ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 17 Maio à Agosto de 2012
 
   
 
   
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Recursos da atualidade: um tratamento possível na psicose

Current resources: a possible treatment in psychosis

 
     
 

Marcia Müller Garcez
Doutoranda em Psicologia UFRJ; Participante dos Núcleos de Pesquisas: Clínica Psicanalítica (CLINP – UFRJ); Psicose e Saúde Mental (ICP – RJ) e das atividades da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio. Psicanalista na Clínica Falasser.
E-mail: marcia.mgarcez@gmail.com

Ruth Helena Pinto Cohen
Professora Adjunta da Pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ; Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da AMP.
E-mail: ruthcohen@uol.com.br

Resumo: O presente trabalho aborda como a psicose pode ser vista na atual paisagem social e algumas possibilidades de tratamento neste contexto. Exploramos brevemente a estrutura da psicose, assim como suas variações, que hoje se apresentam não só nas formas extraordinárias, mas também em casos não tão raros e que surgem no cotidiano. Como exemplo clínico dessas variações, utilizamos o caso do „Homem dos Lobos? de Freud, que, apesar de clássico, aponta para uma indefinição diagnóstica e nos orienta sobre as novas formas de abordagem da psicose no século XXI. Ainda contamos com as contribuições da obra do escritor James Joyce, das quais Jacques Lacan faz uso, para o entendimento da psicose e suas possíveis formas de estabilização. Para concluir, sugerimos que um tratamento possível na psicose pode fazer uso do próprio excesso de sentido que a sociedade oferece, acolhendo o retorno deste resto na clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Psicose; Psicose Ordinária; Laço Social; Psicanálise.

Abstract: This paper discusses how psychosis can be seen in the current social landscape and some treatment possibilities in this context. We briefly explore the structure of psychosis, as well as its variations, which present themselves nowadays not only in extraordinary aspects, but also in not-so-rare cases that appear in daily life. As a clinical example of these variations, we use Freud?s 'Wolf Man' case, which, even being a classic, points to a diagnostic uncertainty and guides us on new ways to approach psychosis in the XXI century. We also rely on the contributions of the writer James Joyce, which Jacques Lacan makes use, to the understanding of psychosis and its possible ways of stabilization. To conclude, we suggest that a possible treatment in psychosis can make use of the excess of meaning that society offers, welcoming the return of this “rest” in the psychoanalytic clinic.

Keywords: Psychosis; Ordinary Psychosis; Social Bond; Psychoanalysis.

 
 

 

Discursos, laço social e psicose

Se pensarmos na clínica da neurose, a busca por um tratamento psicanalítico evidencia uma tentativa de tratar algum sofrimento ou sintoma, localizando um saber suposto ao analista, através de uma demanda de alívio e cura. Assim, a transferência poderá ser a mola propulsora para que esse encontro possa transformar a busca de sentido em um saber-fazer com o sem-sentido imposto pelo sintoma. Muitas vezes, o mal-estar carrega consigo evidências da nova forma do viver própria ao século XXI. Como afirmam Garcez e Cohen (2012) “se, por um lado, parecemos estar evoluindo, avançando tecnologicamente, por outro, estamos padecendo com essa velocidade. Os sintomas e ansiedades, na contemporaneidade, mostram esses efeitos na clínica psicanalítica.” (p. 349). Assim, somos levados a questionamentos sobre novas formas de sofrimento influenciadas pelos paradigmas de nossa cultura.

Temos com Besset (2004) ao discorrer em seu texto „A Política e o Dizer do Analista? que “em uma cultura tributária dos avanços do discurso da ciência e da tecnologia, a busca de sentido torna-se mais um „objeto? no mercado dos bens de consumo.” (p. 66). A autora também afirma que “em tempo de queda dos ideais, é preciso redesenhar-se o semblante para que o sujeito tenha lugar.” (p. 65). Dentro desse contexto, a dialética sobre a qual nos debruçamos, gira em torno do sentido que a atualidade imprime e como seus efeitos aparecem para os sujeitos, seja na clínica da neurose ou na psicose.

