ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 19 Janeiro à Abril de 2013
 
   
 
   
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Angústia na Contemporaneidade: uma leitura de Freud e Kierkegaard

Anxiety in the Contemoorary world: reviwes from Freud and Kierkegaard

 
     
 

Ana Paula Vedovato Marques de Oliveira
Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Bolsista da FAPEMIG.
E-mail: vedovato.ana@gmail.com

Eduardo Dias Gontijo
Professor Associado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Psicologia. E-mail: edgontijo@ufmg.br

 

Resumo: O presente artigo tem por objetivo explorar o tema da angústia, afeto que se destaca pela importância na constituição da subjetividade humana e que se manifesta através de sofrimento e mal-estar. Para tanto, parte-se de dois autores. Kierkegaard aborda o tema da angústia como sendo a realidade da liberdade enquanto possibilidade, em que o sujeito encontra-se afastado de uma dimensão transcendental. Freud, por sua vez, trilha um longo caminho até chegar ao conceito final de angústia, partindo de seus estudos pré-psicanalíticos, em que suas investigações tinham forte aparato biológico, até a segunda tópica, na qual a angústia é destacada como ameaça interna da perda de proteção proveniente do supereu. Explora-se as divergências e convergências existentes entre as teorias de Kierkegaard e Freud que, sob óticas diferentes, proporcionam um trabalho enriquecedor sobre o sentimento de angústia – suas origens, causas, funções – e, sobretudo, pretende-se refletir acerca da aplicabilidade desses estudos na pós-modernidade.

Palavras-chave:
Angústia; Freud; Kierkegaard; pós-modernidade.

Abstract: The present article aims to explore the theme of anxiety, affection which is highlighted by its importance in the constitution of human subjectivity, and that manifests itself through pain and suffering. Two authors must be considered. Kierkegaard discusses the theme of anxiety as being the reality of freedom as a possibility, in which the subject is apart from a transcendental dimension. Freud, on the other hand, tracks a long way to get to the final concept of anxiety, from its prepsychoanalytic studies, in which his investigations had strong biological apparatus, until the second topic in which anxiety is highlighted as the internal threat of loss of protection from the superego. The article explores the differences and similarities between the theories of Freud and Kierkegaard that, under different optic, provide enriching work on feelings of anxiety - its origins, causes, functions - and, above all, intend to reflect about the applicability of these studies in post-modernity.

Keywords: Anxiety; Freud; Kierkegaard; post-modernity

 
 


ANGÚSTIA NA CONTEMPORANEIDADE: UMA LEITURA DE FREUD E KIERKEGAARD

INTRODUÇÃO


 

O presente trabalho tem por objetivo explorar o tema da angústia, afeto que se destaca pela importância na constituição da subjetividade humana e que se manifesta através de sofrimento e mal-estar. Kierkegaard aborda o tema da angústia como sendo a realidade da liberdade enquanto possibilidade, em que o sujeito encontra-se afastado de uma dimensão transcendental. Freud, por sua vez, trilha um longo caminho até chegar ao conceito final de angústia, partindo de seus estudos pré-psicanalíticos, em que suas investigações tinham forte aparato biológico, até a segunda tópica, em que a angústia é destacada como ameaça interna da perda de proteção proveniente do supereu.

Exploramos as divergências e convergências existentes entre as teorias de Kierkegaard e Freud que, sob óticas diferentes, proporcionam um trabalho enriquecedor sobre o sentimento de angústia – suas origens, causas, funções – e, sobretudo, pretendemos delinear a aplicabilidade desses estudos no cotidiano.

KIERKEGAARD

A obra de Soren Kierkegaard é extremamente rica e, ao analisar os aspectos abordados pelo pensador, é possível destacar a atualidade dos seus escritos. É notória a contribuição do autor em temas centrais acerca da existência. Sua teoria aborda uma série de questões que se interligam exclusivamente através do uso de um pseudônimo e um estilo indireto de comunicação. O autor é pioneiro da filosofia existencialista e deposita na existência individual o privilégio do pensamento e da verdade.

