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A contribuição do conceito de transferência para as medidas
socioeducativas1
Introdução
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n.º 8.069, de
13 de julho de 1990, o adolescente que cometer atos infracionais deve receber medidas
socioeducativas, já que essa lei considera o ato infracional uma contravenção penal.
Embora seja considerado inimputável, o adolescente é responsabilizado por seus atos
por meio de tais determinações. Portanto, terá oportunidade de responder por esse ato
em um processo judicial que, para determinar a medida a ser aplicada, levará em conta o
momento peculiar de desenvolvimento em que ele se encontra, bem como a gravidade
do ato cometido e a sua capacidade para cumprir a medida socioeducativa. Levando em
consideração esses critérios, o ECA determina seis medidas socioeducativas, a saber:
advertência, reparo ao dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida,
semiliberdade e internação.
A experiência de trabalho como psicóloga clínica e, posteriormente, como
supervisora da equipe no âmbito da Secretaria Municipal de Assistência Social da
Prefeitura de Belo Horizonte, acompanhando a execução das medidas de liberdade
assistida e a prestação de serviços à comunidade de jovens que cometeram algum tipo
de ato infracional, foi conduzida levando em conta a seguinte questão: Como a
psicanálise pode contribuir no acompanhamento desses jovens para que possam se
responsabilizar tanto pelo ato quanto pelos aspectos subjetivos de sua trajetória?
...a escuta e alguns conceitos extraídos da psicanálise dialogam com
essa prática, evitando-se contundentemente encarnar o lugar
sancionatório da lei. Isso também ajuda a distinguir a cada vez o
campo jurídico daquele da psicanálise e, no entanto, sustentar a
interface possível entre eles (RIBEIRO, 2010, p. 168).
Entre os conceitos fundamentais da psicanálise, foi possível apurar que o
conceito de transferência contribuía seja com a prática daqueles que, por formação pessoal trabalhavam com a psicanálise, seja para psicólogos e assistentes sociais que
ainda não haviam tido contato com a psicanálise, mas que levavam para a supervisão
questões só poderiam ser bem manejadas se levássemos em conta tal conceito. Esse foi
o ensejo que nos levou a sustentar as hipóteses e as articulações tecidas ao longo deste
artigo.
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1Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8069/90, reconhece a criança e o
adolescente como sujeitos de direitos. O ECA prevê determinação de medidas socioeducativas para
adolescentes autores de ato infracional. O texto foi desenvolvido a partir do trabalho com as medidas de
Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade.
O conceito de transferência em Freud e Lacan
O presente artigo tem como objetivo rastrear o conceito de transferência para
pensá-lo no âmbito das medidas socioeducativas em meio aberto. É uma tarefa árdua,
que exigirá também o transporte do termo de um campo para outro, a saber, da clínica
psicanalítica para a execução das medidas socioeducativas em meio aberto.
O termo transferência (Übertragung) foi utilizado por Freud desde os "Estudos
sobre a histeria" (1895) e na "Interpretação dos sonhos" (1900), com o significado de
transporte e/ou transferência de sentido, sem a concepção e a relevância capital que
passou a ter no manejo do tratamento depois do caso Dora. Não obstante, desde os
primórdios da psicanálise, o fenômeno transferencial se manifestou.2 Anna O. foi a
primeira a traduzi-lo por meio de uma pseudociese que, em decorrência dos sentimentos
carregados de libido, desenvolveu pelo Dr. Breuer, médico que a tratava duas vezes ao
dia. Vale destacar aqui o efeito de horror que tal afeto gerou no médico, ocasionando
inclusive a interrupção do tratamento. No caso Dora, a transferência também surpreende
Freud e, consequentemente, atrapalha a condução do tratamento: "Mas fiquei surdo [...].
Assim, fui surpreendido pela transferência e, por causa desse x3 que me fazia lembrarlhe
o Sr. K., ela se vingou de mim como se acreditara enganada e abandonada por ele"
(FREUD, 1905/1989, p. 113).
