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Uma tentativa de normatização do Gozo
A normatização, como parâmetro para tratar o sofrimento na atualidade, não perpassa somente os dispositivos de saúde, mas também o campo jurídico que interpõe a aplicação da lei como um remédio para as patologias sociais. Pensar o tratamento do gozo, as paixões da alma, os excessos, pelo direito implica uma definição mais precisa desta área.
A implicação da força na aplicação da lei é comentada por vários autores. Benjamin em "Para uma crítica da violência" afirma que "a instauração do direito é instauração de poder e, enquanto tal, um ato de manifestação imediata da violência" (BENJAMIN, 1915-1921/2013, p. 148). Nessa trilha, Derrida (2010), em Força e Lei, inicia sua discussão comentando que a expressão na língua inglesa to enforce the law freqüentemente traduzida por aplicar a lei remete a lembrança de que o direito é uma "força autorizada" (DERRIDA, 2010, p. 7). Da mesma forma que Benjamin, ele explica que o termo alemão Gewalt, traduzido em português como violência, também designa poder. Entretanto discute a violência inserida na aplicação da lei no âmbito da linguagem, dizendo que "se a justiça não é necessariamente o direito ou a lei, ela só pode tornar-se justiça, por direito ou em direito, quando detém a força, ou antes quando recorre à força desde seu primeiro instante, sua primeira palavra" (Ibidem, p. 17). O que Derrida nos propõe, neste momento, é que o princípio de que a justiça se origina da linguagem não se contrapõe à premissa de que "no começo, terá havido força". Ele explica que o que se deve destacar é "esse exercício da força na própria linguagem" (Ibidem, p. 18).
A esse respeito, interessa destacar o que a psicanálise já antecipara sobre a relação intrínseca entre força e lei. Não só porque a pulsão e o inconsciente são pensados em termos de força e leis – que Lacan veio a sublinhar como as da linguagem (LACAN, 1953/1998) –, como também encontramos, no ensino de Freud, no texto "Por que a guerra" (FREUD, 1933[32]/1897), sua menção mais específica para nosso tema, sobre a presença de uma agressividade na imposição e na elaboração das leis, na luta entre nações, como uma forma de controle. São estes os pressupostos que ampliam nossa discussão para incluir os dispositivos, inventados pelo direito, como formas de impor a lei e punir seu desrespeito.
A construção panóptica, inventado por Bentham, mas bastante conhecido através das discussões apresentadas por Foucault em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1975/1987) seria a princípio um dispositivo de vigilância que serviria não somente aos modelos penitenciários, mas também para "escolas, as fábricas, os hospícios, os hospitais e as workhouses" (MILLER,
2010, p. 24). O panóptico teria dois princípios fundamentais: "a posição central da vigilância e sua invisibilidade" (Ibidem, p. 25). Esse dispositivo tem o formato de uma edificação circular. Como explica Miller "nessa circunferência, a cada pavimento, as celas. No centro a torre. Entre o centro e circunferência, uma zona intermediaria" (Ibidem, p. 24). Porém, cada cela tem uma janela para fora e na parte de dentro uma persiana impede que se vejam as galerias da torre. Ou seja, o princípio é que os vigilantes vejam os que estão na cela, mas estes não conseguem ver os vigilantes. O panóptico pode ser estudado como o marco transformador da sociedade em nossa época. Vivemos numa sociedade onde a primazia do olhar, do ver e ser visto, esta por toda parte.
Além de destacar a função vigilante do panóptico, Foucault (1973/2012) também faz um traçado histórico em A verdade e as formas jurídicas sobre a relação do homem com a verdade. O inquérito é citado por ele como uma das formas de saber-poder. Ele explica que, por meio da instituição jurídica, o inquérito "veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir." (FOUCAULT, 1973/2012, p. 78). No contexto do inquérito, o autor introduz o olhar da testemunha como uma prova reveladora no inquérito. O olhar no panóptico, o olhar da testemunha, que atualmente encontramos no olhar do exame, é central nos modelos da busca pela verdade. Segundo Foucault, a partir desse olhar o saber se ordenaria "em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou não fazer" (Ibidem, p. 88). Um saber de vigilância fundamentado na normatização e que vai acompanhar o indivíduo em toda a sua existência.
Para Lacan, Bentham foi importante por introduzir uma concepção nova nomeada de utilitarismo. O propósito desta doutrina ética seria promover o bem de todos a partir das ações de cada um. Lacan trabalha, no O seminário livro 7: a ética da psicanálise (LACAN, 1959-1960/1994), esse princípio ético do utilitarismo para diferenciá-lo do que seria a ética para a psicanálise. Bentham, segundo Lacan, "é o homem que aborda a questão no nível do significante" (LACAN, 1959-1960/1994, p. 278), pois valoriza seus efeitos de sentido. A invenção de Bentham, envolvendo as instituições jurídicas, parte do que pode ser útil para o homem como ficção verbal. Ficções no sentindo de construções de linguagem e não de criações do bem a partir da natureza humana; ficções, na "medida em que ela (a dialética do bem) adquire seu sentido efetivo para o homem" (Ibidem, p. 279).
