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                          A RMSM da ESP-MG, em parceria com a Secretaria de Municipal de Saúde de
                            Betim4, teve início em agosto de 2010 e tem como objetivo "formar especialistas em
                            Saúde Mental, segundo as diretrizes das políticas nacional, estaduais e municipais da                            área, no âmbito do Sistema Único de Saúde."5 Seu cenário de aprendizagem são os
                            diversos níveis de atenção de uma rede de serviços de saúde mental substitutivos aos
                            hospitais psiquiátricos, visto que seu intuito é possibilitar uma formação em serviço
                            condizente com os princípios da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial. 
                             
                            Pensar o papel do técnico de referência na saúde mental torna-se um desafio,
                            uma vez que categorias profissionais, como os assistentes sociais, enfermeiros e
                            terapeutas ocupacionais, entre outras, não tiveram durante sua graduação uma formação
                            específica nessa área. Algumas nem sequer contaram com disciplinas referentes à saúde
                            mental em seus currículos. 
                             
                            A residência em saúde, de modo geral, é definida pela Lei nº 11.129, de 30 de
                            agosto de 2005, como uma "modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu, voltada
                            para a educação em serviço."6 Sua carga horária ocorre predominantemente no campo,
                            já que se trata de uma aprendizagem em serviço, pois 80% das atividades são
                            realizadas nos locais de prática e apenas 20% do tempo são destinados a atividades
                            teóricas. 
                             
                            A partir dessa legislação, algumas residências em áreas específicas foram
                            estabelecidas no Brasil. Esse é o caso da RMSM da ESP-MG, em parceria com a
                            Secretaria Municipal de Betim. Vale lembrar que, desde 2009, o município de Betim,
                            através de seu Conselho de Saúde, estabeleceu as residências em saúde como estratégias
                            fundamentais para a formação dos profissionais assistentes sociais, enfermeiros,
                            médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros, a partir das diretrizes do
                            Sistema Único de Saúde. 
                             
                            As áreas integrantes da RMSM da ESP-MG e da Secretaria Municipal de Saúde
                            de Betim são: enfermagem, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. 
                          _____________________________________ 
                            4 A discussão dos aspectos relacionados à RMSM e, de modo particular, sobre a preceptoria, neste texto,
                            foi feita a partir das contribuições das preceptoras da RMSM, a quem agradecemos: Ana Lúcia Souza
                            (psicóloga), Rosangela Rodrigues Morais (terapeuta ocupacional), Silvia Pereira de Melo (psicóloga) e
                            Teresa Cristina Barbosa Ricaldone (enfermeira). 
                            5 Projeto da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Escola de Saúde ública/Secretaria
                            Municipal de Saúde de Betim, 2010, p.9. (Inédito). 
                            6BRASIL. Lei nº 11.129 de 30 de agosto de 2005. Disponível em
                            https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004 - Acesso em 22 nov. 2011. 
                          Participaram da primeira turma quatro residentes, sendo um de cada área. Em agosto de 
                            2011, teve início a segunda turma, também com um residente de cada área. Os
                            participantes dessa residência foram inseridos nos diversos serviços da rede de atençãoà                            saúde mental de Betim, a saber: um CAPS III (Centro de Atenção Psicosocial/
                            CERSAM Betim Central), dois CAPS II (CERSAM Citrolândia e CERSAM
                            Teresópolis), um CAPSi (Centro de Atenção Psico-social Infantil/CERSAMI), um
                            CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas), um Centro de
                            Convivência e três Unidades Básicas de Saúde que atendem usuários dos serviços de 
                            saúde mental. 
                             
                            Nesses locais, os residentes desempenham diferentes atividades da assistência à                            saúde mental, acompanhados por trabalhadores da rede ou por seus preceptores. Sobre
                            os cenários de atuação dos residentes, vale destacar que neles não estão incluídos
                            hospitais psiquiátricos, até porque, por questão de princípios da política de saúde de
                            Betim, eles inexistem no município. Toda a assistência aos usuários da saúde mental se
                            dá a partir de uma rede de serviços substitutiva aos manicômios, em consonância com a
                            Política Nacional de Saúde Mental. Basta ver que a diretriz da política nacionalé                            justamente a "implantação de serviços substitutivos e a redução gradual e planejada de
                            leitos psiquiátricos" (SILVA e COSTA, 2010, p. 636).
                             
