|
Pretendemos desenvolver neste artigo um relato de experiência a partir do projeto de extensão “Tecendo a Rede: uma proposta de formação no campo da saúde mental a partir da articulação entre universidade, serviço e comunidade”. Este projeto iniciou em 2010, através da parceria firmada entre o curso de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) unidade São Gabriel e a Prefeitura de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, tendo como ação central, o desenvolvimento da metodologia da construção do caso clínico através da conversação clínica.
O objetivo de nossa reflexão neste artigo será a experiência vivenciada por nós no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) do município supracitado. Neste serviço desenvolvemos a prática de Acompanhamento Terapêutico (AT) realizada por um aluno bolsista. Os casos para essa modalidade de atendimento são encaminhados pela equipe a partir de necessidades relativas à cada situação. Esses casos geralmente mobilizam uma rede de serviços, que deve estar articulada para proporcionar uma melhor assistência. Nessa perspectiva, além do AT, o estagiário também é responsável por acionar os serviços que compõem a rede do paciente. Uma vez acionada essa rede propomos uma reunião com os profissionais destes serviços para realizarmos a construção do caso clínico a partir da conversação clínica.
Compreendemos tal construção como uma metodologia clínica de intervenção no campo da saúde mental, a qual tem como objetivo direcionar as condutas realizadas pelos profissionais do serviço, mediante um caso que lhes cause impasse. As dificuldades na condução de um caso podem servir como motor para uma prática singular demandada, já que a equipe é colocada a refletir e discutir conhecimentos e conduções até então petrificados, promovendo assim, o surgimento de algo novo e revelador acerca do sujeito. Desse modo, entendemos que essa metodologia implica em que a equipe assuma uma posição de não saber em relação ao paciente.
Viganó (1999) traz considerações relevantes sobre a construção do caso clínico e a importância da participação de outros atores. Para o autor:
Trata-se de juntar as narrativas dos protagonistas dessa rede social e de encontrar seu ponto cego, encontrar aquilo que eles não viram, cegos pelo saber e pelo medo da ignorância. Este ponto comum, a falta de saber, é o lugar do sujeito e da doença que o acometeu. A construção do caso consiste, portanto, em um movimento dialético em que as partes se invertem: a rede social coloca-se em posição discente e o paciente na posição de docente. (VIGANÓ, 1999, p. 56).
Mendes e Silva (2010) consideram que a construção do caso clínico não é um exercício acadêmico, e segundo Viganó (1999) é uma obra de alto artesanato, onde o saber técnico-científico entra apenas como uma pré-condição. Neste sentido, só quando o paciente começa a falar de sua história é que aprendemos o caminho de sua subjetividade. Isso implica em operar com o saber do paciente e não com um saber sobre o paciente. Desta forma, construir o caso clínico é colocar o paciente a trabalho, registrar seus movimentos e recolher as passagens subjetivas que contam, para que a equipe esteja pronta para escutar a sua palavra quando esta vier. É compor a história do sujeito e de sua doença, delimitando os fatores que precipitaram a patologia, buscando reconhecer os pontos mortíferos, os pontos de repetição, os tratamentos realizados, e as saídas que o próprio sujeito tem desenvolvido para lidar com o seu sofrimento.
Para refletirmos sobre nossa prática, escolhemos a construção do caso clínico Davi. A partir dessa construção pretendemos discutir o papel e as consequências do discurso psiquiátrico contemporâneo, no tratamento de crianças na rede de serviços - composta pelos serviços de saúde mental, assistência social e escola- e, evidenciar que a construção do caso clínico pode incluir outras formas de atuação/pensamento que possibilitam o aparecimento do sujeito.
O que temos vivenciado hoje na saúde mental, dentre outros aspectos, é uma hegemonia do discurso psiquiátrico, baseado na perspectiva do Manual Diagnóstico e Estatístico das Pertubações Mentais (DSM) que passa a ordenar os saberes presentes numa equipe. De fato, assistimos uma apropriação pela maioria dos profissionais do saber psiquiátrico, de forma muitas vezes superficial, e de modo a preencher talvez, algumas lacunas em sua própria formação.