De acordo com o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Hanns,
genericamente o termo "refere-se à ideia de aplicar (transpor) de um contexto para outro
uma estrutura, um modo de ser ou de se relacionar" (HANNS, 1996, p. 412) e tem uma
conotação que na língua portuguesa poderia ser descrita como "carregar-de-lá-para-cá-e-depositar-aqui", destacando, nesse caso, a ideia de um "arco de ligação"4 que mantém
os dois pontos interligados (HANNS, 1996, p. 413).
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2 De acordo com Hanns, Freud já usa o termo Übertragung em 1895 para se referir a uma "falsa ligação" que se dá entre médico e paciente quando escreve sobre a psicoterapia da histeria (HANNS, 1996, p.
416).
3 Pensamos se não seria interessante associar esse x do qual Freud nos fala com Sq do matema do analista
proposta por Lacan.
Os sentimentos de amor e ódio que um paciente passa a desenvolver por seu
analista ficam cada vez mais evidentes para Freud, tanto é que ele escreve dois artigos
só sobre o tema e realça tanto a sua importância para a cura quanto a inconveniência do
amor transferencial como forma de resistência ao tratamento (FREUD, 1912 e 1915).
De acordo com ele, uma análise acontece por causa da transferência e apesar da
transferência. Afirma ainda que o fenômeno se caracteriza por meio de "clichês" que se
repetem no decorrer da vida de uma pessoa e que serão reimpressos com aquele que se
coloca na posição de escutar. Vale destacar que a transferência não é um fenômeno
restrito ao "setting" analítico, mas pode acontecer, por exemplo, na relação entre
médico e paciente, professor e aluno, para citar os mais evidentes.
A transferência pode ser caracterizada por três fenômenos: repetição, resistência
e sugestão. Surge como uma surpresa e como um problema na clínica de Freud quando
ele percebe que o analisando imputa na figura do analista seu arcabouço real, imbólico
e imaginário repetindo na situação analítica a posição que tem frente ao Outro. Tratase,
portanto, da repetição em ato da realidade psíquica de cada sujeito em questão. "São
reedições, reproduções [...] toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida,
não como algo do passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico"
(FREUD, 1905/1989, p. 110).
A resistência é amplamente abordada por Freud como um dos nós do manejo
transferencial: na medida em que ama e odeia o analista, o sujeito resiste ao saber que
poderá ser construído durante o processo analítico. Por outro lado, é a própria
transferência que fará uma mostração não pela via da palavra, mas pela via da
atualização do que está sendo reimpresso para cada sujeito.5 Esse é um dos motivos
pelos quais tanto o diagnóstico quanto as intervenções em psicanálise só devem ser
produzidas a partir da instalação da transferência.
Já a sugestão aparece como um corolário do efeito da transferência, e o próprio
Freud (1912) admite que existe alguma dose de sugestão na transferência. Ele traduz essa porção como "a influenciação (sic) de uma pessoa por meio dos fenômenos
transferenciais possíveis em seu caso" (FREUD, 1912/1989, p. 140). Considero que
esses efeitos não devem ser ignorados e penso que manejá-los com cuidado e respeitoé dever ético. Aprendemos com Freud os riscos da sugestão quando ele nos aponta que "nas instituições em que doentes dos nervos são tratados de modo não analítico,
podemos observar que a transferência ocorre com a maior intensidade e sob as formas
mais indignas, chegando a nada menos que servidão mental e, ademais, apresentando o
mais claro colorido erótico" (FREUD, 1912/1989, p. 136).
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4 Hanns (1996, p. 415) afirma: "Ao traduzir-se o termo Übertragung por transferência, perde-se a
conotação de trânsito reversível e maleável por um "arco" que interliga o ponto de origem e o ponto de
destino, "arco" este ao longo do qual é possível transitar carregando um material".
5Evidencia-se que a repetição e a resistência se manifestam de maneira intricada no fenômeno
transferencial.
Sobre o amor como efeito da transferência, Lacan (1964-1965/1998) o ironiza
afirmando que se trata de uma "tapeação", pois o que intervém nesse caso é o amor em
sua faceta de resistência. E, como todo amor, o que está em jogo é a demanda de querer
ser amado e, muitas vezes, com esse intuito se apresenta como amável para o seu
analista.