O dispositivo do panóptico teria como base tais pressupostos, servindo à vigilância e manutenção de um saber ficcional normatizado. Miller (2010) explica que a invenção de Bentham visava reaproveitar os presos deportados e utilizados como mão de obra para o país.
Assim, para o utilitarismo tudo tem que ser aproveitado, não pode sobrar, não pode haver restos. "Tudo aí é exatamente calculado, sem excedente, ou falta. Articulações, dispositivos, agenciamentos. Por toda parte, máquinas" (MILLER, 2010, p. 27). Miller nos ensina assim que no mundo utilitarista não há "nada de natural, nada de contingente [...]" (Ibidem, p. 27).
Em nossa época, na qual o olhar tem um lugar de destaque, um dispositivo judiciário para a aquisição da verdade foi inventado como uma forma de escuta de crianças vítimas de abuso sexual. O formato deste dispositivo denominado Depoimento sem dano tem como princípio a prática do testemunho da criança vítima da violência moldado de forma, no entanto, a evitar um dano ou sofrimento no momento do testemunho da criança. Para isso, um técnico judicial, assistente social ou psicólogo, é o mediador que recebe as sugestões de perguntas do juiz e elabora uma forma apropriada de dirigi-la à criança. Com esse formato, a inquirição do juiz tem o crivo do técnico que reformula a pergunta para não causar maiores danos. O juiz, por sua vez, fica com um microfone vendo a sala de atendimento através de uma filmagem. O testemunho da criança, nesses casos, pode ser a prova criminal da ocorrência da violência por parte de um adulto.
A psicologia especializada no assunto utiliza uma técnica chamada de revelação que, diante da pressuposição de ocorrência de abuso sexual, propõe uma forma de entrevista com etapas preparatórias que visam a revelação do abuso pela criança (FURNISS, 1993). Vale ressaltar que na maioria das vezes essa revelação aponta como abusador o responsável do sexo masculino (pai ou padrasto). No dispositivo do Depoimento sem Dano temos a tentativa de uma linguagem calculada e certeira, na qual nada restaria fora do sentido, tampouco ficaria fora da cena. Nesse enquadramento da cena, podemos apontar que a criança, perante o olhar juiz, está numa posição de objeto. Ora, como Derrida nos propõe (DERRIDA, 2010, p. 30), "o direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável [...]".
O Depoimento sem Dano não está baseado em uma investigação teórica muito profunda, mas seu formato nos remete facilmente ao panóptico de Bentham, principalmente, pelo olhar vigilante e controlador. Nesse dispositivo o juiz dita as perguntas, as regras, interpreta e avalia o dizer de cada criança. Trata-se de um dispositivo cujo nascimento se embasa no discurso tão presente na atualidade a respeito do abuso sexual contra crianças e adolescentes. Observamos que neste discurso o inconsciente não é levado em consideração. O imperativo legislado por este dispositivo do Depoimento sem Dano é consoante ao discurso sobre o abuso sexual que deixa a criança no lugar de objeto, inteiramente dessubjetivada.
Temos, assim, a criança colocada na posição de objeto e o direito universal, na contramão da justiça, a favor dos direitos das crianças sem levar em conta a justiça singular daquilo que seria vivido como traumático ou não.
O cálculo e a regra, como forma de controle e de normatização ficam evidentes também na tentativa de traçar um perfil do comportamento da criança abusada. O utilitarismo de Bentham, como forma de controle, visa também uma classificação, uma taxonomia, dos homens que os torne mais visíveis. Guarda, com relação a isso, uma semelhança com as inúmeras patologias existentes nos manuais de classificações médicas e psicopatológicas atuais. No procedimento inerente às tais taxonomias, fica evidente elevação atual do objeto ao zênite social, como nos aponta Miller (2012). Segundo esse autor, essa supremacia do objeto, engendrada pela possibilidade de preenchimento da falta que a produção capitalista desenfreada promove, desencadeou as diversas compulsões presentes na atualidade. Nada mais resta a não ser consumir-se pelo consumo.
O modelo do Depoimento sem Dano é um fiel representante do que também podemos localizar como efeito do modelo panóptico na sociedade atual: as diversas câmeras espalhadas pelas cidades, engendrando uma sociedade obscena, pois na montagem de uma cena, algo fica fora da cena. No caso do Depoimento sem Dano, é a sexualidade infantil que se esvai na cena vigiada pelo juiz. Ao aparecer na cena, na linguagem, a sexualidade provoca logo um motivo para ser denunciada e, através do controle, desalojada da cena enquanto infantil.