Angústia e Desespero

Em 1844, o filósofo dinamarquês publicou o livro "O conceito de angústia‟. Na obra, o autor aponta que o espírito experimenta o sentimento de angústia diante do nada. A angústia seria o pressentimento de que o homem é maior do que sua experiência imediata, sendo, portanto, o estímulo para a busca de si mesmo pelo risco da liberdade, essência do espírito.

Assim, é a liberdade que torna o ser humano mergulhado no sentimento de angústia, definida pelo autor como "a vertigem da liberdade‟, que se encontra na passagem do possível para o real. Nesse sentido, a angústia advém da livre possibilidade que o homem tem de se construir e se edificar. O potencial que o indivíduo tem para advir de si mesmo carrega consigo a possibilidade que ele tem de se perder.

Nesse contexto, o desespero emerge quando o indivíduo não consegue ser si mesmo, o eterno falta ao seu tempo. Ao se deparar com a falta de referencial que direcione sua existência, marcada por barreiras e possibilidades, o homem passa a vivenciar a temporalidade como insignificante, vazia, propícia ao pecado. O reconhecimento da falta é acompanhado da experiência de angústia frente ao infinito, marcada pela inquietude que proporciona ao sujeito sua recordação de uma origem divina, revelando a nostalgia de algo. O homem desesperado é o homem separado de Deus. O desespero é para o autor uma categoria do espírito que consiste na busca de eu inventado ou idealizado, não correspondente com o verdadeiro "eu‟.
O desespero emerge então a partir da ausência da espiritualidade, indício fundamental da relação inadequada com Deus. Sem Ele, o desejo se limita à fuga da angústia e suas vivências são ilusões que impedem o homem de atingir sua consciência de espírito. A patologia existencial se torna ação ou transformação da existência.

De acordo a teoria kierkegaardiana, a existência humana é livre, porém ontologicamente dependente, fadada ao fracasso do orgulho auto-referente dos indivíduos. A ética em Kierkegaard consiste em uma existência que vai além de si, movida pela força eterna da qual o homem procede, que o coloca no devir, isso é, no não acabamento, destinando o indivíduo a um processo constante de criação do qual ele é o maior responsável. O eu deve buscar sua verdade, tornar si mesmo.

Conhecimento, Deus e Verdade

Segundo Kierkegaard, o indivíduo é incapaz de viver no desamparo da ausência de sentido para sua existência. Assim, a partir do relativismo do conhecimento, ele experiencia o desespero do embate entre crenças. O relativismo é tomado pelo autor como diabólico, pois promove a ilusão de possibilidade de interpretação da realidade. De acordo sua teoria, o conhecimento nega a tragédia do ser humano e, portanto, nega o mal que, para ele, está identificado com o próprio indivíduo, ofendendo a autonomia do sujeito. A autonomia proporciona ilusão de que se pode evitar a experiência da angústia.

Nesse sentido, o pensador religioso afirma que, quando o ser humano se afasta de Deus, todas as buscas se tornam desprovidas de sentido. Somente a fé proporciona condições para que o homem encontre sentido na sua existência, ela é sabedoria da finitude e sobrepõe a angústia da falta de sentido. A interioridade é a determinação do eterno no homem e ela é destruída quando se vive de instantes. Segundo o autor, a paixão do infinito é a verdadeira propiciadora de conhecimento, ela é a verdade pela qual o indivíduo deve lutar, apropriando-se subjetivamente daquilo que o edifica. O discurso edificante não tranquiliza, ele inquieta, impulsiona a dor e o trabalho ao despertar o homem. Ir além da superfície implica um profundo sofrimento.

Nesse caminho rumo à busca de si mesmo, o indivíduo é convocado a depositar confiança num Outro, abrindo mão de uma parcela de si e transportando-a a alteridade por excelência, o Criador. Para ir ao Seu encontro, é preciso morrer para tudo aquilo que traz segurança. Kierkegaard opta pela indecisão, pois a mudança advém de um querer que ultrapassa o instante.

De acordo com a teoria kierkegaardiana, Deus conduz o homem à verdade e somente aquele que superou o sofrimento de interioridade que se procura pode alcançá-la, não de maneira definitiva, pois ela implica sempre no esforço constante do recomeço. Kierkegaard aponta que a verdade da alegria não coincide com o ideal de felicidade propagado pela burguesia de sua época que, de acordo com ele, encontra-se separada da vida autêntica devido à perda de um sentido transcendental. A singularidade é uma conquista árdua que pode ser alcançada por cada um através de provações e sofrimentos. Ela ultrapassa a limitação da satisfação imediata dos desejos.

