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interlocução entre Psicanálise e Educação no contexto da proposta inclusiva
Introdução
Neste artigo propomos discutir as possibilidades de interlocução entre Psicanálise e Educação a partir da convocação feita pela proposta inclusiva. Nesse sentido, propomos pensar essa interlocução no marco de uma experiência particular: a experiência escolar de crianças que nos colocam diante do funcionamento da linguagem na psicose. Há algum tempo estamos advertidos dos perigos da aliança entre a perspectiva clínica e educacional, sobretudo pelas críticas que foram endereçadas de uma a outra parte, ora advertindo sobre os riscos da posição de mestria no contexto da clínica, ora advertindo sobre o hermetismo da clínica e sua resistência à interlocução. Para além deste quadro resumido dos conflitos entre estes diferentes discursos, foi também no interior de cada campo que acompanhamos uma reviravolta e uma reconstrução, mobilizadas pela busca de um modo específico de abordar seu objeto. Assim, Psicanálise e Educação, intervenção clínica e educacional, foram objeto de profundas transformações causadas pela exigência de afastamento do modelo biomédico que lhes marcou (como marcou todo o campo das chamadas ciências sociais no decorrer do século XX) e pela exigência de demarcação de um objeto próprio, assim como de uma intervenção que lhe fosse coerente.
No contexto destas transformações, críticas eram lançadas em bloco, ora destituindo o valor da perspectiva da educação, ora destituindo o valor da perspectiva clínica. Muitas vezes, clínicos e educadores não se reconheciam nas críticas que lhe eram endereçadas, justamente porque a crítica se dirigia a um modelo em relação ao qual o educador ou o clínico já não se reconhecia. É deste ponto que irei iniciar a apresentação de uma experiência que se situa justamente a partir de uma advertência e crítica: na formação de professores que atuam junto a crianças em processo de escolarização no âmbito da proposta inclusiva, uma das advertências se dirige ao risco de uma intervenção clínica quando a intervenção deve ser pedagógica. A proposta inclusiva insiste na demarcação – no que estamos inteiramente de acordo – da especificidade do educacional, atentando para os riscos da manutenção de intervenções de ordem clínica na escola. Como podemos ler essa advertência? Há algo que devemos escutar? Há algo que podemos recolocar, esclarecer, redimensionar? Como escutar o que há de novo na proposta inclusiva? Como escutar o que dizem clínicos e educadores, resguardando seus campos particulares e abrindo a possibilidade de interlocução? Em outras palavras, podemos derramar a água da bacia sem que junto se vá o bebê?
Psicanálise, Educação e a Proposta Inclusiva
No século XVIII, as crianças que apresentavam um modo de relação com a linguagem tributária do que viria a denominar-se como o campo das psicoses foram incluídas no grande espectro da idiotia, da inadaptação e da deficiência (BEAUCHESNE, 2002). Tornaram-se alvo de atenção e tratamento (numa perspectiva disciplinar) no âmbito dos hospitais psiquiátricos e, em seguida, passaram a frequentar, além dos hospitais, as escolas de Educação Especial. Este ainda é o quadro predominante da conjuntura brasileira, mas aos poucos o hospital passa a dividir espaço com a escola regular e não apenas com a escola especial. Neste contexto, consideramos relevante a abertura de um campo que interrogue essa experiência de entrada das crianças e adolescentes no sistema regular de ensino.
A emergência da categoria criança, gestada a partir dos séculos XVI e XVII, corresponde, de fato, à emergência e sistematização do próprio sistema de ensino articulado à revolução industrial (PLAISANCE, 2005; ARIÈS, 1991). A discussão sobre a criança como ser escolarizável – a criança é, por definição, um ser passível de preparação para o mercado de trabalho – produz então seu reverso, sua outra face: a criança não escolarizável, num primeiro tempo nomeada inadaptada e, num segundo tempo, deficiente (PLAISANCE, 2005). Toda uma construção teórico-prática se faz, a partir daí, sobre a infância e, por extensão, toda uma construção conceitual da criança inadaptada e deficiente. O modelo de anormalidade que se elaborara cientificamente desde os fins do século XIX ao início do XX solidifica-se com o funcionamento do sistema médico-psi nas fábricas e escolas. Um modelo de anormalidade, então, é construído no contexto de legitimação do discurso científico em fins do século XIX e meados do século XX. Esse modelo foi importado para a escola por especialistas, de modo que o conceito de criança anormal não parte de uma elaboração da escola (VIAL, 1990; VIAL, 1998; PATTO, 1990). A partir dessa leitura, os técnicos da infância anormal, amparados pelos diagnósticos das anormalidades escolares, teriamreivindicado a segregação dos alunos em classes especiais.
