ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 15 Setembro à Dezembro de 2011
 
   
 
   
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  A contribuição do conceito de transferência para as medidas socioeducativas

The contribution to the concept of transfer to the socio-educational measures Carolinae
 
     
 

Carolina Nassau Ribeiro
Psicanalista. Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Trabalhou como supervisora clínica das medidas socioeducativas de Liberdade
Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade, executadas pela Prefeitura de Belo Horizonte,
no período de 2009 até 2012.
Professora Assistente da Faculdade Pitágoras de Betim.
E-mail: carolnassau@gmail.com

Resumo: O artigo tem como objetivo rastrear o conceito de transferência nas obras de
Freud e Lacan para pensá-lo no trabalho de acompanhamento dos adolescentes autores
de ato infracional em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Ao
realizar essa proposta, a autora propõe o transporte do termo de um campo para outro, a
saber, da clínica psicanalítica para a execução das medidas socioeducativas em meio
aberto.

Palavras-chave: Psicanálise; Transferência; Transporte; Medida socioeducativa; Ato
infracional.

Abstract: The article aims to trace the concept of transference in the works of Freud
and Lacan to think of it the work-up of adolescents authors of infraction in fulfillment
of educational measures in an open environment. This proposal to accomplish this, the
author proposes the term transport from one field to another, namely, the psychoanalytic
clinic for the implementation of educational measures in an open environment.
Keywords: Psychoanalysis; Transfer; Transportation; Socio-educational Measure;
Breaking Act.
 
 


A contribuição do conceito de transferência para as medidas socioeducativas1

Introdução

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, o adolescente que cometer atos infracionais deve receber medidas socioeducativas, já que essa lei considera o ato infracional uma contravenção penal. Embora seja considerado inimputável, o adolescente é responsabilizado por seus atos por meio de tais determinações. Portanto, terá oportunidade de responder por esse ato em um processo judicial que, para determinar a medida a ser aplicada, levará em conta o momento peculiar de desenvolvimento em que ele se encontra, bem como a gravidade do ato cometido e a sua capacidade para cumprir a medida socioeducativa. Levando em consideração esses critérios, o ECA determina seis medidas socioeducativas, a saber: advertência, reparo ao dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação.

A experiência de trabalho como psicóloga clínica e, posteriormente, como supervisora da equipe no âmbito da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura de Belo Horizonte, acompanhando a execução das medidas de liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade de jovens que cometeram algum tipo de ato infracional, foi conduzida levando em conta a seguinte questão: Como a psicanálise pode contribuir no acompanhamento desses jovens para que possam se responsabilizar tanto pelo ato quanto pelos aspectos subjetivos de sua trajetória?

...a escuta e alguns conceitos extraídos da psicanálise dialogam com essa prática, evitando-se contundentemente encarnar o lugar sancionatório da lei. Isso também ajuda a distinguir a cada vez o campo jurídico daquele da psicanálise e, no entanto, sustentar a interface possível entre eles (RIBEIRO, 2010, p. 168).

Entre os conceitos fundamentais da psicanálise, foi possível apurar que o conceito de transferência contribuía seja com a prática daqueles que, por formação pessoal trabalhavam com a psicanálise, seja para psicólogos e assistentes sociais que ainda não haviam tido contato com a psicanálise, mas que levavam para a supervisão questões só poderiam ser bem manejadas se levássemos em conta tal conceito. Esse foi o ensejo que nos levou a sustentar as hipóteses e as articulações tecidas ao longo deste artigo.

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1Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8069/90, reconhece a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O ECA prevê determinação de medidas socioeducativas para adolescentes autores de ato infracional. O texto foi desenvolvido a partir do trabalho com as medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade.

O conceito de transferência em Freud e Lacan

O presente artigo tem como objetivo rastrear o conceito de transferência para pensá-lo no âmbito das medidas socioeducativas em meio aberto. É uma tarefa árdua, que exigirá também o transporte do termo de um campo para outro, a saber, da clínica psicanalítica para a execução das medidas socioeducativas em meio aberto.

