significar novos conhecimentos técnico-científicos e, a partir
de então, construir um saber que lhes permita exercer suas atividades profissionais de forma competente e condizente com a prática."8 Sendo assim, pretende-se "estabelecer
estratégias participativas de acompanhamento e avaliação das atividades, da qual façam
parte os diferentes atores envolvidos: os próprios residentes, as equipes dos serviços em
que atuam, os preceptores, os tutores e os gestores."9
O que significa ser técnico de referência?
A partir dessa introdução sobre a implementação da RMSM da ESP-MG,
pretende-se refletir sobre o papel do técnico de referência, como uma das funções
ocupadas por profissionais de diversas áreas na assistência aos portadores de sofrimento
psíquico. A intenção é pensar o que é ser um técnico de referência, a partir da
experiência de uma residente de Serviço Social, uma vez que essa área não tem uma
formação específica na graduação para essa atuação.
Um dos campos de aprendizagem e atuação da residente de Serviço Social da
primeira turma da RMSM de que tratamos neste texto, no segundo semestre de 2010 e
primeiro semestre de 2011, foi o Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-
Juvenil/CERSAMI. Essa é a denominação dada pelo município ao que o Ministério da
Saúde chama de Centro de Atenção Psicossocial Infantil/CAPSi. O CERSAMI é a
referência para a atenção em saúde mental infanto-juvenil no município de Betim.
Nesse serviço, uma das atividades da residente de Serviço Social foi atender crianças
e/ou adolescentes que demandavam assistência em saúde mental. Esses usuários
chegavam ao serviço espontaneamente ou encaminhados pela escola, Conselho Tutelar,
unidades de atenção básica ou outros equipamentos e serviços que compõem a rede de
saúde mental.
Em um primeiro momento, a função da residente de Serviço Social foi acolher
esses casos, escutar a demanda apresentada e avaliar com a profissional responsável
pelo plantão e, posteriormente, com a preceptora e o tutor, se o sujeito acolhido tinha
um sofrimento psíquico grave, que justificava seu atendimento em um Centro de
Atenção Psicossocial Infantil.
Vale lembrar que o CERSAMI em Betim tem como objetivo atender crianças e
adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves. Uma vez avaliado que o caso deve
___________________________________________
8 Proposta Político-pedagógica de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde. Betim, 2010, p. 8.
(Inédito)
9 Ibidem.
ser atendido pelo CERSAMI, uma das possibilidades de atuação do residente é assumir
o atendimento do referido caso, constituindo-se como seu técnico de referência. E o que
significa ser técnico de referência de um caso na saúde mental?
De acordo com LOBOSQUE, citada por COSTA (2010), o técnico de referência é aquele a quem compete, seja qual for sua formação profissional,
articular o chamado projeto terapêutico do usuário. Isto se faz a partir de uma
escuta, que considere suas questões e sua história, interroga o significado dos
seus sintomas, examina com ele suas dificuldades, e procure construir,
também com ele, saídas para certos impasses e abertura de novas
possibilidades.10
O papel do técnico de referência na saúde mental, então, é aglutinar orientações
e possibilidades de intervenções, em diversos contextos relevantes à atenção
psicossocial, bem como em "construções coletivas junto à comunidade". Cabe a ele,
ainda, atuar na "mediação de processos junto ao poder público e à representação
social."11
Na mesma perspectiva acima, o técnico de referência é conceituado no Manual
dos CAPS, elaborado pelo Ministério da Saúde (2004), como:
aquele que tem como responsabilidade o monitoramento do usuário, o
projeto terapêutico individual, o contato com a família e a avaliação das
metas traçadas no projeto. Furtado e Miranda (2006) acrescentam que o
dispositivo técnico de referência constitui uma aproximação entre o
profissional ou equipe a certo número de usuários, ocasionando uma
assistência de modo singular por meio de um projeto terapêutico individual
(SILVA E COSTA, 2010, p.636).