                             
                            Cada residente tem um preceptor de sua área específica, cujo papel é orientar,
                            discutir, apoiar e avaliar as suas ações no cenário de prática, bem como fazer reflexões
                            sobre elas7. De acordo com a Resolução da Comissão Nacional de Residência
                            Multiprofissional em saúde/CNRMS, de 2 de abril de 2012, compete ao preceptor: 
                             
                            ____________________________________________ 
                            7Sobre a função do preceptor, o projeto da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, estabelece: -                            é papel do preceptor discutir com os residentes "...os aspectos teóricos relativos à especificidade de cada
                            profissão (eixo específico)" (...) e acompanhar suas atividades práticas, sejam elas específicas de sua                            área profissional (eixo específico) sejam atividades comuns às diferentes áreas (eixo transversal). Outras
                            atribuições do preceptor nessa residência seriam participar dos seminários da Escola de Saúde Pública;
                            manter uma interlocução com os serviços em que o residente está inserido sempre que for necessário; e
                            intervir nas situações-problema identificadas durante a Residência, visando à qualidade do processo
                            ensino-aprendizagem. Nessa discussão sobre a função do preceptor, vale destacar que, no formato da
                            RMSM de Betim/ESP, o preceptor faz um acompanhamento do residente na rede e não em um serviço 
                            específico. Trata-se de um profissional que discutirá a atuação do residente nos diferentes locais. Enfim,
                            ainda estamos definindo a função de preceptor, pois é fato que o seu entendimento sofreu mudanças
                            significativas ao longo da história. Basta ver que a "palavra preceptor vem do latim praecipio: "mandar
                            com império aos que lhe são inferiores". Era aplicada aos mestres das ordens militares, mas, desde o
                            século XVI (já aparece com este sentido em 1540) é usada para designar aquele que dá preceitos ou
                            instruções, educador, mentor, instrutor. Mais tarde, passou a identificar alguém que educa uma criança ou
                            um jovem, geralmente na casa do educando..."( In: Revista Brasileira de Educação médica. "Preceptor, 
                            supervisor, tutor e mentor: quais são seus papéis?" , de Sérgio Henrique de Oliveira e Sérgio Rego. 
                          
                            I - exercer a função de orientador de referência para o(s) residente(s) no
                              desempenho das atividades práticas vivenciadas no cotidiano da atenção e
                              gestão em saúde; 
                               
                              II - orientar e acompanhar, com suporte do(s) tutor(es), o desenvolvimento
                              do plano de atividades práticas do residente, devendo observar as diretrizes
                              do PP; 
                               
                              III - elaborar, com suporte do(s) tutor(es) e demais preceptores da área de
                              concentração, as escalas de plantões e de férias, acompanhando sua
                              execução; 
                               
                              IV - facilitar a integração do(s) residente(s) com a equipe de saúde, usuários
                              (indivíduos, família e grupos), residentes de outros programas, bem como
                              com estudantes dos diferentes níveis de formação profissional na saúde que
                              atuam no campo de prática; 
                               
                              V - participar, junto com o(s) residente(s) e demais profissionais envolvidos
                              no programa, das atividades de pesquisa e dos projetos de intervenção
                              voltados à produção de conhecimento e de tecnologias que integrem ensino
                              e serviço para qualificação do SUS;
                               
                               
                              VI - identificar dificuldades e problemas de qualificação do(s) residente(s)
                              relacionadas ao desenvolvimento de atividades práticas de modo a
                              proporcionar a aquisição das competências previstas no PP do programa,
                              encaminhando-as ao(s) tutor(es) quando se fizer necessário; 
                               
                              VI - participar da elaboração de relatórios periódicos desenvolvidos pelo(s)
                              residente(s) sob sua supervisão; 
                               
                              VII - proceder, em conjunto com tutores, à avaliação do residente, em uma
                              periodicidade máxima bimestral; 
                               
                              VIII- participar da avaliação da implementação do PP do programa,
                              contribuindo para o seu aprimoramento (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO,
                              02.04.2012). 
                             
