ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 22
Janeiro a Abril de 2014
 
   
 
   
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Três versões do corpo freudiano: um traço da biologia freudiana
Three versions of the Freudian body: a dash of Freudian biology

 
     
 

Vinícius Carossi Letizio Vieira
Psicólogo e mestre em Processos Psicossociais pela PUC Minas
Analista praticante e psicólogo do Centro de Atendimento e Proteção ao Adolescente (CAPUT)
E-mail: vinicius.carossi@gmail.comr



 

Resumo: Este artigo tenta demonstrar três versões do corpo na obra freudiana. Por mais peculiares que sejam, cada uma com sua singularidade, elas possuem este ponto em comum: todos negam dialeticamente as concepções de corpo da biologia clássica, qual seja, um corpo, isto sobrevive. (CAROSSI, 2012). As três versões escolhidas durante a obra são o corpo dinâmico, o corpo erógeno/histérico e corpo libidinal/pulsional. Quando se afirma três versões do corpo freudiano, entende-se que há uma noção conjunta, afirmada de maneiras distintas, a saber, que este corpo é desnaturalizado pela inserção da linguagem.


Palavras-chave: Biologia psicanalítica, corpo dinâmico, corpo libidinal, pulsão de morte, narcisismo.

Abstract: This article tries to demonstrate three versions of the body in Freud's work. However peculiar they are, each with its uniqueness, we have this thing in common: all dialectically deny the body of concepts of classical biology, namely, a body that survives. (CAROSSI, 2012). The three versions chosen for the work are the dynamic body, the body erogenous / hysterical and body libidinal / instinctual. When we say three versions of the Freudian body, it is understood that there is a common notion, stated in different ways, namely, that this body is denatured by the insertion of language.

Keywords: Psychoanalytic biology, dynamic body, libidinal body, death's drive, narcissism.

 
 

Três versões do corpo freudiano: um traço da biologia freudiana

- O corpo dinâmico O corpo dinâmico O corpo dinâmicoO corpo dinâmico O corpo dinâmico
Neste trecho pretende-se dar continuidade ao que foi afirmado mais acima, acerca da apropriação que Freud faz da biologia e de sua aplicação em seus primeiros textos que já possuem um caráter de germe da psicanálise.

Alguns podem argumentar que a psicanálise iniciou-se na publicação da Interpretação dos sonhos, em 1900. Não é objetivo, aqui, se delongar sobre assunto, porém vale apenas um ressalve sobre o porquê do uso de textos anteriores a este. Quinet afirma que essa época de Freud era "pré-histórica, porque a história propriamente dita da psicanálise começa em 1900, no começo do século" (QUINET, 2008, p.22). Não que se tem um ponto de discordância, apenas será feito um uso de algumas publicações anteriores, suas Cartas a Fliess e o Projeto. Não será feito aqui uma exposição detalhada do que é o Projeto, evitando-se, assim, um enfado desnecessário. Caso haja curiosidade, pode-se reportar diretamente ao texto freudiano, que, obviamente, tem toda a propriedade e fineza ímpar de escrita que lhe era peculiar. O que se visa é elucidar, através de alguns pontos, o que há de diferenciado na sua posição sobre o corpo.

Mattos nos diz de um Freud funcional, do Projeto, que, pode se assemelhar mais às concepções neurobiológicas da atualidade (MATTOS, S. 1996) Crê-se, fazendo coro a este autor, que uma obra não pode ser retirada de seu entorno e ser analisada como a palavra final de um autor em tal assunto. O que se pode perceber é que o funcionamento do corpo biológico para Freud era um problema que o assolava. Talvez por suas leituras e sua formação, ou por seu desejo de ser um grande cientista (ASSOUN, 1983). A impressão que se passa é que Freud digladiava com o que aprendeu, com o que via na biologia e na medicina com aquilo de estranho que lhe aparecia na clínica, como, por exemplo, as conversões histéricas.
Como foi dito, o que se colocará não quer dizer que este é um posicionamento rígido de Freud, tanto que seu Projeto esteve guardado em suas gavetas durante muitos anos. Entretanto, em se tratando do assunto que se propõe, há que se comentar de maneira mais minuciosa tais concepções que perpassam diretamente sua guinada da medicina para essa nova disciplina que ele constrói.

Deve-se ressaltar que aquilo que Mattos nomeia como "corpo funcional", será abordado aqui como dinâmico. Assoun argumenta que toda a proposição de Freud - e é neste caminho que será trilhado - no Projeto, advém de uma grande influência das concepções do fisiologista Fechner, grande expoente nas teorizações sobre os limiares de sensibilidade do corpo humano.

Introduzir um funcionalismo poderia colocá-lo nas linhas do pensamento de Ernst Mach, outro físico de grande importância que teve influência no pensamento freudiano. Não que a concepção de Mattos esteja errônea, em absoluto. Há apenas uma constatação que tenta-se fazer de que, talvez, seria mais cirúrgico nomeá-lo como dinâmico.

Explica-se. A argumentação - vê-se nele o ponto mais crucial de toda a base deste trecho do trabalho - de Freud para sua aplicabilidade do princípio de estabilidade fechneriano é colocada como uma tendência dos "neurônios a se desembaraçar das quantidades (de energia)" (FREUD, 1985a/1996, p.348). Toda essa "movimentação" dos neurônios (Trägheitsprinzip), aponta com clareza a natureza fisicalista do conceito apontado por Freud (ASSOUN, 1983). Assim, enxerga-se que não é uma questão de funcionalismo - por mais que também se trate de como as coisas funcionam internamente -, mas de uma dinâmica interna de desembaraçamento das quantidades de excitação que transitam ininterruptamente dentro do corpo do homem.

Aqui se tem mais uma demonstração de como é razoavelmente tranquilo para Freud a aplicabilidade da física dentro de sua explicação do funcionamento neuronal. Assoun aponta que o princípio neuronal acima demonstrado é "violentamente paradoxal do ponto de vista biológico, onde intervém a ideia de conatus" (ASSOUN, 1983, p.173). O conatus é uma concepção filosófica cara a autores como Descartes, Leibniz, Spinoza, entre outros, para indicar uma inclinação inata das coisas, ou dos seres - no caso da biologia - , de continuar a existir, uma espécie de impulso para um autoimprovement. Tal afirmação de Assoun aparece, de certa forma, solta em seu trabalho. Difícil tarefa - e até intrusiva, pode-se dizer - tentar desembaralhar o que esse autor estaria querendo dizer com o conatus biológico. Abstendo-se de opinar nessa direção, apenas serão propostos dois grandes caminhos interpretativos que podem ser tomados por essa ponte.

O primeiro coloca-se como lamarckiano, ou seja, uma tendência inata dos seres de continuar a existir, de manterem-se evoluindo, entendendo esse impulso como algo diretamente ligado a inclinações naturais, dadas, postas, axiomáticas. O outro grande caminho pode-se denominar darwiniano, a saber, um conatus ambiental, que advém de uma particularidade do funcionamento interativo com o meio ambiente, tendo, sim, essa tendência,

porém colocado em outras fontes que não sejam colocadas como volição própria ao organismo.1
Crê-se que o próprio Assoun, minucioso pesquisador, sabia das tortuosidades do que poderia advir de uma continuação acerca deste assunto. Utilizando-se de tal sabedoria, evita-se colocar palavras na pena freudiana, deixando, apenas, trilhas que possam elucidar o caminho de um pesquisador municiado de conhecimentos mais profundos acerca do assunto.