Quando se trata de um CAPS infanto-juvenil isso é ainda mais preocupante, pois é essencial para as crianças o aporte advindo dos atores sociais e da família, relativas a um conjunto de expectativas que são referidas à sua formação e ao seu desenvolvimento. No entanto, quando o discurso psiquiátrico é o saber hegemônico, nota-se uma determinação das potencialidades, e o que a família e demais atores sociais (escola, assistência social, etc.) podem esperar do futuro da criança a partir da classificação dos quadros clínicos.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O DSM
No texto: “A paixão nos tempos do DSM: Sobre o recorte operacional do campo da psicopatologia” Pereira (2000), discorre sobre os sistemas operacionais de classificação dos transtornos mentais, cujo paradigma contemporâneo é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4º Ed. (DSM-IV). Esse autor afirma que a psiquiatria a partir da década de 1960, defrontou-se com dificuldades em seu percurso para se fazer reconhecer como disciplina médica de pleno direito, visto que sua legitimidade científica era contestada vigorosamente. Assim, a ausência de consistência de suas categorias diagnósticas não somente conduzia a um problema de concordância entre os diagnósticos propostos pelos próprios psiquiatras, como também ao questionamento de sua eficácia terapêutica. Pereira (2000) assinala que a psicopatologia constituía assim:
“O próprio terreno sobre o qual se desenrolavam os combates quanto à legitimidade da psiquiatria (...). As definições dadas por clínicos e pesquisadores provindos de horizontes epistemológicos diferentes tendiam, naturalmente, a recortar seus objetos teórico-clínicos segundo os pressupostos próprios de cada disciplina, deixando, assim, grande margem à confusão terminológica e à incompreensão mútuas” (PEREIRA, 2000, p. 123).
Com o objetivo de organizar as concepções científicas, acerca do sofrimento mental, o DSM foi elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA). Este manual possibilitou um mínimo de entendimento entre os diferentes ramos do conhecimento que se encontravam no campo heterogêneo chamado psicopatologia, através de uma linguagem universal. Deste modo, a criação do DSM surgiu como possível solução dos desacordos diagnósticos e terminológicos dos transtornos mentais.
De acordo com Pereira (2000), o surgimento da terceira edição do DSM - o DSM-III- em 1980, instituiu um divisor de águas na psiquiatria, visto que alterou a concepção da prática e da pesquisa psiquiátrica, na medida em que esse se propôs como um sistema operacional e ateórico. Essa classificação dos ditos transtornos mentais, ao mesmo tempo em que se empenhava em evitar os impasses entre as variáveis abordagens psicopatológicas, tinha como finalidade constituir um sistema de classificação que se debruçasse apenas sobre dados objetivos e observáveis. Dessa forma, essa classificação rejeita as abordagens que não se debruçam em fatos clínicos observáveis e contestáveis. Pereira (2000) afirma que:
“[...] resulta deste estado de coisas uma concepção cada vez mais naturalizada do padecimento mental, de modo que as dimensões históricas, culturais, subjetivas e existenciais nele implicadas, passam a ser vistas como irrelevantes ou perigosamente inefáveis – meros resquícios de metafísica aguardando pela redução científica ao plano neurobiológico, único nível explicativo não-metafórico desses fenômenos” (PEREIRA, 2000, p. 119).
A psiquiatria, portanto, passa a ter um conhecimento dito ateórico, baseado na descrição dos sintomas e substitui o vocábulo doença para o termo disorder (transtorno) para designar as categorias diagnósticas. O autor salienta que tal designação não confere nenhuma especificidade ao quadro clínico em questão, contudo preenche uma função retórica que é necessária ao bom funcionamento do sistema de classificação. Desta maneira, busca-se “idealmente tratar apenas dos problemas nosográficos privilegiandose a descrição mais objetiva possível dos quadros sintomatológicos, deixando-se de lado os questionamentos etiológicos e dos supostos mecanismos patogênicos” (PEREIRA, 2000, p. 127).