                          A RMSM prevê ainda um tutor, que tem a função de orientar e apoiar o
                            residente em seu processo de aprendizagem. Também segundo a resolução citada acima,
                            compete ao tutor: 
                          
                            I - implementar estratégias pedagógicas que integrem saberes e práticas,
                              promovendo a articulação ensino-serviço, de modo a proporcionar a
                              aquisição das competências previstas no PP do programa, realizando
                              encontros periódicos com preceptores e residentes com frequência mínima
                              semanal; 
                               
                              II - organizar, em conjunto com os preceptores, reuniões periódicas para
                              implementação e avaliação do PP; 
                               
                              III - participar do planejamento e implementação das atividades de educação 
                              permanente em saúde para os preceptores; 
                             
                          __________________________________________________________________ 
                            Fundação Osvaldo Cruz, Volume 32, Rio de Janeiro, julho/setembro, 2008.Como se observa, na RMSM
                            nossa proposta é bem distinta de seu sentido inicial. 
                          
                            IV- planejar e implementar, juntamente com os preceptores, equipe de
                              saúde, docentes e residentes, ações voltadas à qualificação dos serviços e
                              desenvolvimento de novas tecnologias para atenção e gestão em saúde;
                              V - articular a integração dos preceptores e residentes com os respectivos
                              pares de outros programas, incluindo da residência médica, bem como com 
                              estudantes dos diferentes níveis de formação profissional na saúde; 
                               
                              VI - participar do processo de avaliação dos residentes; 
                               
                              VII - participar da avaliação do PP do Programa de Residência, contribuindo
                              para o seu aprimoramento; 
                               
                              VIII- orientar e avaliar os trabalhos de conclusão do programa de residência,
                              conforme as regras estabelecidas no Regimento Interno da COREMU
                              (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 02.04.2012). 
                             
                          A RMSM estabelece também que os residentes deverão participar de seminários
                            realizados semanalmente na ESP-MG, os quais representam 20% da carga horária da
                            residência. Vale lembrar que a carga horária semanal do residente é de 60 horas, sendo
                            48 horas destinadas a atividades práticas e 12 horas dedicadas a atividades teóricas. Os
                            seminários citados contam também com a participação dos preceptores, tutores e alguns
                            trabalhadores da rede de saúde mental de Betim e de outros municípios. Desde o início
                            dessa residência os seminários realizados foram: A rede de saúde mental; Reunião
                            clínica; Psicopatologia e Aspectos históricos e antropológicos da loucura. Outros
                            eventos de aprendizagem e reflexão são o acompanhamento semanal dos residentes por
                            um preceptor da sua área específica e também as reuniões da equipe de saúde mental de
                            Betim. Estas acontecem semanalmente, com duração de quatro horas, em todos os
                            serviços da rede de saúde mental. 
                             
                            Quanto à visão pedagógica prevista na RMSM, ressalta-se que os residentes são
                            abordados como sujeitos do processo de ensino-aprendizagem-trabalho. Sendo assim, as
                            diretrizes pedagógicas utilizam metodologias participativas, tais como a discussão de
                            casos clínicos e situações-problema, apresentação e discussão de temas afins à saúde
                            mental, bem como a problematização geral de questões do cotidiano. 
                             
                            A metodologia de avaliação da RMSM não segue estratégias e instrumentos
                            tradicionais, fundados em critérios quantitativos. A proposta é adotar as estratégias
                            educacionais sustentadas pela concepção da Educação Permanente, que tem como
                            objetivo a "formação de cidadãos que possam utilizar seus conhecimentos e
                            experiências prévias para significar novos conhecimentos técnico-científicos e, a partir
                            de então, construir um saber que lhes permita exercer suas atividades profissionais de forma competente e condizente com a prática."8 Sendo assim, pretende-se "estabelecer
                            estratégias participativas de acompanhamento e avaliação das atividades, da qual façam
                            parte os diferentes atores envolvidos: os próprios residentes, as equipes dos serviços em
                            que atuam, os preceptores, os tutores e os gestores."9 
                             
                            O que significa ser técnico de referência? 
                             
                            A partir dessa introdução sobre a implementação da RMSM da ESP-MG,
                            pretende-se refletir sobre o papel do técnico de referência, como uma das funções
                            ocupadas por profissionais de diversas áreas na assistência aos portadores de sofrimento
                            psíquico. A intenção é pensar o que é ser um técnico de referência, a partir da
                            experiência de uma residente de Serviço Social, uma vez que essa área não tem uma
                            formação específica na graduação para essa atuação. 
                            Um dos campos de aprendizagem e atuação da residente de Serviço Social da
                            primeira turma da RMSM de que tratamos neste texto, no segundo semestre de 2010 e
                            primeiro semestre de 2011, foi o Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-
                            Juvenil/CERSAMI. Essa é a denominação dada pelo município ao que o Ministério da
                            Saúde chama de Centro de Atenção Psicossocial Infantil/CAPSi. O CERSAMI é a
                            referência para a atenção em saúde mental infanto-juvenil no município de Betim. 
                             