No contexto moderno, ao pensar questões que assolam a existência humana, Kierkegaard é defensor ferrenho de que a multiplicidade de saberes vigentes não é suficiente para tornar-se homem, pois isso não implica uma vida autêntica, em que se escolhe ser si mesmo. A valorização extrema do indivíduo na modernidade implica em uma perda da dimensão de um terceiro que possa fazer uma síntese do eu, perdendo-se então o sentido transcendental da existência.

FREUD

O desenvolvimento do conceito de angústia se deu ao longo de toda obra freudiana, desde os escritos pré-psicanalíticos. A angústia é um dos pilares da psicanálise e sua elaboração foi concomitante ao desenvolvimento do campo. Nesse sentido, ressalta-se que o

conceito sofreu profundas transformações conforme o pensamento de Freud foi se expandindo, o que acarretou em releituras e reformulações.

Ao retomar os textos de Freud, é possível traçar pontos de acentuadas convergência e divergência em relação à teoria de Kierkegaard, pontos esses que serão explorados adiante.
Escritos pré-psicanalíticos

Nos escritos pré-psicanalíticos, os Rascunhos, em 1893 e 1894, Freud se preocupa em investigar a etiologia da angústia e diferenciá-la dos demais quadros clínicos. Nessa época, ele classifica a neurose de angústia dentro do quadro de neuroses atuais, cujas principais características são a etiologia somática e a causa atual do transtorno, que não se remete à história de vida do sujeito.

Nessa época, Freud aponta a angústia enquanto produto de uma tensão física acumulada, que contém uma energia livre não ligada a nenhuma representação psíquica. A neurose de angústia é caracterizada pelo aumento da tensão psíquica até um determinado limiar, suficiente para despertar um afeto que, por algum motivo, tem uma conexão psíquica insuficiente.

A partir desses aspectos, Freud aponta a fobia como sendo uma fixação de certa forma arbitrária da angústia livre em qualquer representação que se preste a isso. O autor marca que é possível que haja alguma correlação com eventos históricos, contudo eles não são determinantes, pois nesse quadro não é encontrado o caráter de um trauma. O afeto não provém de uma representação recalcada e, assim, o mecanismo de substituição não se aplica.
Freud nessa época mantém relações estreitas com o campo biológico. Ele faz um catálogo de sintomas corporais atrelados aos ataques de angústia, tais como distúrbios cardíacos, distúrbios respiratórios, ataques de suor, tremuras e calafrios, entre outros. Há uma intrínseca relação entre a descarga afetiva que caracteriza a angústia e a inervação motora. Nesses primeiros escritos, sobretudo no "Rascunho E‟, a angústia é relacionada à presença "atual‟ de dificuldades ou disfunções sexuais. Ela é a descarga, através das vias somáticas, de uma excitação sexual insatisfeita, resultado de um acúmulo de excitação que o indivíduo se revela incapaz de suportar, o que marca o caráter quantitativo atribuído ao conceito nessa época. Ela é, portanto, a desorganização do afeto, ou ainda o afeito mais elementar e primordial, o mais próximo de uma excitação que se descarrega de maneira não específica.
Primeira Tópica

No contexto da primeira tópica o conceito de angústia passa por importantes transformações. Freud passa a trabalhar com o mecanismo do recalque, que separa uma ideia da quota de afeto ligado a ela. Nesse processo, a ideia é recalcada e um dos destinos possíveis do afeto é ser descarregado sob a forma de angústia. O recalque é uma tentativa, feita pelo ego, de fugir da libido sentida como ameaçadora. A angústia é um dos produtos desse mecanismo, pela qual qualquer afeto pode ser deslocado, desvinculado de sua ideia original após a separação efetivada pelo recalque. Ela vela o recalque ao mesmo tempo em que denuncia sua ocorrência. Nesse sentido, a angústia aos poucos ganha o caráter de mecanismo defensivo, apoiada na tentativa de barrar o sentimento de desprazer.