O termo transferência (Übertragung) foi utilizado por Freud desde os "Estudos sobre a histeria" (1895) e na "Interpretação dos sonhos" (1900), com o significado de transporte e/ou transferência de sentido, sem a concepção e a relevância capital que passou a ter no manejo do tratamento depois do caso Dora. Não obstante, desde os primórdios da psicanálise, o fenômeno transferencial se manifestou.2 Anna O. foi a primeira a traduzi-lo por meio de uma pseudociese que, em decorrência dos sentimentos carregados de libido, desenvolveu pelo Dr. Breuer, médico que a tratava duas vezes ao dia. Vale destacar aqui o efeito de horror que tal afeto gerou no médico, ocasionando inclusive a interrupção do tratamento. No caso Dora, a transferência também surpreende Freud e, consequentemente, atrapalha a condução do tratamento: "Mas fiquei surdo [...].

Assim, fui surpreendido pela transferência e, por causa desse x3 que me fazia lembrarlhe
o Sr. K., ela se vingou de mim como se acreditara enganada e abandonada por ele"
(FREUD, 1905/1989, p. 113).

De acordo com o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Hanns, genericamente o termo "refere-se à ideia de aplicar (transpor) de um contexto para outro uma estrutura, um modo de ser ou de se relacionar" (HANNS, 1996, p. 412) e tem uma conotação que na língua portuguesa poderia ser descrita como "carregar-de-lá-para-cá-e-depositar-aqui", destacando, nesse caso, a ideia de um "arco de ligação"4 que mantém os dois pontos interligados (HANNS, 1996, p. 413).

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2 De acordo com Hanns, Freud já usa o termo Übertragung em 1895 para se referir a uma "falsa ligação" que se dá entre médico e paciente quando escreve sobre a psicoterapia da histeria (HANNS, 1996, p. 416).

3 Pensamos se não seria interessante associar esse x do qual Freud nos fala com Sq do matema do analista proposta por Lacan.

Os sentimentos de amor e ódio que um paciente passa a desenvolver por seu analista ficam cada vez mais evidentes para Freud, tanto é que ele escreve dois artigos só sobre o tema e realça tanto a sua importância para a cura quanto a inconveniência do amor transferencial como forma de resistência ao tratamento (FREUD, 1912 e 1915).

De acordo com ele, uma análise acontece por causa da transferência e apesar da transferência. Afirma ainda que o fenômeno se caracteriza por meio de "clichês" que se repetem no decorrer da vida de uma pessoa e que serão reimpressos com aquele que se coloca na posição de escutar. Vale destacar que a transferência não é um fenômeno restrito ao "setting" analítico, mas pode acontecer, por exemplo, na relação entre médico e paciente, professor e aluno, para citar os mais evidentes. A transferência pode ser caracterizada por três fenômenos: repetição, resistência e sugestão. Surge como uma surpresa e como um problema na clínica de Freud quando ele percebe que o analisando imputa na figura do analista seu arcabouço real, imbólico e imaginário repetindo na situação analítica a posição que tem frente ao Outro. Tratase, portanto, da repetição em ato da realidade psíquica de cada sujeito em questão. "São
reedições, reproduções [...] toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida,
não como algo do passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico"
(FREUD, 1905/1989, p. 110).

A resistência é amplamente abordada por Freud como um dos nós do manejo transferencial: na medida em que ama e odeia o analista, o sujeito resiste ao saber que poderá ser construído durante o processo analítico. Por outro lado, é a própria transferência que fará uma mostração não pela via da palavra, mas pela via da atualização do que está sendo reimpresso para cada sujeito.5 Esse é um dos motivos pelos quais tanto o diagnóstico quanto as intervenções em psicanálise só devem ser produzidas a partir da instalação da transferência.

Já a sugestão aparece como um corolário do efeito da transferência, e o próprio Freud (1912) admite que existe alguma dose de sugestão na transferência. Ele traduz essa porção como "a influenciação (sic) de uma pessoa por meio dos fenômenos transferenciais possíveis em seu caso" (FREUD, 1912/1989, p. 140). Considero que esses efeitos não devem ser ignorados e penso que manejá-los com cuidado e respeitoé dever ético. Aprendemos com Freud os riscos da sugestão quando ele nos aponta que "nas instituições em que doentes dos nervos são tratados de modo não analítico, podemos observar que a transferência ocorre com a maior intensidade e sob as formas mais indignas, chegando a nada menos que servidão mental e, ademais, apresentando o mais claro colorido erótico" (FREUD, 1912/1989, p. 136).