Para Freud, no entanto, no desenvolvimento infantil a sexualidade tem enorme importância para a construção subjetiva. Não queremos com isso, apontar a criança como uma parceira em iguais condições às do adulto que a seduz. O nome abuso aponta justamente a uma posição desigual. No entanto, ainda que de forma diferenciada e precária, a criança não pode ser desconsiderada como sujeito com relação ao que se passa com ela. É como sujeito que ela responde a essas experiências e se constrói a partir do que nelas há de traumático. Segundo Lucíola Macedo, "na base da constituição do sujeito, observa-se uma enorme complexidade e ambivalência quanto às fantasias inconscientes, assim como nas relações de afeto entre pais e filhos" (MACEDO, 2010, p. 77).
Ouvir o sujeito sem normatizações a priori foi o que Freud nos advertiu em seu artigo "O parecer do perito no Caso Halsmann" (FREUD, 1931[30]). Ao ser convocado pelo advogado de acusação para escrever sobre o crime, ele argumenta que a psicanálise não poderia prever e nem se impor num caso de criminologia utilizando seus conceitos teóricos. Freud nos ensina que só posteriormente à averiguação dos fatos a psicanálise poderia realizar uma análise do sujeito.
Raúl Veras Barros (2011) comenta este texto dizendo que Freud faz uma distinção entre a investigação jurídica e a investigação psicanalítica, uma vez que "Freud demonstra que a aplicação do experimento da associação à prova judicial é muito diferente do procedimento judicial e não corresponde com um possível aporte conseqüente da psicanálise neste campo" (BARROS, 2011, p. 39).
De fato a diferença recai principalmente no fato do direito, no caso do dispositivo do Depoimento sem Dano, deixar de levar em consideração o discurso do inconsciente e os enganos da fala. Nesse ponto o olhar do juiz e sua voz inaudível para a criança poderiam ser os representantes de um imperativo que tenta normatizar o gozo.
Em O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/2008), Lacan retorna ao utilitarismo de Bentham quando contrapõe a categoria modal do necessário – o que não cessa de se escrever – ao contingente – o que não cessa de não se escrever. Segundo Lacan, o utilitarismo de Bentham diz respeito ao uso das "velhas palavras": "Sabe-se que para o quê elas servem, para que haja o devido gozo. Só que – o equívoco entre o dever e a dívida – o gozo devido se traduz pelo gozo que não se deve" (LACAN, 1972-1973/2008, p. 65).
O testemunho no sentido que tem no campo jurídico que, segundo Foucault, é uma forma de controle, para Lacan diz respeito a uma forma de tentar dar outro lugar ao que resta da operação simbólica, impossível de traduzir em palavras. Dessa forma, sempre vai haver um gozo que resta impossível de incluir no simbólico, como podemos ver no que a afirmativa de Lacan a seguir aponta: "mas, de fato, o que é procurado, e mais do que qualquer outra coisa no testemunho jurídico, é do que poder julgar o que é do seu gozo. O objetivo, é que o gozo se confessa, e justamente, porque ele pode ser inconfessável" (LACAN, 1972-1973/2008, p. 98).
Referências Bibliográficas:
BENJAMIM, W. (1915-1921/2013) Para uma crítica da violência. Em: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34. Acesso em 06/07/2014 em: http://pt.scribd.com/doc/71019472/Benjamin-Critica-Violencia
BARROS, R. V. (2011) El asentimiento subjetivo a la pena y al castigo. Buenos Aires: Grama Ediciones.
DERRIDA, J. (2010) Força de Lei. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes – (Biblioteca do pensamento moderno)
FOUCAULT, M. (1973/2012) A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora.
_____________ (1975 /1987) Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes.
FREUD, S. (1932/1987) "Por que a guerra?" Em: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição Standard, Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago.
_________. (1931[30]/1987) "O parecer do perito no caso Halsmann". Op. Cit., vol. XXI.
FURNISS, T. (1993) Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artes Médicas.
LACAN, J. (1953/1998) Função e campo da fala e da linguagem. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora.
_________. (1959- 1960/ 1994) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.
_________. (1972-1973/2008) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.
MACEDO, L. (2010) Reflexões sobre a violência, o sexual e o testemunho. Em: A escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. Brasília: CFP. Acesso em 29/06/2014 em:
http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/02/escutFINALIMPRESSO.pdf
MILLER, J.-A.(2010). La máquina panóptica de Jeremy Bentham. Em: Matemas I – Buenos Aires: Manantial.
Recebido em: 24 de novembro de 2014
Aceito em: 02 de março de 2015 |
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