Aproximando-nos do discurso dos professores que atuam junto a crianças em processo de escolarização, Kupfer e Petri (2000) atentam para uma questão já formulada – e incessantemente repetida – pelos professores: por que ensinar a uma criança que não pode aprender? Podemos inscrever esta interrogação na lógica mesma do discurso social moderno, o que significa afirmar que a fala dos professores não está fora do tempo, mas, sobretudo, lhes corresponde. Ora, a instauração da instituição escolar implicou a instauração de um discurso no qual se delineava a categoria criança especial (KUPFER & PETRI, 2000, p. 111). Por quê? De saída, poderíamos dizer: porque, a partir de então, a criança vai para a escola. A
criança que vai à escola passa a ser, por definição, escolarizável. Quem não vai para a escola, vai para o hospício – é o que podemos inferir, tendo à mostra o corpo histórico de tratamento da questão em análise, cujo modelo o texto de Bilac (1905) evidencia.
A criança fora da escola passa a definir a criança por uma operação negativa: a criança fora da escola é tudo o que a criança não deve ser. O teste de Binet-Simon é testemunha desta operação: é a criação de um instrumento de medida dos escolarizáveis e dos não escolarizáveis. A normatização implicada nos testes redunda por ser também uma operação social, podemos acrescentar. Ademais, a categoria de inteligência que os testes instauramrefere-se diretamente à possibilidade de adequação da criança às exigências dos bancos escolares – e a escola, nessa ambiência, se situa, por sua vez, em meio às exigências da nova organização do capital.
Se a escola se organizava a partir dessa segregação fundamental, se ela surgia e se consolidava como uma instituição que agregava as crianças normais – pois justamente é a própria escola que faz surgir a categoria do normal – como a escola vai se definir e existir com a entrada dos a-normais, dos não escolarizáveis? É nesta formulação que Kupfer (2000; 2010) situa um dos grandes dilemas da escolarização de crianças psicóticas. De fato, Kupfer apenas interpreta a fala dos professores, quando dizem: “Se não podem aprender, por que as colocam em minha classe?”. Se consideramos esta fala legítima, é porque apresenta a própria definição de escola, ao mesmo tempo em que denuncia o fato de que a proposta inclusiva coloca em cheque a sua própria existência. A escolha que temos feito, e que gostaríamos de compartilhar para, desse lugar, situarmos nosso olhar para a escolarização da criança psicótica, é a de colocar em cheque a função da escola em nosso tempo.
Kupfer e Petri (2000) consideram a perspectiva de que a estruturação em curso na infância pode ser retomada no processo de escolarização da criança. Nesta perspectiva, é possível observar que as crises que vão cercear, em muito, as aprendizagens escolares, podem advir muito cedo, quando algumas aquisições estariam apenas se esboçando.
Assim, se alguns psicóticos adultos tiveram a chance de produzir, em períodos fora de crise, algumas suplências de laço que lhes permitiram estudar, aprender uma profissão e eventualmente ter uma circulação social, muitas crianças não têm a mesma sorte. A interrupção do desenvolvimento as captura em um momento anterior a qualquer aprendizagem, ainda que frágil ou suplente, do universo social. (KUPFER & PETRI, 2000, p. 113).
A escola, como lugar legítimo da criança viver e aprender em nossa cultura, se institui nas trocas simbólicas e nos interditos que fundam o laço social. Sabemos que a instituição escolar assume funções que se articulam produzindo um discurso social sobre o que se 51
aprende em escolas; mas sabe-se, também, que esse discurso social ora se conflitua, ora se afirma no modo como os educadores atuam e pensam sobre o que fazem em sua tarefa educacional. Petri (2000), discutindo a relação entre educação e pedagogia, observa que a instituição escolar é vista como
[...] este espaço fundamental e necessário para a criança aceder ao laço social, o que permite ao sujeito fazer um vínculo com a cultura, ainda que seja através de um nó frágil, uma aliança com o universo simbólico que rege as relações humanas. Aqueles que estão inseridos no laço social vivem um encerramento simbólico, o que garante um certo tipo de liberdade, a liberdade de circulação social (KUPFER &PETRI, 2000, p. 117).
Educação e filiação simbólica
Consideramos que uma das tarefas da educação seria a de fazer uma espécie de filiação simbólica, que se realiza no laço que se estabelece entre o tempo histórico e a história do próprio sujeito que se educa. A cultura que a criança vai acessar constituiria, desse modo, uma possibilidade de amarração simbólica do sujeito.
Uma criança psicótica (mas isto vale para qualquer criança) tem necessidade, primeiro e acima de tudo, de viver num lugar onde seja possível o acesso à fantasia e à criação. A criança deve ser levada a viver num lugar onde se permita a festa, o folclore, um lugar que marque o sentido e o ritmo das estações do ano e do tempo, que dê espaço a uma tradição oral e que deixe a criança descobrir o prazer de ter mãos que criam. [...] O escolar só pode tomar um sentido ao ser tomado nesta primeira rede simbólica. (MANNONI, 1985, p. 72).