No seminário sobre a "Transferência" (1960-1961/1992), Lacan faz alusão ao "Banquete", de Platão, para mencionar o que está em jogo na dinâmica da transferência.
O "Banquete" retrata o diálogo de um grupo de homens, em sua maioria filósofos,
confabulando acerca do amor. Lacan pincela um dos últimos momentos do texto
platônico, no qual Alcebíades faz uma declaração de amor para Sócrates e desfia os
enlaces da trama transferencial em jogo. Alcebíades chega bêbado à casa de Agatão,
depois que todos os presentes já haviam feito o seu elogio ao amor e começa a louvar
não o amor, mas Sócrates.
Exalta qualidades de Sócrates como orador, filósofo e sábio,
além de descrever todas as suas próprias tentativas frustradas de conquistá-lo. Já no
final da dissertação, Agatão, um belo jovem que estava sentado ao lado de Sócrates,
adverte Alcebíades de que deveria ter cuidado, pois, segundo ele mesmo, Sócrates só suportava a posição de "bem amado", nunca a de "amante" (LACAN, 1960-1961/1992).
Sócrates, então, percebe que o encanto que causara em Alcebíades e toda a exposição do
discurso amoroso se tratavam de um acessório utilizado para esconder algo do seu
desejo. Assim, o pensador escuta as palavras de Alcebíades e, ainda que não fosse
analista, o interpreta mostrando que o seu amor estava dirigido não a ele, mas a Agatão,
a quem aludira no final de sua alocução.
Lacan faz notar nessa passagem a função do saber de Sócrates no amor que
Alcebíades lhe dedica: "...o fato de Sócrates recusar-se a entrar, ele próprio, no jogo do
amor, está estreitamente relacionado com o seguinte, situado na origem como o ponto de partida, é que ele sabe. [...] E diremos que é porque Sócrates sabe que ele não ama" (LACAN, 1960-1961/1992, p. 156, grifos nossos). Observa-se, assim, como Lacan vai
ressaltar a questão do saber em decréscimo do amor em jogo na transferência.
Obviamente, o que Sócrates sabe é que "nada sabe", e isso possibilita o desvelamento
dos ensejos de Alcebíades, na medida em que se recusa a lhe responder essa demanda
de amor.6
Não é por acaso que alguns anos mais tarde Lacan (1964-1965/1998), com o
intuito de revisitar o conceito de transferência, inova-o a partir da noção de "sujeito
suposto saber". Com essa visada, Lacan situa a transferência na vertente de amor,
menos ao analista e mais ao saber. O analista seria o sujeito suposto a saber da verdade
do sujeito e, a partir dessa suposição, o analisando acaba construindo um saber sobre o
que lhe concerne e que sobre o qual se queixa. Ultrapassa-se, assim, a ideia de
transferência como fenômeno imaginário, rígido e fixo em um entorpecimento amoroso
e avança-se com o problema do saber em jogo numa análise. Evidencia ainda que a
própria regra fundamental da psicanálise, na qual o sujeito é convidado a falar
livremente o que lhe vier à cabeça, coloca o analista nessa função de suposto saber e, ao
mesmo tempo, na posição de intérprete, qual seja, aquele que outorga um sentido ao que é dito pelo paciente.
Para Lacan (1967/2003, p. 253), o "sujeito suposto saber é [...] o eixo a partir do
qual se articula tudo o que acontece com a transferência" e sobre o qual gravitam as
suas outras manifestações fenomênicas citadas, quais sejam, repetição, resistência e
sugestão. A transferência é inaugurada a partir de um significante qualquer que fisga o
sujeito e permite que ele localize um analista a quem endereçar a demanda de saber
sobre o que lhe parece enigmático e lhe causa sofrimento.
Urge enfatizar que, para ser colocado na posição de sujeito suposto saber, nãoé necessário que se saiba demais.7
Trata-se, como nos assevera Lacan, de uma função— f(x) —, que pode ser ocupada por qualquer um: "De cada vez que essa função pode ser
para o sujeito, encarnada em quem quer que seja, analista ou não, resulta da definição
que venho lhes dar que a transferência já está então fundada" (LACAN, 1964/1998, p.