Nesse serviço, uma das atividades da residente de Serviço Social foi atender crianças
                            e/ou adolescentes que demandavam assistência em saúde mental. Esses usuários
                            chegavam ao serviço espontaneamente ou encaminhados pela escola, Conselho Tutelar,
                            unidades de atenção básica ou outros equipamentos e serviços que compõem a rede de
                            saúde mental. 
                            Em um primeiro momento, a função da residente de Serviço Social foi acolher
                            esses casos, escutar a demanda apresentada e avaliar com a profissional responsável
                            pelo plantão e, posteriormente, com a preceptora e o tutor, se o sujeito acolhido tinha
                            um sofrimento psíquico grave, que justificava seu atendimento em um Centro de
                            Atenção Psicossocial Infantil. 
                             
                            Vale lembrar que o CERSAMI em Betim tem como objetivo atender crianças e
                            adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves. Uma vez avaliado que o caso deve
                             
                             
                            ___________________________________________ 
                            8 Proposta Político-pedagógica de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde. Betim, 2010, p. 8.
                            (Inédito)
                             
                            9 Ibidem.  
                          ser atendido pelo CERSAMI, uma das possibilidades de atuação do residente é assumir 
                            o atendimento do referido caso, constituindo-se como seu técnico de referência. E o que 
                            significa ser técnico de referência de um caso na saúde mental? 
                             
                            De acordo com LOBOSQUE, citada por COSTA (2010), o técnico de referência é                            aquele a quem compete, seja qual for sua formação profissional, 
                          
                            articular o chamado projeto terapêutico do usuário. Isto se faz a partir de uma
                              escuta, que considere suas questões e sua história, interroga o significado dos
                              seus sintomas, examina com ele suas dificuldades, e procure construir,
                              também com ele, saídas para certos impasses e abertura de novas 
                              possibilidades.10 
                             
                          O papel do técnico de referência na saúde mental, então, é aglutinar orientações
                            e possibilidades de intervenções, em diversos contextos relevantes à atenção
                            psicossocial, bem como em "construções coletivas junto à comunidade". Cabe a ele,
                            ainda, atuar na "mediação de processos junto ao poder público e à representação
                            social."11 
                             
                            Na mesma perspectiva acima, o técnico de referência é conceituado no Manual 
                            dos CAPS, elaborado pelo Ministério da Saúde (2004), como: 
                          
                            aquele que tem como responsabilidade o monitoramento do usuário, o
                              projeto terapêutico individual, o contato com a família e a avaliação das
                              metas traçadas no projeto. Furtado e Miranda (2006) acrescentam que o
                              dispositivo técnico de referência constitui uma aproximação entre o
                              profissional ou equipe a certo número de usuários, ocasionando uma
                              assistência de modo singular por meio de um projeto terapêutico individual
                              (SILVA E COSTA, 2010, p.636). 
                             
                          Como se observa, o técnico de referência é o articulador central do projeto
                            terapêutico do usuário, o qual, por sua vez, é construído a partir da escuta do sujeito, ou
                            seja, a partir do que o usuário traz. Sobre o processo de escuta do paciente, FREUD (1912)
                            nos lembra que deve-se ficar atento a tudo o que o sujeito diz, sem negligenciar ou
                            selecionar fragmentos de sua fala de acordo com as inclinações ou expectativas do
                            profissional. Se isso ocorrer, o risco é o de "nunca descobrir nada além do que já se sabe; e,
                            se seguir as inclinações, certamente falsificará o que se possa perceber. Não se deve 
                          _____________________________________________ 
                            10Fórum de debate do Espaço em Saúde Mental da Escola Pública de Saúde/MG. Disponível em                             http://ead.esp.mg.gov.br/login/index.php. Acesso em 22 de nov. de 2011. 
                            11Fórum de debate do Espaço em Saúde Mental da Escola Pública de Saúde/MG. Disponível em http://ead.esp.mg.gov.br/login/index.php. Acesso em 22 de nov. de 2011. 
                          esquecer que o que se escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado 
                            posteriormente" (FREUD, 1996, p.126). 
                             