No texto "Conferências introdutórias sobre psicanálise: Conferências XXV" (1915), Freud faz uma diferenciação entre a angústia frente a um perigo real e a angústia neurótica. A primeira se refere a uma angústia racional e justificável, reação à percepção de um perigo externo, manifestação de uma espécie de instinto de auto conservação. Já a segunda pode se manifestar através ser uma angústia expectante, que está aguardando alguma oportunidade para fixar-se e justificar-se. Ele se refere também à angústia que é psiquicamente ligada e vinculada a determinados objetos e situações, representações substitutivas, como ocorre nas fobias - histeria de angústia - quadro desenvolvido, sobretudo, no artigo metapsicológico "O Inconsciente" (1915). Ela ainda pode aparecer como um acesso de angústia isolado, acompanhando, por exemplo, os sintomas histéricos.

Nesse sentido, Freud aponta que o processo de recalque pode ocasionar na geração de angústia pura e simples; ou na geração de ansiedade acompanhada pela formação de um sintoma, ou na formação mais completa de um sintoma sem angústia.
Segunda Tópica

No contexto do desenvolvimento da segunda tópica, com a reformulação das teorias das pulsões, a angústia ganha novos contornos. No texto de referência "Inibições, Sintomas e Angústia" (1926), Freud reformula o conceito, a angústia passa a ser um afeto que motiva o recalque, e não mais um produto como era considerado na tópica anterior.

O ego, por sua vez, se torna sede da angústia, ela é percebida ao nível dessa instância. Além disso, o ego é o (re)produtor da angústia, o que leva a uma concepção de uma angústia rememorada, instrumento que sinaliza para o ego para que mobilize o seu mecanismo de defesa – daí o conceito de "angústia sinal‟ apresentado por Freud. À medida que se

desenvolve o ego adquire poder sobre esse afeto e o reproduz enquanto advertência de um perigo de perda. Conforme se desenvolve, o ego adquire poder sobre essa emoção e a reproduz, por sua própria iniciativa, empregando-a enquanto advertência de um perigo.

Nessa época, Freud já tinha feito análise da fobia do pequeno Hans e do Homem dos Lobos e, através da angústia, ele chega complexo de castração, motor do recalque. Ao analisar o afeto de angústia a partir da castração, Freud destaca a importância da realidade, da fantasia e da noção de perigo enquanto propiciadores para emergência da angústia. É a partir disso que ele vai apontar o ato do nascimento enquanto protótipo de todos os estados de angústia que surgirão na vida do sujeito, a situação mais arcaica de perda de proteção, desamparo, de transbordamento energético, denominada então como "angústia automática‟, tendo em vista a ausência de mediação de representações.

Observa-se então que o objeto da angústia é tanto atual quanto histórico, tendo em vista as marcas psíquicas que romperam o escudo protetor e inauguraram a subjetividade. A partir de seu protótipo, a angústia passa a ser relacionada ao perigo da perda de ou separação do objeto de amor, evidenciadas por Freud sobretudo em algumas fases específicas do desenovolvimento – na primeira infância, há o medo da perda do objeto de amor, em que a ausência da mãe é causa angústia; na fase fálica, encontra-se presente o perigo da castração; no período de latência, há o medo da perda de proteção do supereu. A angústia se desenvolve ao ponto de ser base do desamparo humano, denúncia da eterna demanda de amor dos homens.

KIERKEGAARD E FREUD NA CONTEMPORANEIDADE

Kierkegaard e Freud destacam-se, entre outros aspectos, pela forma com que proporcionam elementos enriquecedores para se pensar temas perpassam a existência humana na contemporaneidade. Eles mantêm profunda afinidade em alguns aspectos de suas obras, que merecem ser trabalhados com maior cuidado.

No que tange o tema da angústia, os pensadores, partindo de campos distintos, apontam que a ausência de uma regulação encarnada – seja sob forma de instituições, pessoas ou na figura de um Deus – aumenta a insegurança dos homens devido ao excesso de autonomia que lhes é dado.

Ao se pensar o contexto moderno, observa-se que um dos ideais fortemente propagados pela cultura ocidental é o incentivo à vivência plena do livre-arbítrio, sem restrições, em que cada sujeito traça seu próprio caminho através de livres escolhas. A

teorização dos referidos autores sublinha que a falta de referencias, sobretudo com a pulverização da lei e as múltiplas facetas do conhecimento no contexto contemporâneo, aprofundam a situação de desamparo dos homens, imersos na solidão de uma cultura que vangloria o indivíduo.