220, grifo nosso). Não obstante, àqueles que estão avisados de que poderão ocupar esselugar cabe não se identificar com o sujeito suposto saber, tampouco acreditar que
servem de modelo ou são educadores de algum tipo de conduta, mas também não
devem esquecer que naquele espaço há um saber: trata-se de um ponto de tensão a ser
sustentado.
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6 Lacan (1960-1961, p. 161) esclarece a posição de Sócrates quando afirma: "...esse algo que ele
(Alcebíades) viu em Sócrates e do qual Sócrates o devia, porque Sócrates sabe que não tem".
7 Lacan adverte: "É claro que, do saber suposto, ele nada sabe" (LACAN, 2003[1967], p. 254).
Apontamento sobre o manejo da transferência
Freud e Lacan puderam nos fornecer algumas pistas extremamente valiosas no
que concerne ao manejo da transferência. Antes de nos debruçarmos sobre elas,
lançaremos luz sobre um fragmento de uma supervisão no qual uma técnica da medida
socioeducativa de liberdade assistida, com a formação de assistente social, indagava
sobre como lidar com um adolescente que insistia em trocar o nome dela e chamá-la
pelo nome não de uma pessoa qualquer, mas da garota com quem estava iniciando um
enlace amoroso. Esse pequeno exemplo evidencia a incidência da transferência no
acompanhamento de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e a
importância de não estarmos desavisados sobre o fenômeno.
Em relação à manifestação do amor de transferência, Freud propõe uma espécie
de "abstinência" como princípio ético e técnico para a condução do tratamento. "O
tratamento deve ser levado a cabo na abstinência" (FREUD, 1915/1989, p. 214). As
demandas e os anseios do paciente não devem ser mitigados por meio de sucedâneos.8
Assim sendo, cabe não corresponder ao endereçamento amoroso, mas ter uma condução
que leve em conta a lógica topológica da banda de Möebius: o analista sabe que o
endereçamento de amor é e não é para ele. Explico-me melhor: o amor de transferência
por um lado, é para ele, na medida em que há uma demanda real e atual que lheé dirigida; por outro lado, não é para ele, já que não são os seus dotes que motivam esse
amor, e sim o transporte que se reatualiza pela própria suposição de saber que está em
jogo na situação.
Percebe-se, assim, que o objetivo principal de Freud é advertir os analistas para
que não se deixem levar pelos encantamentos dessa afeição, que, bem conduzida,
contribui para o bom andamento da cura. Para tanto, conta a piada do pastor e do vendedor de seguros para se referir ao "mau cálculo" daqueles que acreditam que
corresponder ao amor de transferência garantiria o sucesso do tratamento e a melhora do
paciente:
A paciente alcançaria o objetivo dela, mas ele nunca alcançaria o seu.
O que aconteceria ao médico e à paciente seria apenas o que
aconteceu, segundo a divertida anedota, ao pastor e ao corretor de
seguros. O corretor de seguros, livre pensador, estava à morte e seus
parentes insistiram em trazer um homem de Deus para convertê-lo
antes de morrer. A entrevista durou tanto tempo que aqueles que
esperavam do lado de fora começaram a ter esperanças. Por fim, a
porta do quarto do doente se abriu. O livre pensador não havia sido
convertido, mas o pastor foi embora com um seguro (FREUD,
1915/1989, p. 215).
No artigo "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1958/1998, p.
591), Lacan denuncia o desvio da prática psicanalítica que se transformava em uma "reeducação emocional do paciente", na qual o analista, já sem pudores, moldava o
paciente à sua imagem e semelhança. O autor considera tal fato como uma "impostura" e um "exercício de poder". Propõe, então, três significantes — política, estratégia e
tática — utilizados na guerra para nortear o lugar do analista em sua conduta e enxugar
os excessos do imaginário.