                            Nota-se, assim, que a diretriz central para o desempenho da função de técnico de
                            referência é considerar a fala do paciente. E, nessa perspectiva, vale ressaltar ainda a própria
                            ideia de clínica, conforme concebida pelo psiquiatra e psicanalista Viganó (1997): "a clínica                            é ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito. É 
                            um ensino que não é só teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do 
                            universal do saber, mas do particular do sujeito" (VIGANÓ, 1997, p.2). 
                             
                            Isto posto, um primeiro ponto a ser demarcado nesta discussão sobre o técnico de 
                            referência é que considerar a fala e a singularidade do sujeito revela um novo modo
                            institucional de operar. Os CAPS, na qualidade de dispositivos de uma política de saúde 
                            mental, que investe em serviços territorializados e comunitários, são concebidos como 
                            equipamentos que promovem a assistência aos "portadores de transtorno mental severo e 
                            persistente, desenvolvendo práticas clínicas que lhes permitem viver em comunidade, ter 
                            acesso a trabalho, lazer e direitos civis" (MIRANDA; CAMPOS, 2007, p. 208). Sendo
                            assim, novas formas de trabalho são reivindicadas, e o estabelecimento de um profissional
                            como referência para o usuário é uma delas. 
                             
                            Designar ao técnico de referência, entre outras coisas, o papel de direcionar o
                            atendimento ao usuário faz com que os profissionais deixem de se "responsabilizar por
                            setores, ou alas, como haviam aprendido a fazer e como efetivamente acomodavam seus
                            trabalhos há anos, para serem a referência de algumas pessoas" (MIRANDA, 2005, p.2). 
                             
                            Nessa perspectiva, o profissional de referência é concebido por MIRANDA e
                            CAMPOS (2007) como um: 
                          
                            arranjo que apóia-se na interdisciplinaridade e no vínculo entre profissional e
                              usuário, para prestar atendimento integral e singular aos pacientes. Para a
                              efetivação desse arranjo cada profissional, ou grupo de trabalhadores de
                              categorias diversificadas, é referência de certo número de usuários,
                              responsabilizando-se pela elaboração, aplicação e avaliação de um projeto
                              terapêutico com objetivos elaborados conjuntamente e perseguidos a
                              contento. A marca central é o fato de o profissional, por meio de um plano
                              compartilhado, assumir o acompanhamento do paciente considerando
                              aspectos sociais, familiares, políticos e psíquicos. (MIRANDA; CAMPOS,
                              2007, p. 208). 
                             
                          Portanto, a presença do técnico de referência, bem como a construção do projeto
                            terapêutico individual faz parte dos esforços preconizados desde o começo da reforma
                            psiquiátrica e, como um dispositivo de tratamento, tem como finalidade "romper com modos de relação anicomiais" (MIRANDA, p. 2007, p.1), melhorando, assim, a
                            assistência aos neuróticos graves, autistas e psicóticos, os quais constituem o público
                            central dos CAPS. 
                             
                            Tanto é assim que a abordagem da atenção psicossocial pressupõe uma lógica de
                            cuidados ao usuário diferente da chamada psiquiatria biológica, a qual entende a                            "doença mental em termos de transtornos atribuídos ao funcionamento cerebral,
                            bioquímico, verificáveis experimentalmente, tratáveis prioritariamente pela intervenção
                            química dos fármacos e por algumas psicoterapias de modo geral de tipo cognitivo"                            (TENÓRIO; ROCHA, 2006, p.56). 
                             
                            Já a atenção psicossocial se caracteriza justamente por uma ampliação das
                            intervenções para tratar a doença mental. Esse paradigma busca tratar, por exemplo, o
                            psicótico, no seu próprio meio social, buscando preservar ou resgatar os seus laços de
                            pertencimento social (TENÓRIO E ROCHA, 2006, p.56). 
                             
                            A Portaria nº 336, de 2002, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os direitos
                            dos portadores de sofrimento mental, prevê, claramente, a inclusão de atividades de
                            suporte social no modelo assistencial da saúde mental. Segundo essa norma, os Centros
                            de Atenção Psicossocial devem incluir em suas modalidades de tratamento "atividades
                            comunitárias enfocando a integração da criança e do adolescente na família, na escola,
                            na comunidade ou quaisquer outras formas de inserção social; desenvolvimento de
                            ações inter-setoriais, principalmente com as áreas de assistência social, educação e
                            justiça."12 O entendimento é que essas atividades comunitárias efetivamente podem
                            colaborar com a inclusão social daqueles que possuem sofrimento psíquico. Assim, o
                            desafio está posto, pois, só a partir da escuta do paciente é que serão construídas
                            possibilidades que poderão levá-lo a "uma condição mais favorável ao seu 
                            pertencimento à convivência social, na família, com os vizinhos, num trabalho, nas
                            relações sociais possíveis" (TENÓRIO; ROCHA: 2006, p.57). 
                             