A partir da intervenção direta sobre os sintomas a ênfase no tratamento do portador de transtorno mental se desloca da análise dos sujeitos, definidos por sua singularidade, para o tratamento de casos que se constituem por sua semelhança nos sintomas.
Embora o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais afirma não manifestar preocupação com as causas dos transtornos mentais, esse mesmo sistema, atribui uma causalidade orgânica para explicação da origem dos sintomas psicopatológicos. Percebe- se, nesse contexto, o discurso da disfuncionalidade orgânica realizada pelos psiquiatras, com o intuito de alcançar um tratamento que restitui um grau de adaptabilidade do sujeito à sociedade.
Esta nova concepção dos diagnósticos reflete em uma clínica das classificações, caracterizadas no patológico, que perpassa pelo discurso objetivo, hegemônico e pragmático proposto pelos manuais. Estes, a partir de uma intervenção direta sobre os sintomas, orientam a classificação e o tratamento das doenças psicopatológicas como universais. Sendo assim, as abordagens que tratam dos fenômenos psicopatológicos, por meio de métodos não experimentais ficaram no plano secundário, e de acordo com Pereira (2000), qualquer tentativa de absolutizar um discurso, no intuito de explicar de forma hegemônica o padecer humano, é algo perigoso e merece oposição e crítica.
Deve-se considerar ainda que esse manual é um sistema que permite diagnósticos em planos como, clínico, evolutivo e sócio-familiar, ao mesmo tempo, trabalha com critérios de inclusão e exclusão, para que se chegue a um diagnóstico definitivo. Somado a isso, o que proporciona certa potência ao DSM, é o fato de possuir um caráter provisório e aberto a revisões de acordo com os debates e avanço da ciência.
Segundo Pereira (2000), é o diagnóstico que dirige as decisões quanto ao tratamento, e qualquer erro nessa matéria, pode acarretar graves conseqüências para o paciente e para o médico. Dessa maneira, a constatação de uma doença constitui um caminho arriscado a estes indivíduos, pois a nomeação de um diagnóstico pode ser uma nova maneira de o sujeito se assumir perante o mundo.
No entanto, esta forma de racionalidade do DSM que sob o argumento de pragmático, arrasta para debaixo do tapete, tudo aquilo que poderia tornar mais complexa a discussão no campo da psicopatologia, não foi indiferente ao campo da psicopatologia infantil.
Uma das características mais marcantes desse manual, no que se refere à psicopatologia da infância, é o desaparecimento do diagnóstico de psicose infantil. Desse modo, o termo psicose infantil e todo complexo debate travado entre diversos saberes perde espaço para o estabelecimento de um diagnóstico, que sob a denominação de “Transtornos Globais do Desenvolvimento” abarcam uma série de sintomas, caracterizados por um comprometimento severo e invasivo em diversas áreas do desenvolvimento, incluindo habilidades de interação social, comunicação, interesses e atividades esteriotipadas.
Dentro deste amplo espectro de comportamentos, são colocados variados transtornos dentre eles: o Transtorno Autista, Transtorno de Rett, Kleffner-Landau, Asperger, entre outros. Um dos problemas gerados, é relativo ao fato de não haver qualquer preocupação quanto ao lugar ocupado pela criança no contexto familiar e social, o que impede uma diferenciação em relação ao que pode ser da ordem de uma disfunção orgânica, e aquilo em que não há uma especificação mais clara disso. Assim, ao supor uma determinação genética para todos os transtornos, mesmos para aqueles em que não há nenhum indício comprovado, como é o caso do Transtorno de Asperger, esse manual continua afirmando que há, e colocando sob a mesma rubrica, diferentes diagnósticos, desconsiderando um posicionamento que a prática clínica nos chama a ter, aquele que diz respeito ao reconhecimento de que “nós humanos estamos situados em uma frágil fronteira entre os automatismos neurofiosiológicos e a variabilidade aberta da linguagem, onde é preciso saber reconher até onde vai um e outro” (JERUSALINSK, 2011, p. 234).