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4 Hanns (1996, p. 415) afirma: "Ao traduzir-se o termo Übertragung por transferência, perde-se a conotação de trânsito reversível e maleável por um "arco" que interliga o ponto de origem e o ponto de destino, "arco" este ao longo do qual é possível transitar carregando um material".

5Evidencia-se que a repetição e a resistência se manifestam de maneira intricada no fenômeno transferencial.

Sobre o amor como efeito da transferência, Lacan (1964-1965/1998) o ironiza afirmando que se trata de uma "tapeação", pois o que intervém nesse caso é o amor em sua faceta de resistência. E, como todo amor, o que está em jogo é a demanda de querer ser amado e, muitas vezes, com esse intuito se apresenta como amável para o seu analista.

No seminário sobre a "Transferência" (1960-1961/1992), Lacan faz alusão ao "Banquete", de Platão, para mencionar o que está em jogo na dinâmica da transferência. O "Banquete" retrata o diálogo de um grupo de homens, em sua maioria filósofos, confabulando acerca do amor. Lacan pincela um dos últimos momentos do texto platônico, no qual Alcebíades faz uma declaração de amor para Sócrates e desfia os enlaces da trama transferencial em jogo. Alcebíades chega bêbado à casa de Agatão, depois que todos os presentes já haviam feito o seu elogio ao amor e começa a louvar não o amor, mas Sócrates.

Exalta qualidades de Sócrates como orador, filósofo e sábio, além de descrever todas as suas próprias tentativas frustradas de conquistá-lo. Já no final da dissertação, Agatão, um belo jovem que estava sentado ao lado de Sócrates, adverte Alcebíades de que deveria ter cuidado, pois, segundo ele mesmo, Sócrates só suportava a posição de "bem amado", nunca a de "amante" (LACAN, 1960-1961/1992). Sócrates, então, percebe que o encanto que causara em Alcebíades e toda a exposição do discurso amoroso se tratavam de um acessório utilizado para esconder algo do seu desejo. Assim, o pensador escuta as palavras de Alcebíades e, ainda que não fosse
analista, o interpreta mostrando que o seu amor estava dirigido não a ele, mas a Agatão,
a quem aludira no final de sua alocução.

Lacan faz notar nessa passagem a função do saber de Sócrates no amor que Alcebíades lhe dedica: "...o fato de Sócrates recusar-se a entrar, ele próprio, no jogo do amor, está estreitamente relacionado com o seguinte, situado na origem como o ponto de partida, é que ele sabe. [...] E diremos que é porque Sócrates sabe que ele não ama" (LACAN, 1960-1961/1992, p. 156, grifos nossos). Observa-se, assim, como Lacan vai ressaltar a questão do saber em decréscimo do amor em jogo na transferência. Obviamente, o que Sócrates sabe é que "nada sabe", e isso possibilita o desvelamento dos ensejos de Alcebíades, na medida em que se recusa a lhe responder essa demanda de amor.6

Não é por acaso que alguns anos mais tarde Lacan (1964-1965/1998), com o intuito de revisitar o conceito de transferência, inova-o a partir da noção de "sujeito suposto saber". Com essa visada, Lacan situa a transferência na vertente de amor, menos ao analista e mais ao saber. O analista seria o sujeito suposto a saber da verdade do sujeito e, a partir dessa suposição, o analisando acaba construindo um saber sobre o que lhe concerne e que sobre o qual se queixa. Ultrapassa-se, assim, a ideia de transferência como fenômeno imaginário, rígido e fixo em um entorpecimento amoroso e avança-se com o problema do saber em jogo numa análise. Evidencia ainda que a própria regra fundamental da psicanálise, na qual o sujeito é convidado a falar livremente o que lhe vier à cabeça, coloca o analista nessa função de suposto saber e, ao mesmo tempo, na posição de intérprete, qual seja, aquele que outorga um sentido ao que é dito pelo paciente.