Em O Seminário, Livro 17, Lacan introduz quatro discursos – mestre, histérica, universitário e analista – a partir dos quais podemos nos orientar a respeito do laço social, já que este é produzido no e pelo discurso (LACAN, 1969-70/1991). Ao mesmo tempo, embora o consumo e o discurso capitalista – uma variação do discurso do mestre que Lacan aponta no final deste seminário – pareçam sufocar os sujeitos com a oferta incessante de objetos, Garcez e Cohen1 defendem que essa também é uma tentativa de evitação do encontro com a castração. Essa nova modalidade discursiva – capitalista – traz em si a inovação na articulação dos elementos a partir de uma reorganização dos mesmos. Essa movimentação denota a relação do sujeito contemporâneo com os objetos de consumo. Marcamos que esse discurso não favorece o laço social, mas aponta para uma defesa que se apresenta no social, na qual o sujeito demanda e se aproveita das ofertas incessantes de gadgets – nomeados por Lacan como latusas –, visando tamponar de alguma forma o vazio, o buraco da castração, num movimento infinito. Por outro lado, a defesa que tampona não oferece lugar à verdade, ao real e o excesso que transborda se transforma em mal-estar e em sintomas. Se, como dissemos, o discurso poderia oferecer um freio ao gozo, temos aqui, outro, que promove uma infinitização de gozo. Assim, esta parece ser uma saída, embora avessa ao discurso analítico, que pode dar algum suporte para alguém, mas este ainda precisará separar-se da massificação contemporânea para encontrar também formas singulares de tratamento ao gozo. Assim, tempos com a clínica da atualidade tocada pelo último ensino de Lacan, uma direção de tratamento, uma vez que a psicanálise, ao servir-se dos semblantes de sua época, não recua frente ao real, imposto pelos novos modos de sofrimento do ser falante.

1 Abordagem desenvolvida na dissertação defendida em fevereiro de 2012 pela autora, Marcia Müller Garcez, soba orientação da autora, professora Ruth Helena P. Cohen.

Ainda sobre o discurso capitalista, Espinoza e Besset (2009) colocam que “há uma predominância da relação do sujeito com o objeto, com a evidente promessa de acabar com o mal-estar. Por esse motivo, afirmamos que ele não favorece ao laço social” (p. 154). Embora o discurso capitalista dificulte os laços sociais, fazendo com que fiquem mais restritos, não deixa de ser, também, uma tentativa de saída para o horror da castração. O consumo desenfreado e o acesso aos objetos correspondem ao semblante de normalidade instituído pela ciência, como se esta estivesse constantemente oferecendo sentido ao que escapa a qualquer significação.

Mas, em relação à psicose? Se o psicótico está “fora-do-discurso” como Lacan (1972/2003) afirma em „O Aturdito?, e não pode utilizar o recurso discursivo para dar tratamento ao seu gozo, que é específico, como este se insere no cenário cultural ou civilizatório do século XXI? Miller (2003) em „A Invenção Psicótica? faz uma passagem pelos tipos clínicos e aponta, em seu texto, o que seria a invenção nesses casos, sublinhando que há uma falta de recursos nos discursos estabelecidos. “Para o paranóico, não se trata do problema da relação com o órgão ou ao corpo que não está preso a um discurso estabelecido, mas do problema da relação com o Outro.” (p. 11). Ele é então levado a inventar uma relação específica de proteção ao Outro. Já, sobre o dito esquizofrênico, Miller coloca que “[...] o problema do uso dos órgãos é especialmente agudo e ele deve ter recursos sem o socorro de discursos estabelecidos, ou seja, ele é obrigado a inventar um discurso [...], para poder usar seu corpo e seus órgãos.” (p. 11).

Esses discursos estabelecidos, nas citações de Miller, são aqueles identificados por Lacan (1969-70/1991), com os quais os sujeitos psicóticos teriam dificuldades em operar. Como consequência eles não podem participar tão facilmente da lógica do laço social. A invenção necessária nos remete aos efeitos da psicanálise e do ato analítico que vão além da estrutura, uma vez que é na singularidade e no funcionamento lógico, de cada caso, que se explicita o tratamento dado ao gozo. O que se verifica nas psicoses, com seu precário aparato simbólico é que podem produzir efeitos no campo social. A partir desse suporte podemos indicar que, para além da estrutura, são as incidências de gozo que queremos enfatizar.