Como se observa, o técnico de referência é o articulador central do projeto
terapêutico do usuário, o qual, por sua vez, é construído a partir da escuta do sujeito, ou
seja, a partir do que o usuário traz. Sobre o processo de escuta do paciente, FREUD (1912)
nos lembra que deve-se ficar atento a tudo o que o sujeito diz, sem negligenciar ou
selecionar fragmentos de sua fala de acordo com as inclinações ou expectativas do
profissional. Se isso ocorrer, o risco é o de "nunca descobrir nada além do que já se sabe; e,
se seguir as inclinações, certamente falsificará o que se possa perceber. Não se deve
_____________________________________________
10Fórum de debate do Espaço em Saúde Mental da Escola Pública de Saúde/MG. Disponível em http://ead.esp.mg.gov.br/login/index.php. Acesso em 22 de nov. de 2011.
11Fórum de debate do Espaço em Saúde Mental da Escola Pública de Saúde/MG. Disponível em http://ead.esp.mg.gov.br/login/index.php. Acesso em 22 de nov. de 2011.
esquecer que o que se escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado
posteriormente" (FREUD, 1996, p.126).
Nota-se, assim, que a diretriz central para o desempenho da função de técnico de
referência é considerar a fala do paciente. E, nessa perspectiva, vale ressaltar ainda a própria
ideia de clínica, conforme concebida pelo psiquiatra e psicanalista Viganó (1997): "a clínica é ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito. É
um ensino que não é só teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do
universal do saber, mas do particular do sujeito" (VIGANÓ, 1997, p.2).
Isto posto, um primeiro ponto a ser demarcado nesta discussão sobre o técnico de
referência é que considerar a fala e a singularidade do sujeito revela um novo modo
institucional de operar. Os CAPS, na qualidade de dispositivos de uma política de saúde
mental, que investe em serviços territorializados e comunitários, são concebidos como
equipamentos que promovem a assistência aos "portadores de transtorno mental severo e
persistente, desenvolvendo práticas clínicas que lhes permitem viver em comunidade, ter
acesso a trabalho, lazer e direitos civis" (MIRANDA; CAMPOS, 2007, p. 208). Sendo
assim, novas formas de trabalho são reivindicadas, e o estabelecimento de um profissional
como referência para o usuário é uma delas.
Designar ao técnico de referência, entre outras coisas, o papel de direcionar o
atendimento ao usuário faz com que os profissionais deixem de se "responsabilizar por
setores, ou alas, como haviam aprendido a fazer e como efetivamente acomodavam seus
trabalhos há anos, para serem a referência de algumas pessoas" (MIRANDA, 2005, p.2).
Nessa perspectiva, o profissional de referência é concebido por MIRANDA e
CAMPOS (2007) como um:
arranjo que apóia-se na interdisciplinaridade e no vínculo entre profissional e
usuário, para prestar atendimento integral e singular aos pacientes. Para a
efetivação desse arranjo cada profissional, ou grupo de trabalhadores de
categorias diversificadas, é referência de certo número de usuários,
responsabilizando-se pela elaboração, aplicação e avaliação de um projeto
terapêutico com objetivos elaborados conjuntamente e perseguidos a
contento. A marca central é o fato de o profissional, por meio de um plano
compartilhado, assumir o acompanhamento do paciente considerando
aspectos sociais, familiares, políticos e psíquicos. (MIRANDA; CAMPOS,
2007, p. 208).
Portanto, a presença do técnico de referência, bem como a construção do projeto
terapêutico individual faz parte dos esforços preconizados desde o começo da reforma
psiquiátrica e, como um dispositivo de tratamento, tem como finalidade "romper com modos de relação anicomiais" (MIRANDA, p. 2007, p.1), melhorando, assim, a
assistência aos neuróticos graves, autistas e psicóticos, os quais constituem o público
central dos CAPS.
Tanto é assim que a abordagem da atenção psicossocial pressupõe uma lógica de
cuidados ao usuário diferente da chamada psiquiatria biológica, a qual entende a "doença mental em termos de transtornos atribuídos ao funcionamento cerebral,
bioquímico, verificáveis experimentalmente, tratáveis prioritariamente pela intervenção
química dos fármacos e por algumas psicoterapias de modo geral de tipo cognitivo" (TENÓRIO; ROCHA, 2006, p.56).
Já a atenção psicossocial se caracteriza justamente por uma ampliação das
intervenções para tratar a doença mental. Esse paradigma busca tratar, por exemplo, o
psicótico, no seu próprio meio social, buscando preservar ou resgatar os seus laços de
pertencimento social (TENÓRIO E ROCHA, 2006, p.56).