Para Lacan (1967/2003, p. 253), o "sujeito suposto saber é [...] o eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência" e sobre o qual gravitam as suas outras manifestações fenomênicas citadas, quais sejam, repetição, resistência e sugestão. A transferência é inaugurada a partir de um significante qualquer que fisga o sujeito e permite que ele localize um analista a quem endereçar a demanda de saber sobre o que lhe parece enigmático e lhe causa sofrimento. Urge enfatizar que, para ser colocado na posição de sujeito suposto saber, nãoé necessário que se saiba demais.7

Trata-se, como nos assevera Lacan, de uma função— f(x) —, que pode ser ocupada por qualquer um: "De cada vez que essa função pode ser para o sujeito, encarnada em quem quer que seja, analista ou não, resulta da definição que venho lhes dar que a transferência já está então fundada" (LACAN, 1964/1998, p. 220, grifo nosso). Não obstante, àqueles que estão avisados de que poderão ocupar esselugar cabe não se identificar com o sujeito suposto saber, tampouco acreditar que servem de modelo ou são educadores de algum tipo de conduta, mas também não devem esquecer que naquele espaço há um saber: trata-se de um ponto de tensão a ser sustentado.

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6 Lacan (1960-1961, p. 161) esclarece a posição de Sócrates quando afirma: "...esse algo que ele (Alcebíades) viu em Sócrates e do qual Sócrates o devia, porque Sócrates sabe que não tem".

7 Lacan adverte: "É claro que, do saber suposto, ele nada sabe" (LACAN, 2003[1967], p. 254).

Apontamento sobre o manejo da transferência

Freud e Lacan puderam nos fornecer algumas pistas extremamente valiosas no que concerne ao manejo da transferência. Antes de nos debruçarmos sobre elas, lançaremos luz sobre um fragmento de uma supervisão no qual uma técnica da medida socioeducativa de liberdade assistida, com a formação de assistente social, indagava sobre como lidar com um adolescente que insistia em trocar o nome dela e chamá-la pelo nome não de uma pessoa qualquer, mas da garota com quem estava iniciando um enlace amoroso. Esse pequeno exemplo evidencia a incidência da transferência no acompanhamento de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e a importância de não estarmos desavisados sobre o fenômeno.

Em relação à manifestação do amor de transferência, Freud propõe uma espécie de "abstinência" como princípio ético e técnico para a condução do tratamento. "O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência" (FREUD, 1915/1989, p. 214). As demandas e os anseios do paciente não devem ser mitigados por meio de sucedâneos.8 Assim sendo, cabe não corresponder ao endereçamento amoroso, mas ter uma condução que leve em conta a lógica topológica da banda de Möebius: o analista sabe que o endereçamento de amor é e não é para ele. Explico-me melhor: o amor de transferência por um lado, é para ele, na medida em que há uma demanda real e atual que lheé dirigida; por outro lado, não é para ele, já que não são os seus dotes que motivam esse amor, e sim o transporte que se reatualiza pela própria suposição de saber que está em jogo na situação.

Percebe-se, assim, que o objetivo principal de Freud é advertir os analistas para que não se deixem levar pelos encantamentos dessa afeição, que, bem conduzida, contribui para o bom andamento da cura. Para tanto, conta a piada do pastor e do vendedor de seguros para se referir ao "mau cálculo" daqueles que acreditam que corresponder ao amor de transferência garantiria o sucesso do tratamento e a melhora do paciente:

A paciente alcançaria o objetivo dela, mas ele nunca alcançaria o seu. O que aconteceria ao médico e à paciente seria apenas o que aconteceu, segundo a divertida anedota, ao pastor e ao corretor de seguros. O corretor de seguros, livre pensador, estava à morte e seus parentes insistiram em trazer um homem de Deus para convertê-lo antes de morrer. A entrevista durou tanto tempo que aqueles que esperavam do lado de fora começaram a ter esperanças. Por fim, a porta do quarto do doente se abriu. O livre pensador não havia sido convertido, mas o pastor foi embora com um seguro (FREUD, 1915/1989, p. 215).

No artigo "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1958/1998, p. 591), Lacan denuncia o desvio da prática psicanalítica que se transformava em uma "reeducação emocional do paciente", na qual o analista, já sem pudores, moldava o paciente à sua imagem e semelhança. O autor considera tal fato como uma "impostura" e um "exercício de poder". Propõe, então, três significantes — política, estratégia e tática — utilizados na guerra para nortear o lugar do analista em sua conduta e enxugar os excessos do imaginário.