O que se pode estabelecer como fixo é que a dinamização, se assim se pode nomear, do funcionamento neuronal é algo difícil de se enxergar do ponto de vista biológico, criando um imbróglio complicado. Assoun argumenta, acerca da dinâmica, a partir de Mayer, que "ela duplica a mecânica sem recusá-la" (ASSOUN, 1983, p.183). Toma-se a liberdade filosófica de traduzir tal frase e recolocá-la dentro dos caminhos propostos aqui. Assim, tem-se, "a dinâmica suprassume a mecânica2, recusando-a dialeticamente". Há, então, um exercício dialético freudiano em relação à física para compô-la dentro do bojo biológico. Assemelha-se um pouco com o que Schrödinger fez através da física quântica e a biologia molecular. Há que se lembrar que os dois autores são de Viena, não sendo de se admirar que ambos tenham, mesmo que através de caminhos distintos, traçados transposições teóricas semelhantes.

No Rascunho G, Freud propõe um quadro sobre a sexualidade que ele utiliza como instrumento para reler fenômenos psiquiátricos. Especificado em quadrantes - leitura nossa - ele aponta que o excesso de excitação em um, ou uma falta em outro, é o resultante de algumas patologias (FREUD, 1985a/1996). O que se pode retirar deste frutífero esquema - por mais que as associações que ele faça do mesmo não se delonga por muito - é a relação que há entre o objeto sexual externo e o caminho neuronal que este faz até o chamado "grupo psíquico", "lugar" onde se encontram as representações. Percebe-se, com clareza, o tanto que Freud tinha certeza acerca dos desvios que as representações fazem com a sexualidade, fazendo dela um "instinto3" desviado.
A curiosa linha do "limite somático-psíquico" é o que mais chama a atenção. Talvez seja essa linha hipotética que Freud desenha que lhe dá um embaraço frutífero em relação ao corpo. Aqui, diferencia-se claramente de Fechner, que supunha uma fórmula para o limiar de excitação corpóreo4. O que interessava Freud não era apenas o quanto de excitação era necessário para um corpo identificá-lo como tal, e sim, como isso perpassa essa tênue linha hipotética, peculiar à sua epistemologia, daquilo que é limítrofe ao somático e ao psíquico. Posteriormente, isso transformar-se-á no germe da teoria das pulsões.

Já no Rascunho I, temos Freud tateando o campo da enxaqueca e colocando-a como uma intoxicação por parte de uma retenção daquilo que, posteriormente, nomeou como libido. Em suas palavras: "Isto parece mostrar que a enxaqueca é um efeito tóxico produzido pela substância estimulante sexual quando esta não consegue encontrar descarga suficiente" (FREUD, 1985b/1996, p.261). Isso advém de uma antiga discussão entre Freud e Fliess, iniciada no Rascunho D, que demonstra o tanto que essa "energia" que sobrava dos neurônios, advindos da sexualidade, causava incômodo em Freud, fazendo com que ele caminhasse em trilhas explicativas para fenômenos corpóreos a partir de uma concepção dinâmica e não funcional com o meio ambiente. Cabe aqui uma referência à literatura - maneira muito próxima a Freud para metaforizar suas concepções - para melhor explicitar sua posição advinda dessa época: a história de Tristão e Isolda, muito cara aos europeus da Idade Média. O que interessa da história é a parte em que Tristão, excelente cavaleiro a serviço de seu tio, o rei Marcos da Cornualha, viaja à Irlanda para trazer a princesa Isolda para casar-se com ele. Durante a viagem de volta à Grã-Bretanha, os dois acidentalmente bebem uma poção de amor mágica, originalmente destinada a Isolda e Marcos. Ao tomá-la, ambos apaixonam-se perdidamente. Eventualmente, no final da história, os dois acabam morrendo lutando por este amor, e as plantas que nascem de seus túmulos crescem entrelaçando-se. É algo que se assemelha a essa concepção freudiana de que a substância sexual, originalmente destinada a uma descarga específica, fica desviada para outro caminho, causando-lhe, posteriormente, um malefício que se transmite de forma corpórea.

Em um outro texto, o Rascunho K, Freud afirma, categoricamente, que "existe uma tendência normal à defesa" (FREUD, 1985b/1996, p.268). Em outras palavras, isso é consistido em empurrar a energia psíquica evitando algum desprazer. Ele faz questão de afirmar que isso só é aplicado às lembranças e os pensamentos, e não às percepções.