Nesse sentido, uma obra de destaque para debater esse tema é o livro "Sobre Ética e Psicanálise" (2002), em que Maria Rita Kehl discorre sobre as condições sociais, históricas e culturais que atravessam a existência do sujeito contemporâneo. Ela pondera a respeito da dificuldade que perpassa a vida do sujeito moderno, que perdeu "a proteção oferecida por um pai capaz de fazer, da filiação, um destino (...) No entanto, o ganho de liberdade obtido com essa passagem é inegável" (p.44).

A questão que se impõe para o sujeito moderno, apontada por Kierkegaard desde 1844, é o que fazer com o atual imperativo de liberdade que propõe ao homem ser dono de si ao guiar sua existência de acordo com preceitos "próprios‟, "singulares‟, "únicos‟.

A ilusão propagada pelos ideais modernos de modos de existência que não são atravessados pela alteridade ganha contornos cada vez mais expressivos, perdendo-se a dimensão do outro, que atravessa e constitui a subjetividade de cada um. Nas palavras de Kehl:

(...) é ilusório pensar que a criação de sentido para a existência possa ser um ato individual. É uma tarefa coletiva, uma tarefa da cultura, da qual cada sujeito participa com seu grão de invenção. É uma tarefa simbólica, que se dá por meio da produção de discursos e narrativas sobre "o que a vida é‟ ou "o que a vida deve ser (Kehl, 2002, p.10).

A falta de ligação com alguma entidade, algum ponto de referência, lança o sujeito sobre o desamparo. A partir dessa constatação, o pai da psicanálise e o filósofo dinamarquês se diferenciam quanto à ética que propõem sobre a existência. Kierkegaard aponta que o caminho último para se alcançar a verdade é conhecer Deus, estar em Sua presença através de uma busca de si mesmo que implica em um esforço constante de superação do instante, do passageiro, do momentâneo, na direção do eterno, da verdade sobre si. Freud, por sua vez, vislumbra uma ética em que o sujeito se depara com sua condição de desamparo fundamental, constata a ausência de planejamentos prévios para sua existência e constrói seus caminhos a partir, assumindo a autoria de seu destino.

DESDOBRAMENTOS DA 'VERDADE' NA CONTEMPORANEIDADE

Ponderar a angústia atrelada ao desamparo abre margem para que se repense alguns aspectos que parecem agravar esse contexto na modernidade. A atual conjuntura propicia a emersão de um gama cada vez mais ampla de verdades. O homem moderno é constrangido a produzir modos de significações próprios para sua existência, amparos simbólicos aos quais possa se filiar e atenuar sua condição última de solidão.

Tais amparos podem surgir de diversos campos. No que tange à esfera religiosa, é importante retomar a proposta de Kierkegaard da vida ética para o sujeito. Para o autor a experiência religiosa não mantém ligação com uma instituição específica, ela é uma vivência individual, em que cada homem alcança sua verdade sobre si, uma verdade não-universalizável. Nesse sentido, tal experiência não se relaciona com a religiosidade proposta pelas sociedades tradicionais, em que a verdade é encarnada, sobretudo, na figura da Igreja Católica.

Na modernidade, a experiência religiosa sofre importantes transformações. Há dois extremos – de um lado, o número de ateus atinge seu auge nas sociedades pós-industriais; de outro, observa-se uma explosão de núcleos religiosos em que a fé e a razão parecem se conciliar devido à carência de certezas absolutas. Para alguns religiosos contemporâneos, nota-se que o caráter transcendental da religião se perde dando lugar a uma relação instrumentalizada com Deus. Em seu livro "A experiência de Deus na pós-modernidade" (1997), Àngel Castiñeira, ao fazer a análise desses aspectos, aponta que

mais que uma tarefa autenticamente libertadora, alguns parecer exigir hoje, da religião, uma espécie de terapêutica social que sirva de refúgio impermeável à desordem e à insatisfação sociais e que nos permita evadir-nos dos problemas reais e mundanos. O Deus da pós-modernidade se apresentaria mais como Deus-oásis do que como Deus dos pobres ou Deus-plenitude-dos-homens. (Castiñeira, 1997, p. 166 e 167).