A Portaria nº 336, de 2002, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos
dos portadores de sofrimento mental, prevê, claramente, a inclusão de atividades de
suporte social no modelo assistencial da saúde mental. Segundo essa norma, os Centros
de Atenção Psicossocial devem incluir em suas modalidades de tratamento "atividades
comunitárias enfocando a integração da criança e do adolescente na família, na escola,
na comunidade ou quaisquer outras formas de inserção social; desenvolvimento de
ações inter-setoriais, principalmente com as áreas de assistência social, educação e
justiça."12 O entendimento é que essas atividades comunitárias efetivamente podem
colaborar com a inclusão social daqueles que possuem sofrimento psíquico. Assim, o
desafio está posto, pois, só a partir da escuta do paciente é que serão construídas
possibilidades que poderão levá-lo a "uma condição mais favorável ao seu
pertencimento à convivência social, na família, com os vizinhos, num trabalho, nas
relações sociais possíveis" (TENÓRIO; ROCHA: 2006, p.57).
Um segundo ponto a ser destacado na discussão sobre o técnico de referência é
que conceber o indivíduo com as suas divisões subjetivas, logicamente diferenciando-o
do resto da humanidade, faz com que o projeto terapêutico a ser construído junto com o paciente revele "um desejo de relação e por isso, um desejo cujo percurso de realização
carrega muitos mistérios" (MIRANDA, 2005, p. 3).
Nesta direção, o projeto terapêutico não pode ser definido:
_____________________________________________
12BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/336 de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da
República do Brasil. Brasília. Disponível em: http://www.fiscolex.com.br/doc_395365_Portaria
N_336_DE_19_de fevereiro _ de 2002.aspx. Acesso em: 5 de fev. 2011.
como um conjunto de ações que proponham um resultado específico , mas
sim uma imprevisível e nunca experimentada forma de relação com alguém
com quem teremos que construir algo, ao sabor do desconhecido. Se
verdadeiramente admitimos que estamos recebendo um indivíduo, temos que
admitir também que não podemos prever como será nosso percurso
relacional, já que estamos genuinamente supondo que aquela pessoa que a
nós se apresenta para tratar-se é única, distinguível dos demais do grupo e de
nós (MIRANDA, 2005, p. 3).
O técnico de referência, ao desempenhar sua função, não pode então
desconsiderar a necessidade de reconhecer e de guardar um certo saber leigo, isto é, de
se colocar no lugar de um "não saber", no sentido da própria ignorância douta13.
Conforme nos ensina o renascentista Nicolau de Cusa (1440), a ignorância douta é um
não saber que nos impulsiona a buscar um outro saber. Na ignorância douta há um
reconhecimento dos limites do conhecimento (ABBAGNANO, 1998, p.534). Contudo,
o indivíduo não permanece numa situação de passividade, pois é remetido a uma busca
permanente. Pensando no técnico de referência, isto não significa negar a existência de
um conhecimento por parte dele. Mas, tão somente, que o reconhecimento de um não
saber é uma ocasião para que ele possa seguir buscando um outro saber e, até mesmo,
uma ocasião para dar lugar ao saber do paciente, o qual deve ser tomado como direção
do seu tratamento.
Um terceiro ponto merecedor de nossa atenção nessa reflexão sobre o que é ser
um técnico de referência é o entendimento de que essa função pode ser exercida por profissionais que compõem as equipes de saúde mental, independentemente de sua
categoria específica. Tal concepção tem como um de seus fundamentos a proposta de
uma clínica ampliada. O Ministério da Saúde concebe a clínica ampliada da seguinte
forma:
um compromisso radical com o sujeito doente visto de modo singular;
assumir a responsabilidade sobre os usuários dos serviços de saúde; buscar
ajuda em outros setores, ao que se dá nome de intersetorialidade; reconhecer
os limites dos profissionais de saúde e das tecnologias por eles empregadas
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p.9).
_______________________________________________
13 Essa ideia foi desenvolvida por Nicolau de Cusa (1401-1464) em sua obra Da ignorância Douta
(1440). Agradecemos ao psicanalista Luciano Elia, que, no seminário comemorativo dos 21 anos do
programa de saúde mental em Brumadinho, nos lembrou da ideia de ignorância douta ao ressaltar a
necessidade de reconhecermos o saber do paciente, bem como de recusarmos um saber puramente
especialista na clínica da saúde mental.