Neste ponto é necessária uma rápida explanação sobre a diferenciação neuronal feita por Freud para explicar o psiquismo. Não se delongará neste ponto, deixando-se para o acesso direto ao texto freudiano para melhor compreensão, caso haja curiosidade. Freud separa, no Projeto, o funcionamento em três tipos de neurônios. O sistema φ seria o grupo "de neurônios atingidos pelos estímulos externos, enquanto o sistema ψ conteria os neurônios que recebem excitações endógenas" (FREUD, 1895a/1996, p.355). A partir desse ponto, pode-se observar que a função biológica do cérebro, para Freud, nessa época, era de um gânglio simpático, fato que ele argumenta como possibilidade de verificação posterior em termos empíricos de sua teoria (FREUD, 1895a/1996). Posteriormente, ele introduz um terceiro grupo de neurônios, os ω que são excitados com a percepção, e trazem as sensações conscientes, ou seja, um juízo de qualidade do estímulo, coisa que não é cabível ao sistema ψ, responsável por receber excitações provindas de φ e de fontes endógenas. Dessa maneira, ele pode ser nomeado como um "leitor" da recordação que não possui, em si, qualidade perceptual (FREUD, 1985a/1996).
Dessa maneira, a tendência à defesa é algo ligado às representações, afinal de contas, a qualidade do estímulo é uma questão interna. Em outras palavras, interpretar uma estimulação exterior não tem nada a ver com a maneira que ele é percebido, e, sim, "traduzido". A qualidade, dada pelos neurônios ω, fazem com que aquele circuito do Rascunho G possa girar. O que se tem, então, é a possibilidade de uma sobra de quantidades de excitação nos trâmites da percepção. Mais a frente, ao introduzir-se a Carta 52 tal ponto será melhor esclarecido.
A partir do momento em que esse sistema começa a se complexificar, é o que Freud argumenta, o "sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento somático - os estímulos endógenos - que também têm que ser descarregados. Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades como respiração, sexualidade" (FREUD, 1985a/1996, p.348-349). Há aqui o que se pode ser nomeado como uma espécie de proto-pulsão, uma prévia daquilo que, posteriormente, será transformada em umas das teorias mais complexas e, com o passar dos anos, mais controversas de Freud.
Todo esse desvio argumentativo foi feito para reforçar ainda mais o que já foi dito mais acima. Há, em Freud, algo que vai além do interacionismo corpo-ambiente. A tal linha do somático-psíquico é o que ele tenta colocar em termos biológicos. Tenta-se trazer uma série de pontos específicos, como este já demonstrado, para ilustrar essa afirmação base.
A Carta 52, acima citada, é como um ponto explicativo para essas possíveis excitações que "sobram" nas relações neuronais.
Freud estabelece, através de sua construção das "camadas" do registro psíquico, que "consciência e memória são mutuamente exclusivas" (FREUD, 1985b/1996, p.282). Não envereda-se por explicações meticulosas sobre cada uma das camadas, apenas faz-se um uso das três primeiras, como ponto argumentativo. A primeira, W [Wahrnehmungen (percepções)] são neurônios que iniciam a percepção, não possuindo nenhum caráter conservador de memória, porém, são através deles que a consciência se liga. Apesar de toda a tentação que existe em se fazer toda uma descrição das aproximações e diferenciações existentes na neurociência moderna e sua concepção de memória de curto prazo, deixa-se ela para uma outra oportunidade. A segunda, Wz [Wahrnehmungszeichen (indicações de percepções)] são onde ficam os registros iniciais da percepção. A terceira, o Ub [Unbewusstsein (inconsciência)], é o registro dos traços que já são capazes de fazer correspondência com lembranças conceituais, ou seja, há, neste registro, uma possibilidade associativa, maleável, mutacional.
É interessante ver que as camadas Wz e Ub são nomeadas de "registros", categoria que não valem para o W. Tal palavra - fixierung - é de difícil tradução para o português. Altamente utilizada no caso Dora, na Interpretação, e nos Três ensaios, pode ser traduzido, como Stratchey aponta, como uma fixação, uma parada no desenvolvimento. Assim, por assimilação lógica, ao se registrar, fixa-se. E, ao fazê-lo, algo se perde da percepção inicial, incapaz de ser conservado em memória. É precisamente neste ponto que a linha do somático-psíquico, novamente, impõe-se como questão a Freud.
Então, o que se pode retirar desse trecho da Carta 52 é que, assim que se registra algum traço, abre-se um gap intransponível entre as percepções e o registro das mesmas. Haverá, aí, eternamente um erro interpretativo, uma falha na tradução. Freud aponta que isso é o que se "reconhece clinicamente como recalcamento" (FREUD, 1985b/1996, p.283).
Isso causa um nó na intuição freudiana. Posteriormente, na Carta 75, ele aponta que "muitas vezes suspeitei de que alguma coisa orgânica desempenhava um papel no recalcamento" (FREUD, 1985b/1996, p.319). Mais adiante em sua obra, ele - em uma nota de rodapé do Mal-estar - teoriza esse recalcamento orgânico advindo da nossa aquisição da posição bípede, sendo feito no sentido do olfato e passando para a visão como sentido mais crucial para a atração sexual. Essa associação foi claramente retirada da obra darwiniana A descendência do Homem (1871/2002), apesar de não estar propriamente citada e trabalhada. Novamente, o que se impõe perante nós é esse limite, um recalque de algo orgânico? Um movimento psíquico que intervém no somático, ou o caminho contrário? Tal ponto de difícil acesso é altamente contornado por Freud, mesmo que ele não o nomeie diretamente em todas as vezes que o faz. É curioso observar que sua esperança para uma possível solução desse problema residia-se em Fliess, como nos aponta a Carta 66: "As questões organológicas esperam de você uma solução: nestas, não fiz nenhum progresso" (FREUD, 1985b/1996, p.308).

Freud continua, no Projeto, seus questionamentos. Se todo esse problema advém com a qualitatividade dos neurônios ω, a partir de uma complexificação, porque isso acaba em um erro de tradução, em uma espécie de "pane" no sistema? Ser punido pela evolução parece ser algo que incomoda Freud, a ponto de dizer que "não é possível sugerir qual terá sido o valor biológico dos neurônios ω" (FREUD, 1985b/1996, p.364). Para a teoria darwiniana, isso não é tanto uma questão. O "boom" evolutivo que se consegue em alguns nichos ecológicos podem ser úteis apenas naquela situação, como as colorações em alguns pássaros das ilhas de Galápagos. Talvez, tais animais seriam presas fáceis em outros ambientes, mas não naquele. O surgimento de um esquema qualitativo neuronal pode ter tido alto valor evolutivo à época do aparecimento. Eventualmente, a possibilidade de consciência fez com o homem pudesse utilizar-se dos ambientes, e não apenas o caminho contrário. Tal complexificação continuou a se dar, mesmo com a mudança desse suposto nicho ecológico hipotético da criação do homem.
Se fosse possível, a lista de citações e entrelaçamentos das obras iniciais de Freud e sua questão com a limítrofe região do somático e do psíquico ficaria ainda mais extensa. Contudo, crê-se que já há pontos suficientes para que se possa compreender como esse atravessamento era impiedoso nas construções freudianas. Não que isso seja encarado como algo negativo, em hipótese alguma. É justamente por insistir nesse ponto que toda sua originalidade em relação ao corpo e, por ligação, com a biologia, começam a tomar corpo, se é permitido o gracejo.
A fineza com que ele encara isso, principalmente na Carta 52, nos dá esse corpo dinâmico. Um corpo que vai além das funções, das ligações óbvias e que dá brecha para algo de outra ordem que não seja do interacionismo puro e simples. Freud consegue, de maneira magistral, neste início de sua obra, introduzir o ambiente e o indivíduo sem propor uma direção ou um favorecimento específico em qualquer um dos lados. Sua maneira de enxergar esse corpo - e, crê-se, ao fundo ele sabia que fazia algo diferente da biologia que aprendera na universidade - é peculiar.
- O corpo erógeno/histérico O corpo erógeno/histérico O corpo erógeno/histérico O corpo erógeno/histéricoO corpo erógeno/histéricoO corpo erógeno/histérico O corpo erógeno/histérico O corpo erógeno/histéricoO corpo erógeno/histéricoO corpo erógeno/histérico
Este ponto do trabalho aparece como um combinado de duas instâncias do ensino freudiano, a questão das zonas erógenas e da histeria.
Dessa forma, escolhe-se tal tema pois, juntos, consistem na démarche freudiana acerca de sua concepção do funcionamento do corpo, ou melhor, da função do corpo na psicanálise.