A política refere-se à falta-a-ser; termo forjado por Lacan para designar o lugar que o analista deve ocupar e suportar na condução de uma análise. Ao criar esse termo, ele critica uma corrente de psicanalistas que davam consistência ao "ser" do analista— um dos exemplos citados faz alusão a uma doutrina francesa que afirmava que o ser do analista é inato 1958/1998, p. 597). Para Lacan, a falta-a-ser implica que o analista se isente de seus juízos de valor e de seus interesses pessoais para dirigir o tratamento.

Importa mais ao analista se fiar na abnegação de seu ser, do que no momento e no número de suas intervenções. A estratégia refere-se ao manejo da transferência que pode ser considerada "o segredo da análise", pois através da transferência se desfiam as singularidades de cada análise. Lacan critica veementemente aqueles que se utilizam do conceito de contratransferência para mascarar o que a transferência revela. A tática é a intervenção do analista — pontuação, interpretação e ato analítico —, que só deve ser efetuada após a instalação da transferência. A tática, segundo Lacan, é o mais variável em uma análise, pois importa menos a especificidade da intervenção feita pelo analista do que o lugar que ele sustenta.

Ora, sem dúvida, falta-a-ser tem estreita relação com o manejo da transferência, e ouso até mesmo relacioná-lo com o que Freud nomeia de "privação" ou neutralidade do analista. Sobre essa discussão, Célio Garcia assinala que, sempre que os gregos se referiam a Eros (Amor), eles não deixavam de lado o Anteros,9 que caracteriza a não reciprocidade e assimetria da relação amorosa. Ele explicita como essa concepção contribui para pensarmos o que Freud nomeia de "neutralidade" ou manejo da "contratransferência", já que não existe uma correspondência imediata entre analista e analisando: "Para os que preferem guardar neutralidade de acordo com o modelo de Freud, contratransferência será sempre uma perturbação. Em vez de apelar para perturbação, os gregos disseram não reciprocidade com muito mais elegância" (GARCIA, 2008).

Da transferência selvagem ao sujeito suposto saber
Em 1962, no seminário A angústia, Lacan propõe a diferença entre passagem ao
ato e acting-out. O acting-out é algo que essencialmente se mostra para o Outro, é uma
mostração velada, não velada em si, mas velada para o sujeito. Ao contrário do sintoma,
no acting-out, o sujeito não formula uma queixa, não se pergunta sobre o sentido de seu
ato, não faz subjetivação. O sujeito não sai da cena; ele faz uma interpelação ao Outro.
É um ato que pede interpretação, contudo a interpretação nesse momento não produz
muito efeito. O acting-out é o início da transferência. Lacan nos diz que não é preciso
análise para que haja transferência. E acrescenta: "...a transferência sem análise é o
acting-out" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 140). Trata-se, segundo ele, de uma
"transferência selvagem" e da questão de como é possível manejar e dar lugar a essa
"transferência selvagem". Os adolescentes chegam às medidas socioeducativas a partir de um ato qualificado como infracional e sobre o qual geralmente têm muito pouco a dizer.

Relatam que comparecem para "pagar o que devem ao juiz" e apresentam um discurso
quase estereotipado sobre os motivos que os levaram a atuar: "Fui na pilha dos colegas", "Precisava de dinheiro para comprar minhas coisas", ou até mesmo "Me ocorreu, e eu fiz". Nesse momento inicial, o técnico é aquele a quem o adolescente supõe que não deve se expor muito, já que será ele quem "dará as notícias" sobre o jovem ao juiz. Não poderemos supor que há uma transferência na prática de ato infracional ou indisciplinar.

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9De acordo com Garcia: "Já foram propostas as seguintes traduções para Anteros: "contra-amor", "antiamor", "amor correspondido", "amor recíproco"; em inglês, "back-love", "love for love", "reciprocation of love", "to match love".