Dois aspectos, então, se situam no cerne da reflexão sobre a escolarização de crianças: a ideia de que o sujeito não vem programado pela biologia (pelo genoma) e a ideia de que essa constituição (do sujeito) depende radicalmente do Outro, encarnado na cultura onde cada um se insere. É dessa forma que se pode pensar a escola como um lugar que confere sentido à vida da criança, sentido que se articula com o das outras crianças, “já que a sua vida garante a delas e a das que estão no porvir” (KUPFER, 2000, p.75). Esta concepção se coaduna com os princípios do que se nomeia hoje educação inclusiva, na medida em que a proposta inclusiva toma como objeto de reflexão as marcas culturais que a escola tem como função transmitir:
A crença de que educar é muito mais que favorecer a apropriação de conteúdos acadêmicos, pois implica em ser e permitir ao outro revelar-se como sujeito num contexto de apropriação coletiva de valores e bens históricos e socialmente construídos, permitiu o entendimento de que o tempo de preparação da escola é o tempo presente. A escola é hoje, os alunos estão nela hoje e consequentemente não pode ser reportada a um tempo futuro (FIGUEIREDO, 2006, p. 15).
A procura por tratamentos médicos, como se pode ver, tem tomado as várias
especialidades em um viés instrumental, muitas vezes acabando por promover na criança uma espécie de hipertrofia da dimensão orgânica de seu corpo, ao mesmo tempo em que promove também a fragmentação da criança em partes isoladas. Não por acaso estas partes fragmentadas correspondem justamente às áreas relativas às especialidades médicas (HEINZ, 2003; VORCARO, 1999; CORIAT, 1999). O processo de escolarização de crianças e adolescentes têm demonstrado um movimento de desconstrução vivido pelas equipes de trabalho: desconstrução que atinge um modo clássico de se pensar as especialidades e que procura articular os saberes específicos em torno da categoria de sujeito (HEINZ, 2003; YANÉZ, 2001; VORCARO, 1999; VORCARO, 2011). A casuística acumulada vem apontando que essa extensão (das possibilidades de enlaces na educação escolar) é significativa a ponto de estar aumentando, por exemplo, o número de crianças que frequentam com sucesso as escolas regulares (KUPFER, 2010; YANÉZ, 2001). Como essas experiências se apresentam no contexto do sistema público de ensino?
A inclusão escolar tem seu surgimento ligado às discussões e lutas levadas a cabo a partir da política de integração escolar. Os sistemas são integrados, o que tem como consequência a ênfase nos aspectos estruturais da organização dos serviços destinados aos alunos com necessidades educacionais específicas. Com o surgimento da noção de inclusão escolar, a gestão da escola e da classe assumem o primeiro plano nas discussões. A escola passa a ser objeto de questionamento, em cujo centro estão as seguintes perguntas: que transformações a escola deve atravessar para se tornar mais acolhedora e aberta para a diversidade? Será que a maioria dos alunos estão sendo beneficiados com as práticas atuais de ensino ou estas práticas estão voltadas para uma minoria que consegue se adaptar à escola? Essa proposta visa ultrapassar práticas e concepções que visam o aluno como objeto de adaptação e avançar na consideração de que é a escola que deve se perguntar, permanentemente, sobre sua possibilidade de transmissão e de escuta do aluno. A diferença está, como indicamos, no acento que a proposta inclusiva confere às práticas escolares e “em matéria de ensino-aprendizagem a educação inclusiva repousa essencialmente sobre as noções de contribuição, de valorização, de flexibilidade e de diferenciação” (POULIN, 2010, p. 30).
A prática é repensada a partir do lugar que se confere ao professor e das relações entre os alunos no processo de aprendizagem e convivência escolar.
A proposta inclusiva tem questionado as práticas escolares que se pautam na homogeneização e inúmeras pesquisas evidenciam uma forte preocupação com a produção de saberes nesse campo que envolve as práticas.. A ênfase em movimentos mais autônomos e em
metodologias pautadas na interação mais ampla entre os alunos pode ser observada nessas pesquisas, como demarca Figueiredo (2010). Nossa posição, alinhada aos princípios que sustentam a perspectiva da educação inclusiva, é de que a escola deve operar levando em conta as vicissitudes do sujeito, não se fixando na doença ou déficit que afeta a criança. Nesse sentido, é pertinente estabelecer uma separação (e inter-relação) entre patologia orgânica e estruturação psíquica. A perspectiva que visa a permanência dos alunos na sala regular promove, a nosso ver, novos modos de agenciamento do aluno considerado “diferente” e, portanto, promove uma ruptura importante na forma como a escola lida com toda e qualquer diferença.
No discurso da escola, é a elisão desse furo que está em jogo na produção de conhecimento. A tentativa de abordar os sujeitos a partir de um ideal normativo que garantiria saber quem está fora e quem está dentro equivale à tentativa de suturar, no saber, seu impossível. O objeto da defesa é o impossível que rege a produção de saber, o impossível que faz resistência a toda tentativa de apreensão do real que seja comum a todos. Por isso é importante desmontar a leitura que algumas pessoas têm feito da proposta inclusiva como uma proposta ingênua, que aposta na inclusão de todos como se todos fossem iguais. A tentativa, em nosso entendimento, não é fazer um – de todos fazer um só corpo homogêneo –, mas interrogar o ideal mesmo de homogeneidade. Há um destaque então a fazer: ninguém é obrigado a ir à escola. Um sujeito que se organiza na psicose, por exemplo, pode não ficar na escola, pode peregrinar em espaços diversos, sem eleger um ponto fixo. A questão é que, do lado da escola, se esse sujeito chega, por que ali não encontraria um espaço em que seja possível a convivência? O acesso à escrita? O acesso aos saberes que a escola tem por função transmitir?