Diz-se função pois o que será demonstrado é que, para Freud, há uma apropriação por parte da histeria dos eventos corporais biológicos e, para isso, há, anteriormente, uma erogenização do mesmo.
O que se pretende no decorrer deste trecho é demonstrar que, através da histeria, Freud faz uso da biologia, mais especificamente de Darwin, para descrever um dos mecanismos da formação dos sintomas conversivos histéricos. Há aqui, então, uma articulação específica do que é nomeado nesta dissertação de Aufhebung freudiana, e de sua maneira singular de enxergar o corpo.
Sabe-se que o leque de possibilidades de textos freudianos são extensos para tal assunto. Visando a um recorte mais específico, escolhem-se textos ligados ao início da psicanálise e, principalmente, seus primeiros casos de histeria. É sabido, também, que não se pode tratá-los de maneira conclusiva, tendo em vista toda a extensão de sua obra. Contudo, em se tratando do objetivo em questão, pode-se afirmar que pouca coisa se modificou durante seu percurso, sendo a apropriação dos fenômenos biológicos do corpo por parte da histeria, uma tônica que persiste durante seus escritos.
Parte-se, então, de uma explanação do corpo erógeno, como uma espécie de superfície para, posteriormente, abarcar alguns exemplos de casos clínicos de histeria dados por Freud, a fim de demonstrar que o corpo histérico é um corpo simbolizado, obedecendo a funções de outra ordem, não necessariamente ligadas à biologia.
Explicita-se o que foi apontado acima com uma citação freudiana, no prefácio da terceira edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade:

Junto a sua total dependência da investigação psicanalítica, devo destacar, como característica desse meu trabalho, sua deliberada dependência da investigação biológica. Evitei cuidadosamente introduzir expectativas científicas provenientes da biologia sexual geral, ou da biologia das espécies animais em particular, no estudo da função sexual do ser humano que nos é possibilitado pela técnica da psicanálise. A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode apurar sobre a biologia da vida sexual humana com os meios acessíveis à investigação psicológica; era-me lícito assinalar os pontos de contato e concordância resultantes dessa investigação, mas não havia por que me desconcertar com o fato de o método psicanalítico, em muitos pontos importantes, levar a opiniões e resultados consideravelmente diversos dos de base meramente biológica. (FREUD, 1905/1996, p.125)

Continuando o raciocínio - que não necessita de acréscimos sobre sua construção, visto ser de clareza singular, comum à Freud - ele afirma que, para empreender tal trabalho, deixou-se de lado os fatores disposicionais, focando-se naquilo que lhe interessava, a ontogenia. É digno de nota que ele ainda apresenta que o acidental - aquilo que provém da história do indivíduo - "desempenha, na análise, o papel preponderante, sendo esta dominada por ele quase por completo" (FREUD, 1905/1996, p.125). Freud deixa muito claro que o que é de interesse da psicanálise tem a ver com aquilo que é construído durante a história em se tratando de psicanálise. Pode-se dizer que ele coloca as elucubrações ligadas à filogenia ou às disposições biológicas em questão em algum caso - por mais que, eventualmente, ele se aventure em algumas, vide a discussão do coito parental do homem dos lobos - como algo que "ultrapassa amplamente o campo de trabalho da psicanálise" ((FREUD, 1905/1996, p.125).
Para ilustrar tal ponto, pega-se o trecho em que ele diz sobre a degeneração. Para além da discussão sobre o peso social do termo - isso Freud já o faz em sua construção -, ele demonstra que há dois pontos irretocáveis para tal classificação: a conjugação de vários desvios relacionados à norma e a capacidade de funcionamento e sobrevivência gravemente prejudicada (FREUD, 1905/1996). Em nota de rodapé, diz o quão diminuta é a importância prática de tal diagnóstico. Mais à frente, ele aponta que, se há algo inato nessa condição, ela é "algo inato em todos os seres humanos, embora, enquanto disposição, possa variar de intensidade e ser acentuado pelas influências da vida" (FREUD, 1905, p.162). O que Freud quer apontar, novamente, é que o importante é a construção da história de vida do sujeito perante tais "inclinações biológicas".
Utilizando-se dessa concepção, pode-se trocar o termo - tendo em vista sua inutilidade prática - e torcê-lo de acordo com o restante do trabalho construído por ele. O que se observa é que a capacidade de funcionamento e de sobrevivência, tal como vista nos animais, de todos os seres humanos é gravemente prejudicada, não sendo algo peculiar aos degenerados. Em outras palavras, pode-se trocar tal palavra, degenerados, por desfuncionais, para melhor acuracidade com o objetivo do trabalho. O que se quer dizer é que, em função de todas as disposições em jogo durante a formação do ser humano, mais especificamente a capacidade de representar as coisas, faz com que suas funções orgânicas estejam, na verdade, em desfunção.
Esse desajuste primordial - ou melhor, constitutivo - é bem explicitado quando ele fala sobre as pulsões sexuais. Para Freud, a disfunção crucial está diante das pulsões sexuais e sua relação com os objetos sexuais. Em suas palavras:
Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em consequência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. (FREUD, 1905/1996, p.140)
É clara a disfunção básica que Freud aponta entre a pulsão sexual e seu objeto. A normalidade, como ele chama, traz um engodo que faz parecer que há uma ligação natural,

biológica, já estabelecida, entre a pulsão sexual e seu alvo. Ele ainda reforça: "é provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos deste" (FREUD, 1905/1996, p.140). Sendo assim, nada que venha a ser tratado a partir da sexualidade tem destino prévio, sendo construído de maneira ímpar por cada indivíduo. Assim, toda escolha objetal tem, como a frase já denuncia, um posicionamento. Dessa maneira, a escolha homossexual, por exemplo, é tão legítima quanto a heterossexual, entendido no sentido de que não há nenhum guia naturalizador para o objeto que possa direcionar essa seleção.
Esse ponto já é denunciador de sua posição perante a biologia. Freud aponta, como já foi citado, que ele tentou não introduzir as discussões sobre a biologia sexual ou a etologia durante seu trabalho. Ele o disse pois sabia que fazia algo diferente. O que se segue, em seu trabalho dos Três ensaios, é uma biologia diferente, a biologia freudiana.
Nesta biologia, toda a maturação constitutiva do ser e seu desenvolvimento, passa por essa pulsão sem destino pré-fabricado. A partir daí que as zonas erógenas apresentam seu papel crucial para a relação do homem com seu corpo. Esse papel, Freud o diz: "é imediatamente perceptível. Elas se comportam em todos os aspectos como uma parte do aparelho sexual" (FREUD, 1905/1996, p.160). Em outras palavras, as zonas erógenas funcionam como aparelhos acessórios, substitutos da genitália.
Em outra nota de rodapé, Freud aponta que não há uma exigência de "uma simultaneidade total da formação anatômica com o desenvolvimento psíquico" (FREUD, 1905/1996, p.167). O que se pode afirmar, a partir disto, é que o caminho da formação humana é permeado pelo obstáculo na tangência entre somático e psíquico. Em outras palavras, um eterno desajustamento entre aquilo que é somático e aquilo que é psíquico, sendo esse ponto, tomando as afirmações do início desse trecho, o que interessa ao tratamento da psicanálise. Ela só existe porque há esse "mau funcionamento" constitutivo.

É interessante - e aqui se tem bem explícita a superação, do ponto de vista dialético, de Freud de concepções já consolidadas na biologia - que as necessidades de sobrevivência não desaparecem, elas continuam existindo, porém de maneira peculiar. Freud o diz: "a princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas" (FREUD, 1905/1996, p.171). A pulsão sexual, de certa forma, pode ser colocada como oportunista. Freud aponta que há algumas zonas erógenas que são "predestinadas biologicamente" em função das mucosas que exercem uma possibilidade de obtenção de prazer superior às outras superfícies da pele. Porém, sua reflexões demonstraram a possibilidade de "a propriedade de erotogenia a todas as partes do corpo e a todos os órgãos internos" (FREUD, 1905/1996, p.173). Dessa forma, este é o corpo, mas o corpo erogeneizado.