Nesse sentido, rumo à direção contrária da proposta de Kierkegaard em direção ao Eterno, alguns religiosos modernos parecem relacionar-se com Deus vislumbrando alívios momentâneos, sobretudo nos períodos de crise. Como apontado com pertinência por Castiñeira, "a pós-modernidade menosprezou o ideal de um sujeito auo-suficiente. Agora, diante do embate com a finitude, este tipo de "sujeito insuficiente" resiste a ter que optar entre o desespero ou a fé" (Castiñeira, 1997, p.169).

O crescente fundamentalismo religioso contemporâneo responde a oferta de um mundo em que tudo é permitido, mas nada é assegurado. Ele propõe uma solução ao excesso

da carga de liberdade individual intolerável, coloca a "segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa certeza – antes e acima de tudo, as extravagâncias da liberdade individual" (Bauman, 1998, p.229). Nesse sentido, o fundamentalismo alivia a carga de responsabilidade individual ao legislar sobre cada esfera da existência humana.

A partir disso, aponta-se que a religião é uma dentre diversas outras instâncias que concorrem sobre a posse da verdade no mundo moderno. Em um pólo aparentemente oposto, as mercadorias oferecem o lugar de resposta às demandas de felicidade do sujeito contemporâneo são na sociedade de consumo. Nesse sentido, cabe ressaltar aqui a análise feita por Zygmunt Bauman em sua obra "O mal-estar da pós-modernidade" (1998), em que o autor aponta

se a versão religiosa da experiência máxima costumava reconciliar o fiel com uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna reconcilia seus seguidores com uma vida organizada em torno do dever de um consumo ávido e permanente, embora nunca definidamente satisfatório. Os exemplos e profetas da versão pós-moderna da experiência máxima são recrutados na aristocracia do consumismo (...) (Bauman, 1998, p.224).

Os ideais modernos, nesse sentido, estão radicalmente associados a experiências do consumo. A identidade passa a ser pautada nos bens possuídos, o que abre margem para a vivência de identidades fluidas, instáveis, variáveis, tendo em vista que as identificações estão sendo continuamente deslocadas. A oferta de representações se multiplica e as identidades tornam-se cambiantes, temporárias, "na falta dessa identidade, somos condenados à permanente criação de significantes que nos identifiquem, sempre parcialmente." (Kehl, 2002, p. 70). E a esse aspecto a sociedade pós-industrial responde de maneira assertiva – cada novo produto, novo design, tecnologia, viagem, cosmético, carregam consigo a promessa de completude, estabilidade, preenchimento.

NOVA ÉTICA DO HOMEM MODERNO

Um dos aspectos centrais da pós-modernidade já abordado tange à pulverização da consistência outrora proporcionada pela tradição. A experiência da dita liberdade é contingente e inconclusiva, seu horizonte é inconsistente, pois há sempre possibilidades alternativas. A própria experiência identitária é incoerente, caótica, ambígua. A oferta de fórmulas mágicas que deem fim ao sofrimento subjetivo torna-se um mercado promissor. Pensando esses aspectos, Bauman pondera:

O problema (...) é que as receitas infalíveis são, para a liberdade, para a responsabilidade e a liberdade responsável, o que a água é para o fogo. Não há coisa alguma como uma prescrição para a liberdade, ainda que sua constante procura dê origem a uma oferta cada vez maior de pessoas que querem fornecê-la. E não há coisa alguma como uma liberdade sem ansiedade, embora, sendo este o sonho perene de tantos entre nós, surpreenda pouco que tantos entre nós desejem que se realize, enquanto tantos outros achem proveitoso conservar o desejo vivo. (Bauman, 1998, p.250).

Nesse contexto, o desdobramento de tal fenômeno pode ser vivenciado de formas distintas, como já apontadas pelo sociólogo - de um lado, destaca-se a presença de sujeitos desamparados, em busca de alguém ou algo que possa lhe devolver as certezas perdidas; do outro lado, tal inconsistência atua enquanto potencial criativo que pode ser usufruído por sujeitos livres. Para que se goze da liberdade de criação proporcionada pela ampliação da liberdade, o sujeito deve ser capaz de suportar viver em falta com a verdade.