Como vimos, a nomeação do público alvo da educação especial se faz por áreas e no interior destas áreas tem se constituído todo um processo de reflexão sobre a escolarização das crianças e adolescentes e suas necessidades educacionais específicas. No que diz respeito às psicoses infantis, embora existam experiências e pesquisas em andamento, poucos trabalhos voltaram-se para a atuação do professor nesse processo. Uma bibliografia ainda incipiente tem se voltado para os efeitos do processo de escolarização da criança psicótica, mas pouquíssimas pesquisas têm abordado este processo do ponto de vista da escola, ou seja, do ponto de vista dos que atuam junto às crianças:
Dentro deste amplo campo1, o grupo das crianças e jovens com problemas psíquicos graves coloca desafios ainda maiores quando se trata de escolarizá-las, e reclama a atenção dos pesquisadores por três razões. Primeiramente, 38,4% dessas crianças já estão em escolas na França (Gachet, 2009) e 51,4% no Brasil (Oliveira, 2009). Em segundo lugar, a escolarização é a mais importante arma de adaptação social da qual podem servir-se essas crianças e jovens. Ela permite uma inserção social que favorece sua autonomia social, uma melhor qualidade de vida e uma menor dependência da ajuda do Estado. Finalmente, os dois países já oferecem atualmente condições razoáveis para a escolarização de crianças com problemas psíquicos graves, mas ambos enfrentam grandes dificuldades para ampliar o alcance de seus programas de inclusão escolar e para preparar educadores implicados nessa escolarização. Mais que isso: França e Brasil têm dado pouca atenção à formação de educadores para o enfrentamento do desafio que é considerar essas crianças e jovens em sua singularidade (KUPFER & PECHTBERRY, 2010, p.128).
Segundo pesquisas realizadas no Brasil e na França sob a coordenação dos respectivos autores,
[...] poucas pesquisas trabalham sobre a especificidade das dinâmicas mobilizadas nos profissionais em seu trabalho, [...] [sendo imprescindível] identificar as condições que vão preservar o educador do burn-out ou da depressão profissional face a alunos tão desconcertantes. [...] O tratamento desses adolescentes suscita atualmente novas formas de colaboração entre diferentes profissionais da saúde (médicos, psicólogos, psicomotricistas, etc), da educação (educador especializado, mediador) ou do ensino (professor do ensino regular ou especializado, conselheiro de educação, diretores de escolas), no quadro das leis sobre a igualdade de pessoas (ditas) deficientes. Diferentemente das ditas deficiências físicas, o dito handicap mental atinge a relação com o outro e suscita reações originais, modalidades de defesa e de distanciamento no interior da chamada personalidade profissional (Petchberty, 2007) dos diferentes praticantes (KUPFER & PETCHBERTY, 2010, p.130).
As pesquisas empreendidas nos dois países focalizam as práticas e as experiências vividas por profissionais e professores confrontados com os adolescentes “com problemas psíquicos ou, para usar a terminologia francesa, em situação de handicap mental” (KUPFER
& PETCHBERTY, 2010, p. 131). A proposta de inclusão escolar e, com ela, a possibilidade de entrada do louco na escola, detonou – a partir de uma reivindicação que situaríamos no campo geral da ética e da política – um processo de questionamento teórico da educação:
Após uma história de séculos de exclusão, políticas da saúde mental, a desinstitucionalização da loucura e da educação de inclusão do aluno diferente, permitiram que o louco chegasse à escola. Este momento inusitado gera resistências na instituição escolar – que há alguns anos perseguia o ideal das classes homogêneas, e sente-se perdida, descrente, angustiada ante o desconhecido, o inóspito intruso que chega quando ela enfrenta o fracasso da prática pedagógica, causada imaginariamente (imagina um todo saber) pela ineficiência metodológica ou incapacidade psicológica do aluno em geral –, e nas clínicas médicas, psicológicas e psiquiátricas, que sempre detiveram a administração da loucura rejeitando, ou aceitando com restrições, o fato de o louco poder, mesmo “sem curar-se”, isto é, com ou além da clínica, ocupar outros lugares que não o de doente mental. (CUFARO, 2000, p.145)
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Os autores se referem ao campo do handicap mental. |
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Essas observações retomam as diferenças entre a chamada “proposta inclusiva” e a “proposta integrativa” posta em marcha há três décadas. Na proposta integrativa, a ênfase recaía sobre a possibilidade de adequação do aluno às práticas escolares, o que teve como consequência a criação e expansão das classes especiais por todo o sistema de ensino. Na proposta inclusiva a ênfase recai sobre a transformação e sobre o questionamento dos ideais que a escola construiu. De um ponto de vista macro, político, questiona-se a o mito da sociedade sem contradições. De um ponto de vista micro, questiona-se o ideal das classes homogêneas, que tem como produto máximo a imagem do aluno ideal.