Freud aparenta, como nos aponta Santiago (2001), transitar entre dois pontos constitutivos de sua elaboração teórica acerca da sexualidade humana. Ao mesmo tempo em que empreende sua démarche através do sonho da injeção de Irma, ele, eventualmente, sucumbe à esperança de seu próprio ideal de ciência de que, um dia, aquilo que é construído por vias metapsicológicas, possa ser abarcado em termos biológicos (SANTIAGO, 2001). Nas palavras freudianas:
todas as nossas concepções provisórias, em psicologia, deverão um dia ser colocadas sobre bases orgânicas. Parece, então, provável que 'haja certas substâncias e processos químicos que produzem' os efeitos da 'sexualidade' e permitem a continuação da vida do indivíduo na da espécie. Verificamos essa probabilidade, substituindo essas determinadas 'substâncias químicas' por determinadas forças psíquicas (FREUD, 1914/1996, p. 97)

É possível observar, com clareza, o tanto que Freud tinha esperança de que tudo isso que construía pudesse ser transformado em biologia. Contudo, por outro lado, seu sonho de injeção de Irma e toda a Interpretação dos sonhos, apontam para outra direção. Assim, pode-se classificar duas concepções freudianas, uma a partir da energética e outra substancialista. Pela primeira, pode-se colocar a construção simbólica do dinamismo psíquico expresso pelo sonho de injeção de Irma. De outro lado, tem-se a hipótese de substancialismo que supõe uma possibilidade de cifração a tudo isso que ele constrói no campo psíquico através de conceitos naturalistas, biológicos (SANTIAGO, 2001). O que se tem aqui é a maneira específica de trabalho teórico de Freud em sua essência: a habilidade de conseguir teorizar duas coisas antagônicas de maneira simultânea.

Escolhe-se a primeira opção - a energética - como representativa da posição freudiana por duas razões. A primeira já é amplamente explorada no decorrer do trabalho e diz respeito à colocação do próprio Freud de que as teorizações sobre os porquês biológicos das afecções psíquicas e, necessariamente, do corpo, estão para além do interesse da psicanálise. Por esse viés, ele estabelece o raio de ação de sua disciplina, levando o raciocínio para a segunda razão pela qual adota-se sua posição energética como a condizente com seu trabalho. A segunda razão é de que Freud só evoca as posições biológicas e filogenéticas, que, eventualmente, atravessam suas produções, quando sua instrumentalização teórica parece não ter mais alcance. Para ilustrá-lo, pode-se pegar toda a discussão do Homem dos Lobos sobre o coito parental, e muitas outras durante sua obra. Em se tratando do que é discutido nesse trecho, utiliza-se sua formulação sobre a influência dos fatores temporais na sexualidade. Freud diz:

"a ordem em que são ativas as diversas moções pulsionais, bem como o lapso de tempo em que podem manifestar-se antes de sucumbir a influência de uma nova moção pulsional emergente, ou a algum recalcamento típico, parecem filogeneticamente determinados" (FREUD, 1905/1996, p.227, grifo nosso). Faz-se um acento sobre o verbo parecer para demonstrar o que se entende pela insegurança freudiana em apresentar suas colocações sobre a determinação filogenética em alguns eventos da vida psíquica. Sabe-se que isso é repetido em vários pontos, com o mesmo tom de incerteza e desconfiança.
O que se propõe é que, diante da intransponibilidade de alguns pontos, Freud acaba se inclinando - não sem ressalvas - às concepções biológicas. Porém, é como se uma outra concepção nele forçasse a superação dialética do ponto de vista biológico. Outra citação aparece como representativa das duas razões explicitadas, ainda no âmbito dos fatores temporais: "não estamos sequer em condições de fornecer indícios das causas dessas complicações temporais dos processos de desenvolvimento. Abre-se aqui o panorama de uma densa falange de problemas biológicos, e talvez também históricos, dos quais nem ao menos aproximamos o bastante para travar batalha com eles" (FREUD, 1905/1996, p.228).
O que se depreende dessa colocação é que, além de irem a uma direção distinta do trabalho analítico, são também pontos obscuros que não valem a pena travar batalha. Em outras palavras, reforça-se o que já foi exposto, o corpo da psicanálise freudiana é diferente do biológico. É disso que boa parte de seus escritos iniciais tratam.
Passa-se para as construções que ele faz a partir da clínica com as histéricas. É importante ressaltar que foi a clínica, os impasses e questões que esta lhe impôs, que fizeram sua concepção de corpo pudesse ser diferenciada daquilo que era produzido no campo das ciências médicas e biológicas.
A questão básica da histeria - em se tratando do corpo - é expressa por uma relação que não passa pela correspondência imediata do instinto com um objeto previamente dado. Em suas palavras: "consiste apenas no que se poderia denominar uma relação 'simbólica' entre a causa precipitante e o fenômeno patológico - uma relação do tipo da que as pessoas saudáveis formam nos sonhos" (FREUD, 1893/1996, p.41). O primeiro ponto que pode ser retirado dessa citação é colocar, entre aspas, o termo simbólico, para dizer da relação entre a causa precipitante e o fenômeno patológico. Tal colocação denota o cuidado que possuía ao dizer de um corpo que perpassa por uma relação representativa. A causa precipitante por ele demonstrada pode ser traduzida como um "ensejo biológico" por parte do organismo, algo como uma fenda entre os fenômenos orgânicos que dão oportunidade para o fenômeno patológico ter materialidade para se manifestar em meios que vão além das relações representativas. É o corpo sendo transformado em símbolos, como um terreno repleto de adubo orgânico para que a semente simbólica possa tomar forma, da mesma maneira que é feito nos sonhos, quando o corpo toma formas desenvolvidas pela palavra, como a angustiante cena da garganta de Irma, relatada pelo próprio Freud.
No caso da Sra. Emmy Von N., Freud demonstra o porquê de tanto tempo ter sido necessário para identificar as causas psíquicas das afecções orgânicas da histeria. Ele diz: "ora, estamos habituados a verificar que, na histeria, uma parte considerável dessa 'soma de excitação' do trauma é transformada em sintomas puramente somáticos. Foi essa característica da histeria que por tanto tempo atrapalhou seu reconhecimento como um distúrbio psíquico" (FREUD, 1893/1996, p.116). Freud diz que o excesso de excitação que o trauma evoca, dentro da estrutura histérica, faz com que esses sintomas sejam transformados em questões somáticas. Em outras palavras, aquilo que não é possível de ser lidado a partir da elaboração psíquico é convertido em inscrições orgânicas.
Ao relatar as dores reumáticas de Emmy, Freud denuncia: "é bem possível que essas dores também se tenham justificado, originariamente, em bases orgânicas, mas foram depois adaptadas para as finalidades da neurose" (FREUD, 1893/1996, p.120). Aqui, ele é bem claro para afirmar que algumas afecções orgânicas anteriores à paciente ficaram marcadas como um traço, um trajeto, possível para a intromissão das finalidades da neurose. O que Freud quer dizer é que o corpo histérico fica à mercê das finalidades da neurose, e não das inscrições biológicas que, supostamente, guiariam o mesmo para caminhos que, necessariamente, visariam à sobrevivência.
É um corpo de servidão aos caprichos das questões psíquicas. Não é excessivo dizer que esse corpo serve como um hospedeiro para esse parasita simbólico, as representações. O vírus das representações - continuando o exercício da metáfora biológica - toma o corpo do homem, apresentado pela histeria, e faz uso daquilo que lhe é conveniente de uma maneira peculiar.
Ainda no caso de Emmy, Freud discute sua gagueira, aquilo que ele chama de inibição espástica da fala. Eram assobios, seguidos de tiques, que lhe assaltavam durante a fala. Freud aponta que sua tentativa convulsiva de inibição dos órgãos da fala fez com que ela transformasse o acontecimento da gagueira em um símbolo na sua memória (FREUD, 1893/1996).
Ele marca que Emmy sofria de grave hereditariedade neuropática. Neste ponto, ele trabalha a possibilidade de isso advir de uma família ligada à neuropatia e, também, de uma remota possibilidade orgânica. Não há resolução neste ponto, mas, novamente, ele afirma que "a predisposição sozinha não faz a histeria" (FREUD, 1893/1996, p.129);
Em outro caso, o de Miss Lucy R., aponta o método histérico de defesa, no qual é necessária a posse de uma tendência específica, segundo ele relata, e "reside na conversão da excitação em uma inervação somática" (FREUD, 1893/1996, p.149). Ele usa a descrição de seus distúrbios corporais para reafirmar aquilo que já é demonstrado durante este trabalho.
No caso da srta. Elizabeth Von R., que foi encaminhado a Freud por um médico, há uma impressão interessante acerca das colocações desse outro médico de que é perceptível que "ele é da opinião de que a linguagem é pobre demais para que ela encontre palavras para descrever suas sensações e de que essas sensações são algo único e até então desconhecido do qual seria inteiramente impossível dar uma descrição completa" (FREUD, 1893/1996, p.162). Ele apresenta que aquilo que não se dá conta por meio de símbolos, o corpo interpõe-se como campo de sentido.
Ele prossegue - ao dissertar sobre a paralisia de sua perna - dizendo que "quando se pressionava ou beliscava a pele e os músculos hiperalgésicos de suas pernas, seu rosto assumia uma expressão peculiar, que era antes de prazer do que de dor" (FREUD, 1893/1996, p.163). Aqui, há um exemplo claro de que as zonas erógenas podem ser qualquer parte do corpo, qualquer órgão, mesmo havendo uma primazia biológica das mucosas. No caso de von R., sua perna transformou-se em uma zona histerogênica, na qual o prazer do manuseio apontado por Freud, ficava claro. Tal parte de seu corpo é transformada em um substituto do órgão genital, causando-lhe um prazer voluptuoso. É claramente representado aqui a desfunção corporal que a simbolização histérica instaura no corpo da paciente. O prazer que, outrora ligado às supostas inclinações biológicas da reprodução e perpetuação da espécie, ou do gene, dependendo da inclinação teórica da biológica, é deslocado para uma parte corporal que nada tem a ver com a reprodução, desnaturalizando toda a relação que ela tem com a sexualidade.
Seu distúrbio na perna, Freud o relaciona a uma afecção reumática branda anterior aos seus desenvolvimentos histéricos. "Pude estabelecer que esse distúrbio orgânico, que foi o modelo copiado em sua histeria posterior, teria de ser situado, de qualquer modo, antes da cena em que ela voltara da festa acompanhada." (FREUD, 1893/1996, p.172). Freud afirma que o circuito histérico tomou posse dessa leve afecção orgânica no momento em que "o círculo de idéias que abrangia seus deveres para com o pai enfermo entrou em conflito com o conteúdo do desejo erótico que ela estava sentindo à época. Sob a pressão de intensas autocensuras, ela se decidiu em favor do primeiro e, ao fazê-lo, provocou a dor histérica" FREUD, 1893/1996, p.187). Ele diz que não consegue visualizar uma ação intencional e voluntária, a nível consciente, por parte da paciente, para fazer conversões dessa natureza. Para isso, ele supõe que haja uma inclinação, uma tendência ligada a esse sentido. Tal "predisposição" - coloca-se entre aspas para não deixar transparecer que seja biológica - ele a nomeia como complascência somática. Freud diz, no caso Dora, que "todo sintoma histérico requer a participação de ambos os lados (psíquico e somático). Não pode ocorrer sem a presença de uma complascência somática fornecida por algum processo normal ou patológico no interior de um órgão do corpo ou com ele relacionado" (FREUD, 1905/1996, p.47/48). Este fenômeno não se completa, a não ser que haja algum sentido (FREUD, 1905/1996).
Voltando ao caso de Elizabeth, quando diz sobre sua dor no calcanhar, Freud diz que:
Tudo o que se poderia alegar em favor da simbolização em que o medo que dominou a paciente ao dar os primeiros passos escolheu dentre todas as dores que a afligiam na época, a dor específica que era simbolicamente apropriada a dor no calcanhar direito, e a transformara numa dor psíquica, imprimindo-lhe uma persistência especial. (FREUD, 1893/1996, p.200)
Aproximando a esse evento da dor no calcanhar, ele a coloca sua lancinante dor de cabeça, que ligava à sua fala de um olhar penetrante da avó que ia diretamente ao seu cérebro. "Neste caso, não posso discernir outra coisa senão o mecanismo da simbolização, que tem seu lugar, em certo sentido, a meio caminho entre a auto-sugestão e a conversão" (FREUD, 1893/1996, p.201). A conversão, Freud a separa da simbolização - aqui selecionada como melhor adequada aos objetivos do trabalho - colocando-a como um exercício de conflito e defesa, como um exercício de rechaçar um grupo de pensamentos, de maneira defensiva, convergindo para o corpo (FREUD, 1893/1996).
Freud finaliza o caso de Elizabeth apresentando que a histérica toma, de maneira literal, as expressões simbólicas. Ele o diz:
Sou de opinião, contudo, que quando um histérico cria uma expressão somática para uma idéia emocionalmente colorida, através da simbolização, isso depende menos do que se poderia imaginar dos fatores pessoais ou voluntários. Ao tomar uma expressão verbal ao pé da letra e sentir uma 'punhalada no coração' ou uma 'bofetada no rosto' após um comentário depreciativo vivido como um fato real, o histérico não está tomando liberdades com as palavras, mas simplesmente revivendo mais uma vez as sensações que a expressão verbal deve sua justificativa. (FREUD, 1893/1996, p.202)
Freud utiliza-se do trabalho de Darwin, A expressão das emoções nos homens e nos animas, como ponto exemplificador daquilo que a histérica faz, contudo, à sua maneira. Quando Darwin aponta que o cachorro abana o rabo para seu dono, ao vê-lo, por um excesso de excitação que toma vias corporais por não ter aparatos diferenciados, como os símbolos, para dissipar tal excessividade, Freud vê um protótipo do que o ser histérico faz com seus conflitos psíquicos. A apropriação de Freud da biologia darwinista é de que, na histeria, pega-se as expressões específicas catalogadas por Darwin e faz, com elas, um exercício de individualização, de aplicabilidade à sua própria história e de seus próprios conflitos, transformando-as em instrumentos de sentido, a partir de fenômenos corporais.
- O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsionalO corpo libidinal/pulsional O corpo libidinal/pulsional
Neste ponto, demonstra-se a construção que Freud faz na metade de seu percurso teórico, tendo como base a teorização do narcisismo e da libido, com a primeira teoria das pulsões. Faz-se isso com intuito de tomar o raciocínio exposto no trecho anterior, referente às diferenças entre o instinto biológico e a pulsão, e demonstrar como Freud o aplica em sua concepção de corpo nomeada aqui, para intuito especificamente explanatório, de libidinal/pulsional.
A escolha pela combinação destes dois termos - libido e pulsão - em um só trecho advém da proximidade que eles tem entre si. Freud, em suas conferências finais, as aproxima: "Tenho o projeto de levá-los, a partir de hoje, ao domínio da teoria da libido ou doutrina das pulsões, na qual muitas coisas tomaram igualmente uma nova configuração" (FREUD, 1933a/1996, p.94). É possível afirmar que ele toma a teoria das pulsões e a teoria da libido como quase sinônimas (FULGÊNCIO, L., 2002).
O que se pretende aqui é apontar que o corpo freudiano é habitado por forças e fluxos energéticos de uma outra ordem diferente das biológicas. Seu funcionamento é guiado, majoritariamente, por estes movimentos energéticos conceituados pelos termos que aqui serão descritos. Assim, se no trecho anterior, foi demonstrado como a histeria constrói um corpo peculiar, através do uso das representações e sua ligação com o corpo, neste ponto, será feita uma discussão sobre o que está funcionando, do ponto de vista econômico, por trás dessa apropriação corporal.
"Libido é um termo vindo da doutrina das pulsões, já utilizado nesse sentido por A. Moll (pesquisas sobre a libido sexualis, 1898) para designar a expressão dinâmica da sexualidade, introduzida na psicanálise pelo autor destas linhas" (FREUD, 1923/1996, p. 255). Neste trecho fica clara a proximidade dos dois conceitos, ainda mais com o acréscimo de sua troca de posições da visão dinâmica para a econômica (FREUD, 1916-17/1996).
A especificidade da libido em relação aos fenômenos ligados à sexualidade - razão de sua grande discordância com Jung que, segundo a leitura de Lacan, fixava-se num emparelhamento da libido com as questões imaginárias (PINTO, 2007) - é algo que ele sustenta até o final de sua obra. A constância do impulso manifesto nas pulsões sexuais através da libido é radicalmente incompatível, também, com as concepções de caráter periódico, ligadas à menstruação, das chamadas "toxinas sexuais" tal como teorizadas por Fliess (FREUD,1916-17/1996).
Nessa época, Freud diferenciava dois tipos de catexias: as provindas do ego, e as outras, ligadas à autopreservação. É digna a diferenciação, aqui, para demonstrar exatamente sobre o que se trata a libido e como ela faz esse corpo econômico freudiano. Então, as catexias de energia que o ego "dirige aos objetos de seus desejos sexuais, nós a denominamos 'libido'; todas as outras catexias, emanadas dos instintos de autopreservação, denominamos 'interesse'" (FREUD, 1916-17/1996, p.415). Apesar desta diferenciação cair em Além do princípio de prazer, aqui, ela ainda vigora. Sabe-se, também, que Freud coloca as primeiras satisfações sexuais auto-eróticas no campo das experiências das funções vitais, sendo assim, emparelhadas, de início, com a finalidade de autopreservação. Posteriormente, desviam-se em função do excesso libidinal nas catexias, evitados pela função de não-adoecimento, que acabam sendo direcionadas para fora, causando, assim, essa separação (FREUD, 1914/1996).