                            Um segundo ponto a ser destacado na discussão sobre o técnico de referência é 
                            que conceber o indivíduo com as suas divisões subjetivas, logicamente diferenciando-o 
                            do resto da humanidade, faz com que o projeto terapêutico a ser construído junto com o paciente revele "um desejo de relação e por isso, um desejo cujo percurso de realização 
                            carrega muitos mistérios" (MIRANDA, 2005, p. 3).
                            Nesta direção, o projeto terapêutico não pode ser definido: 
                          _____________________________________________ 
                            12BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/336 de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da 
                            República do Brasil. Brasília. Disponível em: http://www.fiscolex.com.br/doc_395365_Portaria 
                            N_336_DE_19_de fevereiro _ de 2002.aspx. Acesso em: 5 de fev. 2011.                           
                          
                            como um conjunto de ações que proponham um resultado específico , mas
                              sim uma imprevisível e nunca experimentada forma de relação com alguém
                              com quem teremos que construir algo, ao sabor do desconhecido. Se
                              verdadeiramente admitimos que estamos recebendo um indivíduo, temos que
                              admitir também que não podemos prever como será nosso percurso
                              relacional, já que estamos genuinamente supondo que aquela pessoa que a
                              nós se apresenta para tratar-se é única, distinguível dos demais do grupo e de
                              nós (MIRANDA, 2005, p. 3). 
                             
                          O técnico de referência, ao desempenhar sua função, não pode então 
                            desconsiderar a necessidade de reconhecer e de guardar um certo saber leigo, isto é, de
                            se colocar no lugar de um "não saber", no sentido da própria ignorância douta13.
                            Conforme nos ensina o renascentista Nicolau de Cusa (1440), a ignorância douta é um 
                            não saber que nos impulsiona a buscar um outro saber. Na ignorância douta há um 
                            reconhecimento dos limites do conhecimento (ABBAGNANO, 1998, p.534). Contudo,
                            o indivíduo não permanece numa situação de passividade, pois é remetido a uma busca
                            permanente. Pensando no técnico de referência, isto não significa negar a existência de
                            um conhecimento por parte dele. Mas, tão somente, que o reconhecimento de um não
                            saber é uma ocasião para que ele possa seguir buscando um outro saber e, até mesmo,
                            uma ocasião para dar lugar ao saber do paciente, o qual deve ser tomado como direção
                            do seu tratamento. 
                             
                            Um terceiro ponto merecedor de nossa atenção nessa reflexão sobre o que é ser
                            um técnico de referência é o entendimento de que essa função pode ser exercida por profissionais que compõem as equipes de saúde mental, independentemente de sua
                            categoria específica. Tal concepção tem como um de seus fundamentos a proposta de
                            uma clínica ampliada. O Ministério da Saúde concebe a clínica ampliada da seguinte
                            forma: 
                          
                            um compromisso radical com o sujeito doente visto de modo singular; 
                              assumir a responsabilidade sobre os usuários dos serviços de saúde; buscar 
                              ajuda em outros setores, ao que se dá nome de intersetorialidade; reconhecer 
                              os limites dos profissionais de saúde e das tecnologias por eles empregadas 
                              (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p.9). 
                             
                          _______________________________________________ 
                            13 Essa ideia foi desenvolvida por Nicolau de Cusa (1401-1464) em sua obra Da ignorância Douta
                            (1440). Agradecemos ao psicanalista Luciano Elia, que, no seminário comemorativo dos 21 anos do
                            programa de saúde mental em Brumadinho, nos lembrou da ideia de ignorância douta ao ressaltar a
                            necessidade de reconhecermos o saber do paciente, bem como de recusarmos um saber puramente
                            especialista na clínica da saúde mental. 
                          CAMPOS e DOMITTI (2007), ao refletirem sobre a clínica ampliada,
                            explicitam que a maioria das especialidades e profissões de saúde trabalha com um
                            referencial sobre o processo de saúde e doença restrito, seja no campo biomédico, social
                            ou subjetivo. 
                             