CAMPOS e DOMITTI (2007), ao refletirem sobre a clínica ampliada,
explicitam que a maioria das especialidades e profissões de saúde trabalha com um
referencial sobre o processo de saúde e doença restrito, seja no campo biomédico, social
ou subjetivo.
Diferentemente dessa abordagem, o enfoque da clínica ampliada sugere
maneiras para integrar essas perspectivas em um método de trabalho que reconheça a
complexidade e a variabilidade dos fatores e dos recursos envolvidos em cada caso
específico, seja ele um problema individual ou coletivo, trabalhando de maneira
interdisciplinar. A clínica ampliada pressupõe, então, algum grau de adesão a um
paradigma que pense o processo de saúde, doença e intervenção de modo mais
complexo e dinâmico. Ou seja, sua ideia chave é "ser um instrumento para que os
trabalhadores e gestores de saúde possam enxergar e atuar na clínica para além dos
pedaços fragmentados, sem deixar de reconhecer e utilizar o potencial desses
saberes"(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008, p.3).
Sobre essa questão, SILVA E COSTA (2010) afirmam:
a atuação de referência exige articulação de vários saberes e de diversos
campos relacionais (familiar, laboral, social, cultural etc.). Essa construção
acontece em um terreno fértil de múltiplas possibilidades de trocas e
conflitos. Por isso, o modelo de gestão e a organização do serviço precisam
garantir espaços sistemáticos de reuniões ou encontros que estabeleçam
planejamento, discussões de caso, supervisão clínico-institucional,
capacitação, enfim, espaços que considerem a complexidade e a intensidade
das relações que pressupõem todos os atores sociais inseridos no campo da
saúde mental (SILVA e COSTA, 2010, p. 644) .
É partindo desses pressupostos que entendemos que o assistente social, o
enfermeiro, o terapeuta ocupacional e outros profissionais da saúde mental, a partir do
desejo e da busca de uma formação consistente para ocupar essa função, têm mais uma
possibilidade de atuação na área, ou seja, constituir-se como técnico de referência dos
casos atendidos. Nessa perspectiva, vale ressaltar as palavras de SILVA (2003), sobre a
atuação das diferentes categorias profissionais nos vários dispositivos de tratamento em
um serviço de saúde mental:
entendemos que a passagem de todos os profissionais pelos vários
dispositivos do serviço, de acordo com o desejo de cada um, é fundamental.
O trabalhar em equipe nos remete à legitimação e, ao mesmo tempo,
dissolução do lugar do saber. O encontro com o impasse, com um vazio, nos
coloca diante das possibilidades. É isso que nos possibilita um movimento
constante de construção da clínica. No momento em que o psiquiatra abdica
de apenas prescrever medicamentos, o assistente social de apenas fazer
visitas domiciliares, o terapeuta ocupacional de apenas coordenar oficinas, o
enfermeiro de apenas administrar medicação, o psicólogo de apenas fazer
psicoterapia e nos permitimos inventar dispositivos novos onde
resguardamos todas essas especificidades e ao mesmo tempo,
experimentamos lugares e funções diferentes, é possível, entre outras coisas,
questionar o ideal de um saber puramente especialista e experimentar esse
lugar de não saber, lugar esse que nos causa, que nos provoca e que faz com
que o inusitado surja (SILVA, 2003, p.231).
Para finalizar, destaca-se então que, para desempenhar sua função, o técnico de
referência na clínica da saúde mental precisa reconhecer a necessidade de recusar um
saber puramente especialista. Entretanto, se, de um lado, faz-se necessário superar a
fragmentação dos saberes na saúde mental, por outro lado, não podemos perder de vista
a ideia da ignorância douta, conforme já anunciada neste texto. Ou seja,é imprescindível assumirmos uma posição de não saber para darmos lugar ao saber do
paciente. Como vimos anteriormente, a chamada ignorância douta é uma ignorância
instruída, e, diante dela, somos impulsionados a seguir buscando... E, no contexto da
saúde mental, por que não seguir construindo coletivamente o projeto terapêutico do
usuário como um técnico de referência? E mais: por que não partir do próprio saber do
paciente?
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