A política refere-se à falta-a-ser; termo forjado por Lacan para designar o lugar
que o analista deve ocupar e suportar na condução de uma análise. Ao criar esse termo,
ele critica uma corrente de psicanalistas que davam consistência ao "ser" do analista— um dos exemplos citados faz alusão a uma doutrina francesa que afirmava que o ser do
analista é inato 1958/1998, p. 597). Para Lacan, a falta-a-ser implica que o analista se
isente de seus juízos de valor e de seus interesses pessoais para dirigir o tratamento.
Importa mais ao analista se fiar na abnegação de seu ser, do que no momento e no
número de suas intervenções. A estratégia refere-se ao manejo da transferência que
pode ser considerada "o segredo da análise", pois através da transferência se desfiam as
singularidades de cada análise. Lacan critica veementemente aqueles que se utilizam do
conceito de contratransferência para mascarar o que a transferência revela. A tática é a
intervenção do analista — pontuação, interpretação e ato analítico —, que só deve ser
efetuada após a instalação da transferência. A tática, segundo Lacan, é o mais variável
em uma análise, pois importa menos a especificidade da intervenção feita pelo analista
do que o lugar que ele sustenta.
Ora, sem dúvida, falta-a-ser tem estreita relação com o manejo da transferência,
e ouso até mesmo relacioná-lo com o que Freud nomeia de "privação" ou neutralidade
do analista. Sobre essa discussão, Célio Garcia assinala que, sempre que os gregos se
referiam a Eros (Amor), eles não deixavam de lado o Anteros,9 que caracteriza a não
reciprocidade e assimetria da relação amorosa. Ele explicita como essa concepção
contribui para pensarmos o que Freud nomeia de "neutralidade" ou manejo da "contratransferência", já que não existe uma correspondência imediata entre analista e
analisando: "Para os que preferem guardar neutralidade de acordo com o modelo de
Freud, contratransferência será sempre uma perturbação. Em vez de apelar para
perturbação, os gregos disseram não reciprocidade com muito mais elegância" (GARCIA, 2008).
Da transferência selvagem ao sujeito suposto saber
Em 1962, no seminário A angústia, Lacan propõe a diferença entre passagem ao
ato e acting-out. O acting-out é algo que essencialmente se mostra para o Outro, é uma
mostração velada, não velada em si, mas velada para o sujeito. Ao contrário do sintoma,
no acting-out, o sujeito não formula uma queixa, não se pergunta sobre o sentido de seu
ato, não faz subjetivação. O sujeito não sai da cena; ele faz uma interpelação ao Outro.
É um ato que pede interpretação, contudo a interpretação nesse momento não produz
muito efeito. O acting-out é o início da transferência. Lacan nos diz que não é preciso
análise para que haja transferência. E acrescenta: "...a transferência sem análise é o
acting-out" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 140). Trata-se, segundo ele, de uma
"transferência selvagem" e da questão de como é possível manejar e dar lugar a essa
"transferência selvagem".
Os adolescentes chegam às medidas socioeducativas a partir de um ato
qualificado como infracional e sobre o qual geralmente têm muito pouco a dizer.
Relatam que comparecem para "pagar o que devem ao juiz" e apresentam um discurso
quase estereotipado sobre os motivos que os levaram a atuar: "Fui na pilha dos colegas", "Precisava de dinheiro para comprar minhas coisas", ou até mesmo "Me
ocorreu, e eu fiz". Nesse momento inicial, o técnico é aquele a quem o adolescente
supõe que não deve se expor muito, já que será ele quem "dará as notícias" sobre o
jovem ao juiz. Não poderemos supor que há uma transferência na prática de ato
infracional ou indisciplinar.
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9De acordo com Garcia: "Já foram propostas as seguintes traduções para Anteros: "contra-amor", "antiamor", "amor correspondido", "amor recíproco"; em inglês, "back-love", "love for love", "reciprocation of love", "to match love".