Talvez a loucura nos permita tomar estes questionamentos em sua radicalidade, pois, nesse campo, nos situamos na fronteira entre construções fundantes da civilização: o normal correspondendo ao sujeito passível de aculturar-se, de civilizar-se, e o louco correspondendo ao sujeito que está fora desta possibilidade fundamental. E, justamente nesta fronteira, a aposta passa a nortear o trabalho, em contraposição à demanda de um saber que venhatamponar o imprevisível:
Nestas experiências de Bonneuil e do Lugar de Vida, vemos reunidos uma certa compreensão do ato educativo e da posição subjetiva destas crianças, visando à obtenção dos efeitos educativos primordiais. Mas, para que não haja dúvidas, o que difere esta proposta de tratamento (no qual se alinham estas instituições, mas não só) é que os efeitos pretendidos não podem ser calculados a priori, não são previsíveis, enfim, todo trabalho é baseado numa aposta: nestas crianças há um sujeito a ser escutado e a instituição existe para contribuir para que este sujeito emerja. Porém, a ex-istência de um sujeito está ligado a tornar uma educação primordial possível. E a recorrência à psicanálise não é para determinar interpretações, o que ou como fazer, servindo como molde metodológico para se montar as atividades educativas. Pode-se afirmar com de Lajonquière (1999), a psicanálise está presente em negativo, está para dizer o que não deve ser feito subvertendo o discurso médico-pedagógico (Mannoni, 1988) ou o "discurso (psico) pedagógico hegemônico" (Lajonquière, 1999). Esta subversão implica em fazer a criança sair da posição a-subjetiva, remontando o ato educativo sobre a égide de um operador chamado desejo, não controlável, não previsível (ROCHA, 2002, s/p.).
Ao debruçar-nos sobre o campo empírico – a escola regular -, apostando nessa direção, expomos os elementos em questão nessa experiência e pudemos construir um espaço de discussão sobre as particularidades da criança e as transformações que a vida escolar pode promover em sua existência.
Aportes construídos a partir de experiências
Apresentaremos agora alguns aportes que foram sendo construídos em nosso percurso e que optamos por ordenar, para esta exposição, a partir de experiências. Tomaremos situações como objeto de análise, na tentativa de ordenar alguns aspectos importantes que possam
contribuir para o processo de escolarização de outras crianças. Pedro (nome fictício) apresenta 56
a ausência de um ponto de ancoragem capaz de permitir à fala organizar-se em torno de um centro. Encontra dificuldade em produzir uma significação a partir da reunião de elementos, sejam palavras, frases ou ilustrações. Se “ausenta” a todo instante, voltando-se para o próprio corpo. Chega na escola calado, a ponto de não saberem se ele “ouvia”. Outro aspecto destacado foi o medo, a passividade acentuada, vivida por Pedro. Esse medo de algo que não era nomeado passa a aparecer nas estórias de babaus e zumbis. A partir de então, tem medo dos babaus e zumbis e passa a contar suas estórias para a turma.
Laura, por sua vez, causa nas professoras um estranhamento: não parecia gente, por se apresentar em um nível arcaico em relação às aquisições fundamentais da criança e também por se apresentar de forma “bizarra”. Apresenta nos olhos uma palpitação e não fixa o olhar. Ao corpo também falta direção. Se dirige a vários objetos, saltando de um em um. É atraída pelos objetos – em relação aos quais fica interditada pelas mãos da mãe - e, se pode soltar-se, arremessa-os com força, bate uns contra os outros. Depois que o objeto é lançado, não parte em sua busca, não joga o jogo de perder e reencontrar. Sua presença é descrita como “um furacão”: errante, segue sem ponto de ordenação.
Nas duas crianças, observamos uma “errância”: em Pedro, predominantemente manifesta no nível das palavras; em Laura, no nível motor. O que se depreende de comum é a ausência de fixação da libido, ausência de uma certa secundarização responsável pela introdução de barreiras no fluxo móvel. Assim, objetos ou palavras deslizam de forma frouxa, sem fazer conjunto, sem ordenar-se em torno de um centro. À errância das palavras corresponde a errância motora e é apontada
[...] como “uma forma de comportamento muito comum nas crianças psicóticas precoces, que passam de uma coisa a outra sem poder parar em nada, em um estado de agitação constante. Pegam um objeto, e logo pegam outro e o soltam, sem chegar a fazer nada com nenhum deles” (JERUSALINSKY, 1996, p. 161).
Em relação a Laura, pensamos em uma indiferenciação no nível psíquico. Observamos que, do lado da mãe, não havia suposição de uma demanda nos balbucios ou gestos da filha. Essa ausência não era absoluta, mas articulada num nível arcaico, referido ao comer, por exemplo. Consideramos importante transformar essa forma de relação no âmbito da escola e evitar que se dirigissem a ela pegando ou guiando. As crianças e professores, em particular, seriam importantes nessa mudança, pois eram eles que a partir desse momento iriam lhe dirigir palavras. É que observáramos em Laura uma relação com a realidade e o outro marcada pela indiferenciação, em que tudo que está fora pode estar dentro. Ela comia os objetos, não controlava os esfíncteres, quer dizer, não fechava as bordas do corpo. Com o
tempo, com a construção de recursos simbólicos, as bordas foram se fechando (observamos que ela foi deixando de morder e de babar, de comer sem freio, até vomitar, entre outras aquisições que registram uma superação).