Um exemplo claro das diferenças entre as duas está na transformação de sua insatisfação em ansiedade. Freud argumenta que "se a fome e a sede (os dois instintos de autopreservação mais elementares) estão insatisfeitos, o resultado nunca é a sua transformação em ansiedade, ao passo que a modificação da libido insatisfeita em ansiedade é, conforme vimos, um dos fenômenos mais bem conhecidos e mais frequentemente observados" (FREUD, 1916-17/1996, p.413). Dessa maneira, pelos seus efeitos também é possível inferir qual é a natureza da pulsão.
Se se compreende, especificamente, a libido como algo ligado à sexualidade, faz-se mister retomar o que é o conceito de sexualidade em Freud. Ele afirma que "sexualidade e reprodução não coincidem, pois é óbvio que todas as perversões negam o objetivo da reprodução" (FREUD, 1916-17/1996, p.325), e ainda são vistos como parte da sexualidade. Em outras palavras, a particularidade freudiana reside em não igualar sexual com aquilo que é genital, desnaturalizando, assim, a relação que o homem tem com sua sexualidade.
Este corpo econômico, por mais que se diferencie daquele dinâmico apresentado anteriormente, tendo em vista as novas formulações da teoria psicanalítica, não se desassemelha das afirmações em relação à biologia. Ele é colocado como uma nova maneira de se dizer aquilo que Freud sempre teve certeza no decorrer de seu percurso com a psicanálise, a saber, que o corpo é desajustado de suas funções biológicas através dos desvios da sexualidade.

A desnaturalização do corpo através da libido é demonstrada por Freud pelos desvios de investimento possíveis pela libido, ilustrada, como foi apontado acima, pela eleição de um objeto fixo sexual na perversão, através do fetichismo, para obtenção da satisfação sexual e desligando dela qualquer vínculo com a reprodução.
Freud, em Introdução ao Narcisismo (1914), aponta, com clareza, que aquilo que ele faz, em se tratando das pulsões sexuais e da teoria da libido é biologia, mas uma biologia freudiana:
Tento em geral manter a psicologia isenta de tudo que lhe seja diferente em natureza, inclusive das linhas biológicas de pensamento. Por essa mesma razão, gostaria, nessa altura, de admitir expressamente que a hipótese de instintos do ego e instintos sexuais separados (isto é, a teoria da libido) está longe de repousar, inteiramente, numa base psicológica, extraindo seu principal apoio da biologia (FREUD, 1914/1996, p.86)
Vê-se, neste ponto, como Freud se encontra divido entre suas descobertas clínicas e suas convicções teóricas provindas de sua base médica. Ao mesmo tempo que constrói algo estranho ao corpo biológico, ele, muitas vezes, malgré lui, é levado a algo que não seria de natureza biológica. Essa citação mostra o conflito freudiano em lidar com algo difícil de categorizar - visto ser uma construção nova - com suas visões ligadas à disciplina biológica.
O que Freud trabalha e nomeia como biologia raramente teve aceitação positiva no meio médico e, muito menos, no meio biológico. Pode-se tomar tal afirmativa freudiana como um dos pilares daquilo que é nomeado, aqui, como biologia freudiana, ou seja, o estudo dos desvios que a libido faz em seu desenvolvimento e como ela se embaraça com a função reprodutiva, mesmo que haja em seu ideal uma maturação completa da mesma. Ele completa essa visão de "biologia freudiana", afirmando que, como não havia esperança de alguma outra disciplina resolver as questões ligadas aos instintos para a biologia, só havia uma maneira de fazê-la, através "de uma síntese dos fenômenos psicológicos" (FREUD, 1914/1996, p.87). Em outras palavras, um corpo que é sintetizado por fenômenos psicológicos que fazem a sua formação biológica.
A título de curiosidade, Freud aponta também para um fator da libido e das pulsões sexuais : sua extrema plasticidade. Ao falar de uma relação de satisfação entre pulsões, ele diz: "Um deles pode assumir o lugar do outro, um pode assumir a intensidade do outro; no caso de a realidade frustrar a satisfação de um deles, a satisfação de outro pode proporcionar compensação completa." (FREUD, 1916-17/1996, p.348). É interessante observar que, hoje, esse é o mesmo princípio utilizado pelas neurociências ao dizer sobre a plasticidade cerebral e as ligações sinápticas. Não que eles estejam falando de uma mesma coisa, em absoluto. Mas