De fato, para um manual que se mantém na perspectiva de sustentar a qualquer custo uma suposta objetividade, propor uma causalidade orgânica, acaba por priorizar o funcionamento cerebral, no exercício de suas habilidades cognitivas e instrumentais. Nesse sentido, qualquer questão relativa à subjetividade é negligenciada, já que esta depende da interpretação por parte do paciente e do clínico inerente ao processo de tratamento. (BERNARDINO, 2011)
Essa discussão presente em vários autores esteve presente em nossa prática quando em nosso projeto realizamos a construção do caso clínico de Davi.
Passemos, então, ao relato de nossa experiência:
O QUE O CASO NOS ENSINA
Davi foi acolhido no Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi) em Julho de 2009, quando tinha oito anos de idade. Na ocasião, a criança fora encaminhada pela diretora da escola por apresentar dificuldades de relacionamento interpessoal, interesse restrito a um determinado assunto, agitação e impaciência quando contrariado. A queixa principal da escola, era a respeito da desatenção da criança, já que este se distraía frequentemente, desenhando animais em seu caderno. Como consequência, não copiava a matéria do quadro e não manifestava interesse em apreender outros assuntos que não convergissem para seu interesse por animais. O brincar do paciente, segundo relato da escola, era de colocar-se como um predador, pois colocava suas mãos em forma de garra, e seu repertório envolvia histórias e fatos acerca de animais. Não demonstrava interesse em brincar com a maioria dos alunos, mas também não se isolava totalmente, pois se envolvia com um ou outro.
No período em que foi acolhido pelo serviço, o paciente residia somente com sua mãe. Esta apresenta um quadro de epilepsia desde a adolescência. Davi presencia essas crises e manifesta significativa preocupação com essa condição materna, no decorrer dos atendimentos realizados pela equipe de referência do caso, (psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional e acompanhante terapêutica). Davi relata que sua mãe desmaia e passa mal sempre. Apesar dessa fragilidade, a mãe demonstra grande disponibilidade para o filho, tanto no que se refere aos cuidados cotidianos com a criança, quanto em sua participação no tratamento.
Em relação ao pai, a genitora relata que ele tinha envolvimento com tráfico de drogas e havia suspeitas de pedofilia. Diante desses fatos, o genitor saiu de casa antes do nascimento da criança. Porém, registra o filho. Vale ressaltar, que todos os relatos acerca do pai são ditos pela mãe de Davi.
Conhecemos Davi em maio de 2010, por meio da solicitação da coordenadora do CAPSi e da psiquiatra que acompanhava o caso. Davi, já havia sido assistido por uma estagiária que realizava Acompanhamento Terapêutico (AT), para essa aluna, a equipe demandou que nos AT’s fosse trabalhado as potencialidades manifestadas pelo paciente, com o intuito desse obter um bom desempenho escolar. Porém, para a nova estagiaria, a equipe solicitou o AT, não só para dar continuidade ao trabalho realizado, mas também, para compreender acerca da hipótese diagnóstica de Síndrome de Asperger realizada pela psiquiatra, uma vez que pelos relatos da equipe, o paciente demonstrava interesse quase que somente a aracnídeos, contato social restrito e potencial intelectual significativo.
Nos primeiros atendimentos com a equipe de referência, Davi era considerado de difícil abordagem, quando questionado sobre informações pessoais ou do cotidiano, o paciente inseria o tema de seu interesse, isto é, os aracnídeos, “ignorando” as intervenções dos profissionais e tampouco estabelecia contato com eles.
No decurso do atendimento, ainda com a equipe de referência, o paciente relatava detalhadamente a toxicologia, o tamanho dos animais em centímetros, partes do corpo, formas e hábitos dos aracnídeos. Quando questionado sobre os humanos, Davi apresenta um discurso bizarro e desorganizado.