Depreendemos aí um efeito da palavra: quando começamos a falar com as crianças, o corpo vai se fechando, um corpo vai se constituindo a partir do fechamento das bordas. Esse fechamento pressupõe justamente uma presença-ausência, pois se trata de abrir e fechar. Quando não há o controle dos esfíncteres, o fechamento das bocas, as bordas não estão recortadas. Consideramos as palavras no amplo contexto da escola, que faz operar ritmos e espaços que introduzem a escansão, o corte, a borda. Desse contexto, depreendemos os efeitos do recorte de um corpo simbolizado, em Laura. No nível das práticas, observamos que as crianças tendem a fazer par com o professor, em uma exacerbação da relação didática que então se instaura, ignorando o coletivo dos companheiros; vimos, assim, que essa forma de estabelecer as relações em sala dificulta as interações entre os pares. Planejar e realizar a aula, e as situações gerais da escola, de modo a favorecer as relações entre os pares trouxe avanços para todos. Vimos como Pedro descolou-se da professora e, Laura, da sua mãe, ainda que com reservas. As professoras têm a concepção de que as crianças devem referir-se umas às outras, sem estabelecer uma relação de exclusividade que as torna voltadas e dependentes de um só aluno. Para elas, a sua atuação como professora não deve colocar o aluno na posição de exceção: o aluno não deve realizar atividades endereçadas só a ele e não deve ser tratado como alguém que não pode fazer as coisas por si. As professoras consideram importante que o aluno possa se situar no contexto da sala, que possa se localizar em meio ao coletivo e ante o que acontece na escola. Esse é um aspecto rico da cultura escolar, que observou-se ter sido desenvolvido em vários âmbitos junto às práticas de inclusão escolar.
Com a entrada em cena dos outros alunos, observamos que Laura passou a jogar bola. No início, jogava para ninguém e aos poucos passou a entregar e a receber a bola de alguém. O fato de não ter sua mãe lhe segurando, como a todo tempo acontecia, oportunizou-lhe uma experiência ímpar - com o corpo, o outro, a linguagem. Pedro, por sua vez, nos permitiu observar a função de testemunha que a turma passou a assumir. Como testemunha das estórias contadas, a turma assume a função de reconhecer o que Pedro diz. É importante sublinhar que não se trata de confirmar ou não a verdade do que está sendo dito, mas de reconhecer que ali alguém fala. Não reconhecer o babau-carrinho, por exemplo, pode provocar desmoronamentos de toda ordem, rompendo toda possibilidade de ordenação de um mundo. Vimos, na prática, como o professor deve construir situações (todas as situações de criação aqui são válidas) que permitam ao aluno conferir um lugar aos objetos que aparecem
regularmente em suas falas. Esses objetos, nesses casos, geralmente comparecem isolados, apartados de uma ordem. A tentativa é de que a criança realize uma composição na qual possa situá-los.
A construção das estórias de zumbis e babaus permitiu ao Pedro “ligar” o que se apresentava apartado: os babaus surgiam e Pedro precisava inseri-los em uma ordem que restauraria certa organização em seu mundo. Esse trabalho o permitiu habitar um mundo, habitando a linguagem, restaurando sempre as duas ordens que lhe apareciam apartadas: o código e a mensagem - o significante como diferença pura (como aquilo que tem a natureza de um dever falar) e a significação que é fruto da suposição de uma intenção. Entre o código e a mensagem, o Outro se apresenta como o que faz conjunto dos significantes. O Outro, além de ser o tesouro dos significantes, é responsável por sua “ordem”. Se, na paranóia, o Outro se apresenta sem furo, daí as figuras de um Deus que é pura intenção sem barra (o Deus do paranóico é dotado de uma intenção absoluta que faz do sujeito um objeto), na esquizofrenia o que está em questão é essa função do Outro de fazer conjunto. Trata-se, desse modo, de construir um Outro, de conferir uma ordem que faça conjunto dos significantes. A aquisição de uma escrita e a possibilidade de ler participam desse trabalho de ordenamento, onde a criança reúne o que se encontra fragmentado.
Para os dois alunos, a relação que as professoras estabeleceram com os pais se revelou capital em todo o processo. A aposta das professoras sustentou a aposta dos pais. Em relação às outras crianças e aos outros atores da escola, o olhar da professora também apresentou-se como determinante na forma como a criança foi sendo olhada. Para Rogério, estar com outras crianças que lhe dirigiam a palavra, que escutavam suas estórias, que olhavam para ele enquanto falava, provocou uma mudança radical em sua vida social. Rogério chegou na escola calado, sem dirigir o olhar ou a fala aos outros, em uma relação muito corporal com a professora que, sem uma ruptura drástica, sem lhe ordenar que andasse sozinho, foi esperando que falasse, foi convocando sua fala diante dos outros, incluindo-o nas atividades em grupo ou duplas, oportunizando transformações.