Segundo Veras (2010) “o vácuo deixado pelo declínio da imago paterna tragou a clínica da subjetividade, sendo esta substituída pela clínica da quantificação.” (p. 67). O autor coloca que o mundo despertou para a precariedade do simbólico em relação ao real e que sofremos com essas mudanças na clínica da neurose, desta feita nos interrogamos sobre o que podemos trazer disso para o campo da psicose? (p. 65). Quais os efeitos dessas mudanças? Não lamentamos, com certa nostalgia, a queda dos ideais, mas buscamos acolher em nossa escuta clínica as novas formas de arranjo sintomático. Se a ciência oferece um excesso de sentidos e objetos, que tentam tamponar as faltas dos humanos, na psicose temos outra lógica no que concerne a precariedade simbólica e a falta. Acreditamos que o trabalho clínico pode articular o que está fora-do-laço social com novas propostas de amarrações de sentidos.

As psicoses e o diagnóstico diferencial

As mudanças sofridas na atualidade e verificadas a partir de seus efeitos no sujeito contemporâneo devem ser contextualizadas no âmbito da psicose que também sofreu alterações. Veras (2010) distribui em três momentos a clínica lacaniana da psicose: 1) “a foraclusão do Nome-do-Pai, nos anos 50, com o seminário das psicoses”; 2) “a formalização do objeto a e os mecanismos de sua extração”; 3) “por fim, a teoria dos nós e o sinthoma joyceano, nos anos 70, com o seminário do sinthoma.” (p. 147).

Sobre este escrevemos o nó borromeano que atrela Real, Simbólico e Imaginário na gravura (1) que segue (LACAN, 1975-76/2007, p. 21).

A lógica borromeana que interessou aos matemáticos foi explorada por Lacan no Seminário RSI (1974-75/inédito) e em O Seminário 23, O Sinthoma, ao tratar do incurável, propiciando uma organização de gozo. Lacan acrescenta aos três registros um quarto nó, nessa escrita topológica. Assim, passamos a uma amarração, um suporte real, que nos serve de instrumento para compreensão da clínica psicanalítica, sobretudo da psicose que requer um tratamento possível daquilo que está desenlaçado. Esse quarto nó, o sinthoma, portanto, vêm reforçar os três outros dispersos, além de “se conservar em uma posição tal que ele tenha o aspecto de constituir nó de três.” (LACAN, 1975- 76/2007, p. 91). Nota-se na gravura (2).

Encontramos as contribuições sobre a referência que Lacan faz a James Joyce, que lhe permitiu fazer a elaboração a partir do sinthoma. Ao tomar o artista, Lacan mostra o que é possível fazer quando o nó do pai não se sustenta em sua amarração. Na sua grande obra, Ulisses, o artista recria a vida. Não faz uma análise dela, apresenta o homem sem sentimentalizá-lo numa humanidade ordinária, onde os personagens são escutados muito mais do que vistos. Não se sabe sobre suas aparências, mas conhecemos suas vozes, seus pensamentos. Essa linguagem expressa em frases agudas, exatas, taquigráficas ou sob a forma de refluxos de palavras em repetições entrelaçadas, transforma-se em unidades mais longas (COHEN, 2009).

Para acrescentar à distribuição dos momentos da clínica da psicose feita por Veras (2010) e citados acima, podemos contar com uma modalidade categórica pós- lacaniana, mas não distinta do que Lacan nos deixou no último ensino. Jacques-Alain Miller (2009a) lançou o termo Psicose Ordinária abarcando a questão de pesquisa que se abria sobre os Casos Raros ou Inclassificáveis, colocando em debate as normas clássicas da clínica da psicose. A constatação dessas pesquisas como afirma Brousse (2009) foi que “esses casos „raros? não eram assim tão raros, ao contrário, muito frequentes.” (p. 2). No mesmo artigo a autora lembra três fundamentos da teoria clássica da psicose: “o privilégio, no primeiro Lacan, do registro simbólico sobre os registros imaginário e real [...], a organização de uma aproximação clínica em torno de um eixo central conhecido sob o termo Nome-do-Pai” e, como terceiro ponto desses fundamentos “a recusa de categorias intermediárias por razões epistemológicas e éticas ao mesmo tempo.” (p. 2). Se pensarmos na rigidez deste último fundamento, somos levados a levantar uma discussão acerca da questão diagnóstica. Como vimos, as modificações sociais e contemporâneas indicam modalidades de tratamento para o sofrimento que aparece sob a forma de novos sintomas. O último ensino de Lacan traz consigo essas novas perspectivas sobre os sintomas, fenômenos e diagnósticos, uma vez que aponta para uma clínica voltada para o real.