A partir dos sintomas descritos, a médica psiquiatra, referência do caso, estabeleceu, com o consentimento da psicóloga e terapeuta ocupacional, o Transtorno de Asperger como hipótese diagnóstica, a partir dos critérios do DSM-IV. Esse manual considera o Transtorno de Asperger como um transtorno do espectro do autismo, uma vez que o indivíduo apresenta prejuízo qualitativo na interação social, falta de reciprocidade emocional ou social, dificuldades em processar e expressar emoções, dificuldades com mudanças, perserveração em comportamentos estereotipados e, sobretudo, manifestar interesses específicos e intensos em determinado conteúdo. Esses critérios, no entanto, podem ser conciliados com o desenvolvimento cognitivo normal ou elevado. Por isso o Transtorno de Asperger, de acordo com o DSM-IV, diferencia-se do autismo clássico por não comportar atraso global no desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do sujeito.
De fato, durante o estudo do prontuário, antes de ser iniciado o AT, percebemos que as conduções dos profissionais em relação a este caso, estavam pautadas na presença e ausência dos sintomas descritos no DSM-IV. Podia-se notar através do prontuário, que alguns profissionais acompanhavam o caso repetindo em seus registros, a presença ou não dos sintomas descritos nesse manual, e muitas vezes, desconsiderando a história do paciente e o percurso realizado desde o início de seu tratamento na instituição. Dessa forma, com o intuito de aprender, a estagiária questiona a supervisora de campo em relação ao posicionamento dos profissionais frente ao caso, o que foi acolhido pela equipe, resultando na demanda para construção do caso clínico.
A construção do caso clínico de Davi ocorreu a partir de duas conversações clínicas, que juntamente com a realização dos acompanhamentos terapêuticos, proporcionou um olhar inédito sobre o paciente, surpreendendo, tanto a acompanhante terapêutica, quanto alguns membros da equipe.
No primeiro encontro com a equipe o caso foi apresentado pela antiga técnica de referência e pelos atuais técnicos, e discutindo-se com os outros membros da equipe do CAPSi: coordenadora e estagiários do projeto Tecendo a Rede, além da pedagoga da escola freqüentada por Davi. Todos que se manifestaram colocaram suas impressões do caso, entendimento e sugestões para o tratamento.
Foi possível perceber nessa construção, que os profissionais consideraram de forma bastante positiva o percurso de Davi no tratamento, e que o Acompanhamento Terapêutico teve um papel fundamental no avanço que a criança apresentou, no que diz respeito ao aprendizado dos conteúdos escolares, da interação social com os técnicos e com colegas de escola, bem como a inclusão de outros temas relativos a sua história, não ordenados pelo interesse em animais.
No entanto, era interessante que embora a equipe reconhecesse a importância do trabalho do AT, e toda composição subjetiva de Davi presente neste trabalho, do contexto familiar e das relações parentais, em vários momentos da construção do caso, o discurso psiquiátrico oferecia, de forma privilegiada, as determinações das possibilidades futuras da criança, orientadas não pelo avanço que ela apresentava, mas pelos limites que a classificação do quadro coloca.
Desse modo, foi possivel depreender dessa contrução, três pontos importantes:
a) Davi é percebido como um autista de elevado potencial intelectual. A orientação é que ele trabalhe os conteúdos da escola a partir dos animais, pois ele tem interesses extremamente restritos, conforme o quadro clínico descreve. Desse modo, o tratamento deve ser conduzido no sentido de orientar Davi cognitivamente a se interessar por outros conteúdos a partir de seu interesse por animais, pois ele não poderá se desenvolver de outra forma;
b) Ele será sempre um menino com transtorno. Não há expectativa que Davi se cure, mas ele pode se adaptar à vida social;
c) Ele não irá desenvolver uma interação social que o permite ter uma reciprocidade com o outro. Nesse sentido, sua comunicação é quase um monólogo, ou seja, não é uma forma de interação, pois ele não se interessa pelo que o outro diz, já que não consegue deslocar de seus interesses auto-referidos. Nessa perspectiva, é necessário que treine uma habilidade para se adaptar socialmente às respostas apropriadas ao contexto social.