Laura também mostrou mudanças: o olhar passou a se fixar mais; olhava para as outras crianças quando falavam, levantava com as outras na hora do recreio, lanchava com as crianças e não mais sozinha com a mãe, regulava a quantidade de comida que comia, quando antes comia até vomitar, participava da hora da acolhida e do recreio, correndo com as outras crianças pelo pátio. No fim do ano, participou da festa de encerramento. Os alunos de sua turma eram anjos em uma peça que reuniu todas as turmas e Laura estava lá, de anjo, junto aos outros na cena. Sua mãe ficou um pouco atrás, não tão longe, mas não estava “na cena”. A
mãe, pela primeira vez, viveu uma situação de ver a filha atuando e a si como “expectadora”, como “público”. Não dava para saber quem vivia situação mais “nova”, se a mãe ou a filha.
Relacionando-se com Laura sem a mediação da palavra, professores e crianças se dirigiam ao seu corpo, manipulavam-na. Promover uma ruptura foi imprescindível para criar um espaço para o surgimento da palavra. Via-se, no decorrer da pesquisa colaborativa, como a escola pode criar novas formas de endereçamento e para isso o professor deve observar como a criança se posiciona frente ao outro. Se fica na posição de objeto manipulado, fora da palavra, a escola pode introduzir a palavra, o desenho, a escrita, com vistas a interpor alguma
“escrita” entre a criança e o outro. O princípio é romper uma relação não mediada, uma relação em que nada se interpõe entre a criança e o outro. Permanecer com esse tipo de relação reproduz a posição de objeto da criança e opera contra a emergência de perceber-se separada do outro. O corte na reprodução dessa situação de objeto, que vivia a criança, abre um campo de possibilidades que permite à criança ocupar lugares distintos, variados, na escola.
As atividades diversificadas no interior da escola contribuem para a abertura da qual estamos falando. Pedro, nas aulas recreação, mal falava, não olhava para os outros, não manifestava interesse pelo que acontecia ao redor de si. Andava de forma descoordenada e não realizava atividades em que precisasse correr ou realizar saltos e desvios. Aos poucos, Pedro adquire um maior equilíbrio corporal e passa a se relacionar de outra forma com as crianças. Um aspecto fundamental também emerge nesse espaço e não só na sala de aula - é que a professora não monta para atividades só para Pedro. Ela vai permitindo que Pedro se movimente no interior das atividades que são propostas.
Outro aspecto a destacar é que Pedro também não fica de café com leite, não é tomado pela professora como aquele aluno está dentro, mas na verdade não conta. Pedro vai ficando
“como” os outros, ainda que as crianças se refiram à sua estranheza. A escola vai exercer um papel fundamental nessa inclusão, uma vez que solicita à criança “ser com os outros e ser como os outros”. Para uma criança que vive um estado de dispersão e apresenta uma problemática em torno da constituição do eu, “ser como o outro” é importante. Estamos nos referindo à face imaginária que no processo de escolarização coloca em jogo a dimensão de alienação a uma imagem. O agenciamento à imagem, feito pela escola, ao convocar o “ser como os outros” do sujeito psicótico, contribuiria para o ordenamento do que se encontra disperso. Se “ser como os outros” favorece a compensação imaginária do que se encontra disperso, por outro lado as diferentes posições a ocupar na escola retiram a criança da identificação massiva à figura do doente mental.
Na escola regular, a ênfase irá recair sobre a possibilidade do engajamento em uma organização escolar e da filiação a nomes que permitam alguma inscrição na ordem social. Laura, ao entrar na escola, era vista como uma espécie de “bicho”, as pessoas não sabiam como se dirigir a ela. Não havia, para o outro, significante que pudesse agenciar o endereçamento: “o que é ela?”. Com a entrada na escola, o significante criança e aluna permitem aos outros (da escola, do bairro, da família) situar Laura em um coletivo e, desse modo, na ordem da cultura, na civilização. Os espaços que agrupam os sujeitos pela doença mental fortalecem o endereçamento ao sujeito como aquele que está fora da civilização. Do lado da criança, estudar em uma classe regular favorece o contato com os significantes que organizam o mundo das crianças da sua idade e do seu bairro. Sua experiência será ordenada pelos significantes trazidos pelas outras crianças e que compõem a experiência de um coletivo de crianças que, ao falarem, escrevem suas marcas e seus lugares. As brincadeiras, os temas de discussões e conversas, as roupas, as palavras – todos esses elementos são apresentados à criança como índices de filiação, construindo algum relevo na desertificação de seu mundo. Com outras crianças – que estivessem reunidas sob a rubrica da psicose, do autismo ou da deficiência intelectual – a filiação aos nomes da cultura ficaria achatada sob a predominância das identificações imaginárias postas em marcha através das aquisições funcionais.