Como conseqüência dessa orientação para o real, a foraclusão é tida em uma nova perspectiva – não mais sendo uma exclusividade da psicose sob a égide do Nome- do-Pai, mas, a que aponta para uma falta generalizada, colocada para todos, deixando a psicose como referência ou, ponto de partida. Com isso passamos a um leque de variações que Miller ilustra no livro La Psicosis Ordinária:

[...] aqui temos psicóticos mais modestos, que reservam surpresas, mas que podem fundir-se em uma espécie de média: a psicose compensada, a psicose suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sinthomatizada – se me permitem. (2009a, tradução livre, p.201)

Em outro artigo, oriundo de um seminário realizado em Paris, Miller (2010) traz um estudo extensivo sobre a Psicose Ordinária que ele afirma não ser uma categoria de Lacan, mas uma categoria da clínica lacaniana. Destacamos como interessante o fato de ele mencionar que essa categoria “não tem definição rígida [...] e se tentamos agora lhe dar uma, será uma definição a posteriori.” (p. 3-4). Ao longo de sua exploração no seminário, ao enfatizar a passagem pela ordem simbólica, o autor afirma que “um delírio é também capaz de ordenar o mundo” (p.10) e que assim ele teria aí, uma função simbólica. Para tratar da questão da desordem vivida pelos sujeitos, Miller propõe uma tripla externalidade: social, corporal e subjetiva. A primeira – a social – designa “a relação com a realidade na psicose ordinária” (p. 14); a segunda – a corporal – marca o Outro corporal, ou seja, “o corpo como Outro para o sujeito” (p.16); e a terceira – a subjetiva – traz a “experiência do vazio, da vacuidade, do vago no psicótico ordinário” (p. 18). As três poderiam ser mais exploradas, mas destacaremos aqui, em função do que estamos enfatizando, a externalidade social. Há uma identificação social que pode ser constatada na psicose ordinária que tem um sentido de dificuldade e outro de facilitação, no que diz respeito ao laço social. O primeiro consiste em uma desconexão social, um desligamento seja do mundo dos negócios, trabalho ou outros. O segundo denota uma identificação intensa com o oficio do sujeito, onde este significaria “bem mais que um trabalho ou uma maneira de viver” (p. 16). Um trabalho poderia ter o estatuto de Nome-do-Pai, ou seja, pode significar aceder a uma posição social. Esses valores simbólicos contemporâneos e seu uso na clínica da psicose é o que destacamos como novas possibilidades de laço.

Para voltarmos ao delírio como forma de tratamento e avançarmos ainda mais no fato de que não se trata de uma questão apenas estrutural, recorremos a Caldas (2010) que propõe o amor aproximando-o do delírio. A autora marca essa semelhança uma vez que ambos propiciam tratamento ao gozo. Tal aproximação nos interessa na medida em que o delírio, nessa nova orientação, encontra-se para todos, e não mais exclusivo ao fenômeno vivenciado na estrutura psicótica. Para a autora “a escrita amorosa pode se constituir no litoral entre sujeito do significante e o gozo que habita seu corpo, dando a este, pela via do delírio, um tratamento e a chance de fazer laço.” (p. 4). Entendemos que vários são os caminhos para o sujeito defender-se do real e constituir assim laços de proteção. Esse movimento pode ser pensado no lado da psicose para capturar em cada possibilidade – como a autora indica em relação ao amor – a chance de fazer laço.

Ao lançarmos a ideia de defesa contra o real, temos que recorrer à singularidade da clínica que nos mostra como cada um se arranja, para além do recurso das ficções sociais como exemplificamos no caso do discurso capitalista, ao qual o contemporâneo está submetido. Em alguns casos de psicose a invenção singular se apresenta de forma contundente e com ela temos a possibilidade de aproximar-nos de uma peculiar maneira de conexão com o real. A questão que pretendemos lançar é: na ausência ou precariedade de discursos, ou conectores simbólicos, que solução pode ser alcançável? Como fazer uso do que está em oferta na própria atualidade? Supomos, sob a vertente da psicanálise, que um laço possa ser construído a partir da singularidade de cada sujeito que com seus recursos encontra estabilização, apaziguando seu gozo. Ressaltando que tais recursos podem advir do excesso transbordado na sociedade, que em alguns momentos são invasivos, mas em outros podem servir-se deles.