                            Diferentemente dessa abordagem, o enfoque da clínica ampliada sugere
                            maneiras para integrar essas perspectivas em um método de trabalho que reconheça a
                            complexidade e a variabilidade dos fatores e dos recursos envolvidos em cada caso
                            específico, seja ele um problema individual ou coletivo, trabalhando de maneira
                            interdisciplinar. A clínica ampliada pressupõe, então, algum grau de adesão a um
                            paradigma que pense o processo de saúde, doença e intervenção de modo mais
                            complexo e dinâmico. Ou seja, sua ideia chave é "ser um instrumento para que os
                            trabalhadores e gestores de saúde possam enxergar e atuar na clínica para além dos
                            pedaços fragmentados, sem deixar de reconhecer e utilizar o potencial desses 
                            saberes"(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008, p.3). 
                             
                            Sobre essa questão, SILVA E COSTA (2010) afirmam: 
                          
                            a atuação de referência exige articulação de vários saberes e de diversos
                              campos relacionais (familiar, laboral, social, cultural etc.). Essa construção
                              acontece em um terreno fértil de múltiplas possibilidades de trocas e
                              conflitos. Por isso, o modelo de gestão e a organização do serviço precisam
                              garantir espaços sistemáticos de reuniões ou encontros que estabeleçam 
                              planejamento, discussões de caso, supervisão clínico-institucional,
                              capacitação, enfim, espaços que considerem a complexidade e a intensidade
                              das relações que pressupõem todos os atores sociais inseridos no campo da
                              saúde mental (SILVA e COSTA, 2010, p. 644) . 
                             
                          É partindo desses pressupostos que entendemos que o assistente social, o
                            enfermeiro, o terapeuta ocupacional e outros profissionais da saúde mental, a partir do
                            desejo e da busca de uma formação consistente para ocupar essa função, têm mais uma
                            possibilidade de atuação na área, ou seja, constituir-se como técnico de referência dos
                            casos atendidos. Nessa perspectiva, vale ressaltar as palavras de SILVA (2003), sobre a
                            atuação das diferentes categorias profissionais nos vários dispositivos de tratamento em
                            um serviço de saúde mental: 
                          
                            entendemos que a passagem de todos os profissionais pelos vários
                              dispositivos do serviço, de acordo com o desejo de cada um, é fundamental.
                              O trabalhar em equipe nos remete à legitimação e, ao mesmo tempo,
                              dissolução do lugar do saber. O encontro com o impasse, com um vazio, nos
                              coloca diante das possibilidades. É isso que nos possibilita um movimento 
                              constante de construção da clínica. No momento em que o psiquiatra abdica
                              de apenas prescrever medicamentos, o assistente social de apenas fazer
                              visitas domiciliares, o terapeuta ocupacional de apenas coordenar oficinas, o
                              enfermeiro de apenas administrar medicação, o psicólogo de apenas fazer
                              psicoterapia e nos permitimos inventar dispositivos novos onde 
                              resguardamos todas essas especificidades e ao mesmo tempo,
                              experimentamos lugares e funções diferentes, é possível, entre outras coisas,
                              questionar o ideal de um saber puramente especialista e experimentar esse
                              lugar de não saber, lugar esse que nos causa, que nos provoca e que faz com
                              que o inusitado surja (SILVA, 2003, p.231). 
                             
                          Para finalizar, destaca-se então que, para desempenhar sua função, o técnico de
                            referência na clínica da saúde mental precisa reconhecer a necessidade de recusar um
                            saber puramente especialista. Entretanto, se, de um lado, faz-se necessário superar a
                            fragmentação dos saberes na saúde mental, por outro lado, não podemos perder de vista
                            a ideia da ignorância douta, conforme já anunciada neste texto. Ou seja,é imprescindível assumirmos uma posição de não saber para darmos lugar ao saber do
                            paciente. Como vimos anteriormente, a chamada ignorância douta é uma ignorância
                            instruída, e, diante dela, somos impulsionados a seguir buscando... E, no contexto da
                            saúde mental, por que não seguir construindo coletivamente o projeto terapêutico do
                            usuário como um técnico de referência? E mais: por que não partir do próprio saber do
                            paciente? 
                          _______________________________________________________________________________ 
                             
                            Referências Bibliográficas: 
                             
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