O jovem chega à medida socioeducativa por uma determinação cujo caráter coercitivo não se pode ignorar. Não é raro que o jovem questione o técnico sobre as informações que são repassadas para o juiz e se existe alguma possibilidade de o técnico contribuir para uma atenuação ou, até mesmo, extinção da medida que lhe foi determinada. Observa-se nessas demandas iniciais o que Célio Garcia (2008), fazendo alusão ao conceito lacaniano de sujeito suposto saber, denominou de sujeito suposto poder, qual seja, o adolescente supõe que o técnico tem um poder sobre a sua situação judicial, já que a letra da lei sanciona uma medida que o convoca a alguns deveres e restrições. Muitas vezes, o jovem que inicia o cumprimento da medida socioeducativa, antes que o seu processo de responsabilização seja construído, demanda que o técnico o ajude a "sair" dessa situação o mais depressa possível. Muitos, inclusive, são os que se esquivam ao convite que lhes é feito para falar um pouco mais de si, temendo esse suposto poder do técnico.

Sendo assim, inicialmente o técnico é colocado na posição de sujeito suposto poder sobre a situação do adolescente em conflito com a lei, sobre os trâmites e as atitudes que ele deve ter para cumprir de forma satisfatória a medida. Muitos adolescentes acreditam, inclusive, que a folha assinada por eles para prestar contas dos vales sociais que recebem seria, na verdade, uma folha de presença aos atendimentos a ser entregue para o juiz. Ora, sabemos que, de fato, o relatório técnico tem algum poder sobre a determinação judicial do adolescente e que o acompanhamento técnico pode ter características regulatórias na medida, pois delibera que o jovem se matricule na escola, frequente as aulas, não fique nas ruas durante a noite, vá semanalmente aos atendimentos técnicos e que, no caso da medida de prestação de serviços à comunidade (PSC), execute a atividade ou tarefa em um local próximo à sua casa. Não obstante,é valioso para trabalho que o técnico não se identifique com esse lugar de poder, o que acarretaria uma grande dificuldade no acompanhamento, já que não permitiria que o
jovem deixasse aflorar o que lhe é mais singular.

Cabe ao técnico abrir uma brecha no discurso estereotipado de alguns jovens e escutar um pouco do que eles têm a dizer, permitindo, assim, que o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa desloque essa suposição de poder para uma suposição de saber sobre o que ele trouxer. O técnico deve estar atento para não ser surpreendido pelos efeitos transferenciais citados ao longo deste texto. Tal como Sócrates com Alcebíades, o técnico deve reconhecer o que está em jogo na transferência e possibilitar um espaço de construção de algum saber a partir do próprio adolescente, sem jamais ocupar o lugar de mestre ou até mesmo de juiz.

Ainda que a medida não vise o trabalho analítico do jovem, muitas vezes, saberfazer com a transferência contribui para o processo de responsabilização, uma responsabilização que também passa pelo campo da palavra. O cumprimento da medida também pode facilitar o trânsito jovem pela cidade, na medida em que a transferência permite o transporte de um espaço para o outro, um "carregar-de-lá-para-cá". Muitas vezes, é assim que o adolescente consente em retomar os estudos, em se tratar na saúde mental, fazer um curso profissionalizante e, até mesmo, executar a tarefa para a prestação de serviço à comunidade. Não se trata apenas de encaminhar, pois sabemos que o simples encaminhar não veicula novas possibilidades. O enfoque nesses casos seria mais o da transferência como transporte para outros espaços e outras oportunidades, para além da prática de atos infracionais.

Observa-se, sobretudo nos adolescentes em cumprimento de medida de prestação de serviço à comunidade, uma demanda para que técnico escolha para ele a atividade que deve realizar, e cabe ao técnico desconfiar das implicações transferenciais em jogo nessas demandas.

Finalmente, pode-se supor uma ampliação das ocorrências transferenciais no campo das medidas socioeducativas em meio aberto, tanto de um adolescente com o técnico que o atende, como também da rede em relação ao técnico, que busca nele um saber sobre como lidar com determinado tipo de adolescente. Em supervisão é nítido que, em alguns casos, o laço transferencial acontece dentro da própria instituição onde o jovem executa a atividade, geralmente com o educador de referência. Auxiliar e manejar as transferências em jogo em cada caso é função do técnico, que deverá estar avisado dos efeitos transferenciais.

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