Instrumento Clínico: O ‘Homem dos Lobos’ de Freud

O caso clássico de Freud (1918/1986) faz com que diversos estudiosos repousem até hoje seus olhares, devido à complexidade tanto em termos de variações diagnósticas, quanto em termos de compreensão do mesmo, no intuito de indicar que se trata de algo inaugural para Freud: a análise de um caso que se referia ao tempo da infância. Para a nossa pesquisa, a abordagem, se faz importante pela questão diagnóstica e de localizar, conforme sinalizamos anteriormente com Miller (2010), como aquilo que pode apontar uma desconexão social.

No cerne do caso está a questão da castração que, evidenciando não se resolver de forma simples, Freud (1918/1986) aponta para três correntes fundamentais que circunscrevem as soluções para ela. Em primeiro lugar, o paciente rejeitou a castração, no sentido de nada querer saber dela no corpo das meninas; Sobre a outra corrente, temos o fato do „homem dos lobos? ter reconhecido a castração como fato, resistindo a ela. Esta vertente ainda traz a contraposição de resistir ou ceder.

Primeiro, revoltou-se, depois, cedeu; mas a segunda reação não anulou a primeira. Afinal, seriam encontradas nele, lado a lado, duas correntes contrárias, das quais uma abominava a ideia de castração, ao passo que a outra estava preparada para aceitá-la e consolar-se com a feminilidade como substituta. A terceira corrente, a mais antiga e profunda, que nem sequer levantara ainda a questão da realidade da castração, era ainda capaz de entrar em atividade. (FREUD, 1918/1986, tradução livre, p. 78)

Como exemplo de reconhecimento da castração, Freud associa o episódio alucinatório que o paciente teve ao brincar com um canivete no jardim, e pensou ter visto seu dedo cortado, pendurado apenas por uma pele. Após alguns segundos, que sentira muito medo, voltou a olhar e percebeu que nada havia acontecido. Podemos pensar com Miller (2009b), em aulas que ministrou sobre o „Homem dos Lobos?, que nesse episódio, localizaríamos não o reconhecimento da castração, mas a terceira corrente, apontada por Freud como possível de reaparecer a qualquer momento. Haveria aí a evidência de uma foraclusão, algo que fica fora do circuito, à parte da linguagem discursiva. Nesse sentido, podemos pensar na alucinação do dedo cortado também como “o que da castração jamais fora reconhecido e admitido”. (p. 18). Ao retornar sobre o tema das três castrações na segunda parte de suas aulas, o autor diz que essa última corrente, se acontecesse, deveria “acertar os ponteiros”. (MILLER, 2011, p. 11).

Miller (2009b) também fez um apontamento para a função do pai, tão presente no caso, distinguindo-o a partir das vertentes simbólico e imaginária. Não é a discussão sobre haver ou não pai. O autor aponta, pelo contrário, é que há uma multiplicidade de pais, mas a diferença se dá no fato de o pai ter ou não uma função simbólica, pacificadora. “O Nome-do-Pai é a função, que sobre essa grande desordem e essa grande onda de angústias, exerce uma organização pacificadora da qual o pai merece a posição simbólica. Essa é, a esse respeito, a ambiguidade da função do pai.” (p. 43). O autor ainda acrescenta:

Estamos no cerne da questão de saber o que é para nós o Nome-do-Pai. De todo modo, o Nome-do-Pai só tem valor em relação ao pai imaginário ou às instâncias imaginárias. A função imaginária do falo está completamente presente nesse texto. Vemos um pai imaginário, cruel, devorador, quer dizer, uma versão catastrófica da castração. (MILLER, 2009b, p. 44).

Se localizarmos o caso supracitado nas figuras expostas neste artigo referentes ao nó borromeano, marcando a perspectiva do sinthoma como reforço do que pode estar disperso no nó, teríamos no pai enquanto imaginário, aquilo que necessita de amarração. Graciela Brodsky (2011) em um seminário que proferiu sobre as psicoses ordinárias, destaca que “para que o nó exista como tal é preciso que se produza um enodamento” (p. 76), ou temos uma falha e esta permite que algum anel se solte e então teríamos o desencadeamento da psicose. A autora marca que apesar da falha a psicose pode não desencadear, podendo haver uma reparação no erro, ou uma amarração estável ainda que sem o Nome-do-Pai. Lembramos que a perspectiva do quarto nó se estende para outras clínicas, não sendo exclusiva da psicose sendo que marca as formas de enodamento como a singularidade do sujeito. Temos então uma função simbólica pacificadora e essencial para as relações que o sujeito estabelece com o mundo.