Um aspecto fundamental que ganha importantes contornos nesse momento histórico, que atua lado a lado com a ideia de liberdade, é o ideal de autorrealização que propõe ao homem a busca de uma forma autêntica e singular de dar sentido à sua existência. É a partir disso, que Charles Taylor em "A Ética da autenticidade" (2010) aponta para a perda da preocupação com aquilo que transcende os homens. Em suas palavras(...) novos modos de conformidade surgem entre pessoas que estão esforçando-se para serem elas mesmas, e, além disso, novas formas de dependência, uma vez que pessoas inseguras sobre suas identidades voltam-se para todo o tipo de guias e autoproclamados especialistas, envoltos no prestígio da ciência ou de alguma espiritualidade exótica (Taylor, 2010/2011, p.25)

Taylor argumenta que tal contexto propicia um liberalismo da neutralidade, em que o ideal moral da autenticidade, não reconhecido enquanto uma perspectiva moral, "se reduz ao nível de um axioma, algo que não se desafia e também nunca se expõe" (Taylor, 2010, p.27). O autor, nesse sentido, propõe que a virada subjetiva proporcionada pelo contexto moderno traz consigo uma interiorização da fonte que possibilita ao homem uma experiência de plenitude.
Ao refletir sobre o ideal que impulsiona o homem na direção de si numa aparente reflexão solitária, Taylor aponta para os perigos que tangem, entre outros aspectos, a questão da identidade, construída sempre a partir do diálogo, por vezes conflitivo, com àqueles que são significativos para sua formação Nesse sentido, o autor pontua a impossibilidade de "suprimir ou negar os horizonte contra os quais as coisas adquirem significado para nós"

(Taylor, 2010, p.46). Crítico ferrenho do antropocentrismo radical, o filósofo aponta para os riscos de instrumentalização das aflições individuais que negligenciam o contexto que propiciou sua emergência.

Considerar os aspectos singulares que se articulam nesse contexto remete ao esforço de se pensar em uma ética articulada às estruturas de identidade e sentido que lhe são próprios, que não se restrinja à busca de normas e critérios externos que orientem a ação. O autor Eduardo Dias Gontijo, ao refletir sobre tais aspectos no texto "Ética e conhecimento na investigação científica" (1998), aponta que(...) antes de nos obrigar ao que é correto fazer, a reflexão ética, corretamente entendida, nos indica, a partir de uma determinada ontologia do humano – a qual oferece o quadro referencial indispensável para as qualificações do agir moral – o que é bom ser, e se configura assim, de modo mais bem adequado, como uma doutrina da vida realizada sob as premissas da Razão (Gontijo, 1998, p.175).

Tendo refletido sobre tais aspectos, salta-se aos olhos que a questão da angústia pensada na pós-modernidade mantém estreita relação com a noção da identidade, abordada, sobretudo a partir dos ideais de autonomia e autorrealização amplamente propagados. O homem contemporâneo é incentivado a assumir as rédeas de sua existência através da construção permanente de um destino individual que o localize na hierarquia de poderes que definem o laço social.

Sendo assim, se a angústia é resultante do desamparo fundamental do homem, como aponta Freud, ou se ela mantém ligações com uma vivência da liberdade distanciada da fé, e em última instância também ancorada no desamparo, como teoriza Kierkegaard, o horizonte ético possível de ser vislumbrado nesse contexto é uma incessante construção de si. Pois, se nesse cenário há o risco do homem se perder, há também a possibilidade dele se encontrar.

É a partir desse ponto que o contexto pós-moderno pode fornecer alicerces para que o potencial criativo de cada sujeito possa ser colocado em cena, possibilitando assim, que o homem possa assumir a autoria de sua história, não se alienando em uma instância que lhe de a ilusão de proteção e segurança. A indagação permanente de certezas que o pensamento constrói abre um horizonte ético para a existência e, através da retificação subjetiva, é possível pensar na construção de um caminho próprio, menos submetido a uma instância imaginária que encarne a lei.

Referências Bibliográficas:

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Recebido em: 14 de julho de 2014
Aceito em: 28 de outubro de 2014

 

 
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