Conforme dissemos, foi possível notar que o discurso psiquiátrico contemporâneo privilegia, ancorado em um ideal de objetividade, o diagnóstico, a partir de um entendimento dos sintomas como comportamentos, atitudes disfuncionais, atribuídos a uma habilidade funcional que está prejudicada. No entanto, a construção do caso clínico, possibilitou à equipe resignificar o caso, secundarizando o discurso psiquiátrico, a medida em que algo da singularidade deste sujeito foi tomando a cena.
Foi relatado na construção, que o trabalho da AT, estava orientado no sentido de acolher as falas da criança em relação aos bichos, como algo indicativo de questões fundamentais para ele. Percebemos, assim, que Davi, ao contar histórias das relações entre macho e fêmea, entre animais bons e maus, brigas entre aracnídeos e, sobretudo, relações familiares entre mãe e filhote, ele discorria acerca de seus conflitos, de suas dificuldades em situar-se como filho de um casal, em que a mãe, apesar de ser disponível, é mais cuidada pela criança do que cuidava dessa, e em que o pai, desqualificado pela mãe, (mas não por Davi) é muito ausente em sua vida.
Notamos que a criança, coloca na temática dos bichos um modo de construir um lugar para si em relação aos pais e à diferença sexual. À medida que o trabalho do AT avançava nesta orientação, ou seja, em apostar que a fala dos bichos revelava sua composição subjetiva, Davi foi deixando de falar dos bichos ou através deles para falar de si, de seus sentimentos, da falta que sente do pai, da preocupação que tem com sua mãe e de ficar sozinho. O assunto dos bichos de central tornou-se periférico. Na escola, passou a interagir com os colegas, a participar de brincadeiras coletivas, além de conseguir concentrar em outros conteúdos. A fala da AT, acerca dos avanços de Davi, era compartilhada também por outros profissionais presentes, como sua psicóloga e sua psiquiatra. De fato, no início da construção do caso, havia uma prevalência do discurso psiquiátrico e pouca participação de outros profissionais. No entanto, no decorrer da construção, a partir das mudanças salientadas, foi possível ver que o tema dos bichos se deslocava, que a criança mostrava interesse por outros assuntos na escola, e que ela apresentava uma interação social. Isso permitiu um esvaziamento do diagnóstico como único norteador da conduta dos profissionais.
Na segunda reunião para construção do caso, - que se destina a recolher os efeitos da primeira construção – a equipe apresentou algumas mudanças importantes: a psicóloga se responsabiliza pelo caso, não apenas aceitando passivamente o diagnóstico psiquiátrico; um psiquiatra do serviço passa a questionar o diagnóstico anterior; além da própria psiquiatra referência do caso, ter solicitado a AT, para que avaliasse o melhor momento de inserir a medicação.
Também neste segundo encontro a escola, a acompanhante terapêutica e os demais profissionais, relataram uma melhora significativa do paciente. Se antes ele não mudava de assunto, atualmente ele vem demonstrando maior habilidade de discorrer sobre diversos temas, havendo atendimentos em que ele não mencionava os bichos. Além disto, a escola relata que Davi, tem ampliado suas relações sociais, e também tem melhorado seu desempenho, e realizado as atividades proposta sem se distrair com desenhos de animais peçonhentos ou aracnídeos, como ocorria antes. Davi expressa o desejo em ser cientista, para poder estudar os bichos, e diz saber que para isso, é preciso estudar outras coisas como: a matemática e o português.
Avaliamos que o avanço do paciente aconteceu a partir da interação da equipe de referência com a acompanhante terapêutica, através da construção do caso clinico. Tal articulação proporcionou uma mudança na condução do caso, já que no início, a direção do tratamento estava pautada no diagnóstico do DSM-IV, estabelecido pelo discurso psiquiátrico. Com a construção do caso clínico, aprendemos que os sintomas revelam, neste caso, uma tentativa de construir um saber sobre seu lugar no complexo parental e, portanto, nas relações que pode construir com os outros que compõe seu convívio social.