Nas nuances do caso – „O Homem dos Lobos? – as amarrações simbólicas ou suas ausências, trazem efeitos para o paciente de Freud no laço social. Destacamos a função de nomeação que fez com que, de alguma forma, ele se apropriasse do nome dado pelo fundador da psicanálise. Esse é um caso que inspira uma análise na atualidade. Lacan2 sublinha em seu seminário sobre o „Homem dos Lobos? – que ele “é um personagem em que uma parte de seu drama é sua inserção, poderíamos dizer, „desinserida?3 na sociedade.” Assim, fazemos a alusão ao termo externalidade social empregado por Miller (2010) ao tratar das psicoses ordinárias, tirando proveito desse material clínico riquíssimo nos deixado por Freud.

Considerações finais
Após essa breve passagem pelas considerações teóricas que instigam a repensar a psicose e os laços sociais na atualidade, convidamos a refletir de forma mais contundente sobre como se pode articular o que supostamente parece um paradoxo. Assim, ao localizarmos na clínica de hoje a qual chamamos de orientada para o real, e fazer suas articulações com a paisagem social contemporânea, percebemos que estamos na era do excesso, e, é justamente com este que temos que lidar. O uso que podemos fazer do que está em oferta, na sociedade do século XXI e o que pode o psicanalista recolher do que retorna desse resto na clinica da psicose? Estes desafios instigam-nos a um saber-fazer com os enlaçamentos daquilo que está desamarrado.

2 Seminário inédito: O Homem dos Lobos. 1952, terceira aula, tradução livre. 3 Traduzido do espanhol: „desinsertada?.

Freud (1924/1986) no seu texto „A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose? traz de forma resumida as diferenças que estabeleceu nessas duas clínicas. Na ocasião o autor afirma que “a neurose não desmente a realidade, se limita a não querer saber nada dela; a psicose a desmente e procura substituí-la.” (tradução livre, p. 195). Mais adiante ele coloca que: “à psicose se coloca a tarefa de procurar percepções que correspondam à nova realidade, o que se coloca em sua forma mais radical pela via da alucinação.” (tradução livre, p. 195-196). Ora, se pensarmos que Freud está marcando neste ponto a alucinação como a forma mais radical de substituir a realidade, podemos com isso abrir precedentes para formas mais tênues de substituições, ou seja, podemos lançar mão de recursos na clínica que auxiliem esses sujeitos nas substituições que necessitam.

No percurso histórico-clínico da psicose, Lacan nos indica as mutações que envolvem do conceito de Outro e Nome-do-Pai promovendo um novo passo em direção ao tratamento das psicoses. Destacamos as articulações fundamentais para o estudo sobre o laço social, uma vez que nesse momento teórico, Lacan se lança na teoria dos nós – nó borromeano – para, a partir daí, então, a elaboração do sinthoma apoiado em James Joyce. Sobre a amarração borromeana realizada por este escritor, temos a forma como o artista criou um saber-fazer com o sinthoma, o que significa utilizar um quarto elemento como instrumento de sutura para enlaçar o que estava desamarrado, vemos que o faz a partir de sua escrita. Valemos-nos desta mesma lógica para pensarmos o caso clássico freudiano do „Homem dos Lobos?, apoiados nos novos apontamentos de Jacques-Alain Miller (2009b).

Nesse breve estudo, tentamos localizar o que assinalamos com Freud, como o mais radical na psicose e chegamos às psicoses ordinárias, com as quais encontramos maiores possibilidades de atrelar o incurável do sinthoma às ofertas de sentido oferecidas pelo Outro da cultura. Após essa contextualização, verificamos que a presença do analista e sua contribuição para a relação da psicose com o laço social pode ser a de recolher os restos daquilo que excede e seu uso no próprio retorno, aplicando-o na clínica. Do secretário ao bricoleur, o analista se oferece como suporte às novas formas de escrita de possíveis laços do sujeito psicótico no cenário da cultura.

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Recebido em maio de 2014
Aceito em maio de 2014

 

 
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