Aproveitar a heterogeneidade da turma é outra proposição fundamental, pois o aluno vive situações sempre diferentes, que dificultam sua fixação em uma única posição. O trabalho em duplas ou grupos assume um papel fundamental nas práticas de sala, quando se trata de um ensino voltado para a diversidade. As práticas de sala que movimentam composições diferentes entre as crianças (duplas, trios, grupos maiores) potencializam a aprendizagem, pois colocam em cena perspectivas diferentes e mobilizam os alunos a viverem situações novas. O ensino diferenciado e as adaptações curriculares expressam a capacidade de o professor se ajustar aos alunos e permite a criação de situações novas. A adaptação ocorre quando o professor acompanha o movimento dos alunos e modifica seus planos e estratégias. A partir da avaliação das necessidades de um aluno, uma atividade pode ser mais explorada e contribuir com toda a sala. Em relação a Pedro, por exemplo, a sugestão de investir mais nas estórias (ordenação, composição, etc), também poderia favorecer aos outros alunos que estavam em situação de dificuldade em relação à leitura e escrita de textos. Em relação à Laura, a criação de um mapa situando as atividades realizadas na escola, o tempo e o espaço, foi uma sugestão recebida pela professora como uma ideia interessante para todos os alunos. Esse mapa poderia ser explorado de diferentes formas.
Analisando a fala e o trabalho de professoras, demarcamos a importância que conferem à instauração de um ritmo, de uma marcação da diferença entre os tempos e espaços. Extraímos daí uma proposição de investir na marcação dos tempos e espaços. Mas havia outro aspecto específico que permitia desdobrar essa proposição: a escola privilegiava o tempo partilhado, aquele em que “determinado grupo faz assim”. Daí o desdobramento que nosindicava a necessidade de investir na dimensão de um “fazer comum”, de um “fazer partilhado”. No caso de Laura, essa proposição se particularizou com a sua participação nos rituais escolares: o momento de entrar, marcado pela acolhida no pátio; o momento de ir para a sala, marcado pela fila; a saída da sala para o recreio, marcada pelo toque (música) e pela indicação da hora; o recreio, com o momento de ir à mesa lanchar e o momento de correr e brincar no pátio; as festas comemorativas, com tudo que elas envolvem de acessórios, roupas e encenações ensaiadas. Laura nos permitiu perceber isso, pois se comportava fora de toda atividade comum. Pedro, no entanto, foi tomado nessa lógica sem que as professoras percebessem, de forma mais natural, “irrefletida”. A escola, quando se dirige ao aluno sem tomá-lo como “objeto” de seus cuidados, promove uma distância necessária. Também opera um corte, como vimos, no nível da família: seja porque aparece como um outro espaço, um espaço terceiro, seja porque provoca interrogações em torno de sua relação com a criança.
Considerações finais
Laura, ao final de um ano, acompanha sua ação de palavras, como as crianças que começam a falar. Pede água e pede para passear. Na hora da aula, pega a mochila e vai para a porta de casa, convocando a mãe para que lhe leve. A mãe também diz que em casa passou a comer sozinha e não come mais sem parar. Ela, a mãe, passou a limitar o tanto que come – coisa que nunca fizera, antes da escola. Laura, do seu lado, parou de gritar à mesa. A professora observa que, na escola, não se ouvem mais os gritos. Uma coisa também nos chamava a atenção: a fixação de Laura nos objetos, assim como o olhar mais endereçado a quem fala. Não havia, em tudo isso, uma mudança radical em jogo, mas, evidentemente, um movimento operando. Ainda que Laura nem sempre olhe para quem fala, por exemplo e que muitas vezes volte a correr e se dirigir aos objetos “aos saltos”, de um modo geral, havia uma regulação maior, uma certa diferenciação entre os objetos e as pessoas, uma capacidade crescente de simbolizar pela palavra e de interagir “ao modo dos outros”.
Pedro, com o tempo, mais e mais foi se mostrando mais aberto às trocas sociais e seu pai passou a lhe levar todas as manhãs para a casa de uma vizinha, que dava aulas de reforço. Lá Pedro brincava com outras crianças durante as manhãs e também estudava. Quando a família 62
de Pedro matricula seu filho na escola, passa a se referir ao filho “para um outro”, então o fato de falar do filho para um outro (fora do espaço da família) já introduzia uma distância, pudemos observar. O filho era tomado em falas diferentes, interpretado de formas diferentes, o que produzia nos pais o efeito de um afastamento, como se sobre o filho pudesse haver um outro saber para além dos seus. Se a escola regular não estiver tomada pela “doença” ou “déficit” da criança, os assuntos, os temas que giram em torno de sua vida poderão ser mais variados, mais plásticos. Estamos falando da possibilidade de jogar com outras interpretações, de permitir ao sujeito outras “filiações” que lhe mantenham aqui e lá ao mesmo tempo.
Se os professores falam as “palavras comuns” que envolvem a proposta inclusiva, isso não impede que façam uma “elisão” dessas palavras quando propõem atividades que atualizam toda uma tradição no modo de conceber a criança da “educação especial”. Essa elisão pode estar a indicar que se relacionam com essas palavras sem interrogar seus fundamentos. Pode estar a indicar, também, que por mais que tenhamos um certo conhecimento, ele será, em última instância, confrontado com uma decisão do sujeito.
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Recebido em: 23 de Maio de 2015
Aceito em: 15 de Setembro de 2015
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