Essa orientação propiciou à equipe, se posicionar de forma adequada num momento muito difícil para o paciente; quando ocorre o nascimento de sua irmã e a ausência do Acompanhamento Terapêutico. Nesse contexto, Davi manifestou comportamentos agressivos, dificuldade de relacionamento interpessoal na escola e interesse restrito pelos animais. A psicóloga referência do caso, ao perceber a piora do quadro de Davi, solicita novamente a construção do caso clínico, com a finalidade de compreender o retrocesso do paciente, e demanda o acompanhamento terapêutico semanal. O espaço para a construção do caso foi primordial, já que possibilitou um recurso para que a agressividade não fosse apenas medicada como um sintoma signo de disfuncionalidade, possibilitando, mais uma vez, um avanço na condução do caso.
Nessa última construção do caso, a fala da coordenadora da escola foi muito importante. Ao se questionar sobre o motivo pelo qual, Davi não se endereçou a ela, quando ocorreu uma situação em que sua mãe desmaiou na escola, ela percebe: ele ainda a procurava para conversar sobre bichos, porém, essa se recusava a ouvi-lo.
Entretanto, no momento em que ela se dispõs a acolher essa fala, ele volta a procurá-la para conversar, e rapidamente desloca dos bichos para dizer de suas dificuldades e interesses. A coordenadora então, passa a se perguntar se seria necessário fazer com que Davi prescindisse a sua construção acerca dos animais. Em uma recente conversa na escola, a AT e a coordenadora discutem sobre se o tema dos animais precisa ser um assunto rejeitado pelos professores e demais profissionais que acompanham Davi. Talvez, uma orientação seja respeitar que esse interesse, embora não mais central, mas discretamente, possa ser dito pelo paciente, pois ele revela não uma desadaptação ao meio social, mas sim um modo de Davi se sustentar na rede simbólica.
Os encontros para a construção do caso clínico, portanto, propiciaram o posicionamento de alguns membros da equipe, distinto daquele em que os sintomas são entendidos apenas como signos de disfuncionalidade que devem ser suprimidos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNADINO, L. M. F. (2011) “A questão da psicose na infância, seu diagnóstico e tratamento diante do “desaparecimento” da atual nosografia”, in JERUSALINSKY, A.; FENDRIK, S. (orgs.) O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Vialettera, pp. 205-217.
ELIA, L. (2010) “Consolidar a Rede de Atenção Psicossocial e Fortalecer os Movimentos Sociais”.
Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/consolidarlucianoelia.pdf>.
JERUSALINSKY, A. (2011) “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história: uma psicopatologia pós-moderna para a infância”, in JERUSALINSKY, A.; FENDRIK, S. (orgs.) O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Vialettera, pp. 231-243.
MENDES, A.; SILVA, C. R. (2011) “O Projeto de Extensão “Tecendo Redes”: perspectivas do processo de formação no campo da saúde mental”, in BATISTA, C. B.; KIND, L; GONÇALVES, L. (orgs). Universidade e serviços de saúde: interfaces, desafios e possibilidades na formação profissional em saúde. Belo Horizonte: PUC Minas, pp. 360-374.
PEREIRA, M. E. C. (2000) “A paixão nos tempos do DSM: sobre o recorte operacional do campo da Psicopatologia”, in PACHECO, R. A. F; COELHO, N. J.; ROSA, M. D. Ciência, pesquisa, representação e realidade em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, pp. 119-159.
RUBIM, L. M.; BESSET, V. L. (2007) “Psicanálise e educação: desafios e perspectivas”. Estilos da Clínica, v. XII, n. 23. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/estic/v12n23/v12n23a04.pdf>
VIGANÓ, C. (1999) “A construção do caso clínico em saúde mental”. Curinga, n.13. Belo Horizonte, pp.56-68.
VORCARO, Â. (2011) “O efeito bumerangue da classificação psicopatológica da infância”, in JERUSALINSKY, A; FENDRIK, S. (orgs.) O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Vialettera, pp. 219-230.
Recebido em outubro de 2013
Aceito em janeiro de 2014
|
|