O jovem chega à medida socioeducativa por uma determinação cujo caráter
coercitivo não se pode ignorar. Não é raro que o jovem questione o técnico sobre as
informações que são repassadas para o juiz e se existe alguma possibilidade de o técnico
contribuir para uma atenuação ou, até mesmo, extinção da medida que lhe foi
determinada. Observa-se nessas demandas iniciais o que Célio Garcia (2008), fazendo
alusão ao conceito lacaniano de sujeito suposto saber, denominou de sujeito suposto
poder, qual seja, o adolescente supõe que o técnico tem um poder sobre a sua situação
judicial, já que a letra da lei sanciona uma medida que o convoca a alguns deveres e
restrições. Muitas vezes, o jovem que inicia o cumprimento da medida socioeducativa,
antes que o seu processo de responsabilização seja construído, demanda que o técnico o
ajude a "sair" dessa situação o mais depressa possível. Muitos, inclusive, são os que se
esquivam ao convite que lhes é feito para falar um pouco mais de si, temendo esse
suposto poder do técnico.
Sendo assim, inicialmente o técnico é colocado na posição de sujeito suposto
poder sobre a situação do adolescente em conflito com a lei, sobre os trâmites e as
atitudes que ele deve ter para cumprir de forma satisfatória a medida. Muitos
adolescentes acreditam, inclusive, que a folha assinada por eles para prestar contas dos
vales sociais que recebem seria, na verdade, uma folha de presença aos atendimentos a
ser entregue para o juiz. Ora, sabemos que, de fato, o relatório técnico tem algum poder
sobre a determinação judicial do adolescente e que o acompanhamento técnico pode ter
características regulatórias na medida, pois delibera que o jovem se matricule na escola,
frequente as aulas, não fique nas ruas durante a noite, vá semanalmente aos
atendimentos técnicos e que, no caso da medida de prestação de serviços à comunidade
(PSC), execute a atividade ou tarefa em um local próximo à sua casa. Não obstante,é valioso para trabalho que o técnico não se identifique com esse lugar de poder, o que
acarretaria uma grande dificuldade no acompanhamento, já que não permitiria que o
jovem deixasse aflorar o que lhe é mais singular.
Cabe ao técnico abrir uma brecha no discurso estereotipado de alguns jovens e
escutar um pouco do que eles têm a dizer, permitindo, assim, que o adolescente em
cumprimento de medida socioeducativa desloque essa suposição de poder para uma
suposição de saber sobre o que ele trouxer. O técnico deve estar atento para não ser
surpreendido pelos efeitos transferenciais citados ao longo deste texto. Tal como
Sócrates com Alcebíades, o técnico deve reconhecer o que está em jogo na transferência
e possibilitar um espaço de construção de algum saber a partir do próprio adolescente,
sem jamais ocupar o lugar de mestre ou até mesmo de juiz.
Ainda que a medida não vise o trabalho analítico do jovem, muitas vezes, saberfazer
com a transferência contribui para o processo de responsabilização, uma
responsabilização que também passa pelo campo da palavra. O cumprimento da medida
também pode facilitar o trânsito jovem pela cidade, na medida em que a transferência
permite o transporte de um espaço para o outro, um "carregar-de-lá-para-cá". Muitas
vezes, é assim que o adolescente consente em retomar os estudos, em se tratar na saúde
mental, fazer um curso profissionalizante e, até mesmo, executar a tarefa para a
prestação de serviço à comunidade. Não se trata apenas de encaminhar, pois sabemos
que o simples encaminhar não veicula novas possibilidades. O enfoque nesses casos
seria mais o da transferência como transporte para outros espaços e outras
oportunidades, para além da prática de atos infracionais.
Observa-se, sobretudo nos adolescentes em cumprimento de medida de
prestação de serviço à comunidade, uma demanda para que técnico escolha para ele a
atividade que deve realizar, e cabe ao técnico desconfiar das implicações transferenciais
em jogo nessas demandas.
Finalmente, pode-se supor uma ampliação das ocorrências transferenciais no
campo das medidas socioeducativas em meio aberto, tanto de um adolescente com o
técnico que o atende, como também da rede em relação ao técnico, que busca nele um
saber sobre como lidar com determinado tipo de adolescente. Em supervisão é nítido
que, em alguns casos, o laço transferencial acontece dentro da própria instituição onde o
jovem executa a atividade, geralmente com o educador de referência. Auxiliar e manejar
as transferências em jogo em cada caso é função do técnico, que deverá estar avisado
dos efeitos transferenciais.
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