há, nesse ponto, uma clara reprodução da esperança freudiana de que, um dia, a psicologia das pulsões poderia auxiliar a biologia na construção de alguma coisa.
Retoma-se o ponto acerca da maturação libidinal no qual o homem deve direcionar seu desejo sexual a um corpo total, como já foi dito. Freud coloca que "a sexualidade é a única função do organismo vivo que se estende além do indivíduo e se refere à relação deste com sua espécie" (FREUD, 1916-17/1996, p.414). É neste afã do desenvolvimento da sexualidade que o ser humano deve encontrar seu caminho para a reprodução. É neste ponto que Freud afirma a pequenez da função de um organismo específico em relação à vida enquanto um todo. É aqui, também, que ele inicia sua trajetória com um autor da biologia August Weismann. Foi afirmado no capítulo anterior que Weismann, ao teorizar sobre a evolução, dividiu o corpo humano em soma e plasma germinativo, sendo o primeiro mortal e o segundo, imortal. Freud o diz:
o organismo individualizado, que propriamente se considera como a cosia principal, e sua sexualidade como um meio, igual a outro qualquer, de obter sua própria satisfação, é, do ponto de vista da biologia, apenas um episódio numa sucessão de gerações, um fugaz acréscimo a um plasma germinativo dotado de virtual imortalidade - como detentor temporário de um legado que lhe sobreviverá (FREUD, 1916-17/1996, p.414)
Ele não cita Weismann nesta primeira abordagem, deixando para fazê-lo mais adiante, em 1920, no Além do princípio de prazer, no qual irá explicitar a utilização específica que faz de sua teorização. O que se pode colocar, a partir dessa citação indireta de Weismann, é que Freud tem, para si, como demonstrado por sua fala, a certeza de que ele está fazendo biologia, mas de sua maneira.
Em relação à teoria da libido, o que faz com que seja acrescido à sua visão sobre o corpo? "O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna" (FREUD, 1923/1996, p.39). Ele acresce a essa fala a dor como um dos grandes desempenhadores do processo de construção corporal, através do conhecimento de nossos órgãos por meio de doenças dolorosas, levando à uma "idéia de nosso corpo" (FREUD, 1923/1996, p.39). É interessante observar que essa é uma das poucas passagens que Freud fala especificamente da construção de um corpo. Ele é, acima de tudo, uma superfície, um local de investimento libidinal como qualquer outro objeto disponível no mundo.
O corpo freudiano é uma superfície de investimento libidinal. É por isso que as histéricas, como foi abordado anteriormente, podem fazer uso de qualquer órgão e qualquer

parte do corpo para investir libidinalmente e fazer deles uma zona histerógena. Contudo, a noção de corpo ainda é mais expandida por ele. "O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal: não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (FREUD, 1923/1996, p.39).
Freud utiliza a figura do homúnculo cortical dos anatomistas para desenvolver seu raciocínio. Essa figura "fica de cabeça para baixo no córtex, estira os calcanhares, tem o rosto virado para trás e, como sabemos, possui sua área da fala no lado esquerdo" (FREUD, 1923/1996, p.39). Com essa figura ele quer demonstrar que há uma formação de imagem ligada a superfícies no cérebro humano para relacionar com o próprio corpo. Há, então, uma projeção específica e construída através das experiências sensórias na relação com o próprio corpo. Esse corpo é investido libidinalmente e, em função disso, tem suas funções desorganizadas, ou melhor, organizadas de maneira diferente daquela dita "natural".
Lacan também faz uso dessa figura em seu primeiro ensino, ligado ao imaginário, porém em outros caminhos (CAROSSI, 2012).
Freud aponta que a pulsão se diferencia de um estímulo em função da aplicabilidade de ambos. Melhor dizendo, a pulsão é um estímulo, porém apontada a um local específico, a mente. (FREUD, 1915/1996). Sua origem também é completamente específica, pois ele afirma que ela não advém do mundo exterior, mas de dentro do próprio organismo. Freud lista algumas características específicas das pulsões:
Um instinto, por outro lado, jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Além disso, visto que ele incide não a partir de fora mas de dentro do organismo, não há como fugir dele. O melhor termo para caracterizar um estímulo instintual seria 'necessidade'. O que elemina uma necessidade é uma 'satisfação'. Isso pode ser alcançado apenas por uma alteração apropriada da fonte interna de estimulação (FREUD, 1915/1996, p.124)
Há quem possa argumentar que isso pode se assemelhar aos arco-reflexos, porém Freud aponta que são naturezas diferentes, visto haver, nas pulsões, uma resposta específica e individual em cada situação, diferente da homogenização de respostas dada pelo reflexo. Mais à frente em sua obra, Freud diz que "nós representamos a pulsão como um certo montante de energia que impulsiona numa direção determinada" (FREUD, 1933/1996, p.96).
Ao dizer das pulsões, Freud, novamente, aponta que está caminhando dentro dos terrenos da biologia.
Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma pulsão' nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo (FREUD, 1915/1996, p.127)

Assim, a pulsão aparece como um conceito limítrofe. Se se traz a figura do homúnculo cortical novamente em discussão, é possível demonstrar que a relação que a mente estabelece com o corpo, por meio do homúnculo, é feito através das pulsões. É dela que se provém essa ligação entre aquilo que é somático e aquilo que é da ordem da representação. Novamente, Freud evoca a biologia da sexualidade para falar que seu funcionamento ultrapassa o indivíduo, colocando em jogo algo além, o idioplasma, o processo de geração da espécie.
A posição da pulsões é de uma ideia abstrata, um conceito fundamental convencional necessário à psicologia.
Em suas Novas conferências introdutórias, Freud diz que a teoria das pulsões é sua mitologia: "Aqui, também, devo retornar a algumas coisas de que lhes falei anteriormente. A teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são entidades míticas, magníficos em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los, nem por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de os estarmos vendo claramente" (FREUD, 1932/1996, p.98). Como se enxerga a proximidade da teoria das pulsões e da libido, pensa-se que a última pode também ser colocada no bojo dessa mitologia (FULGÊNCIO, L. 2002). Em outras palavras, tanto as forças psíquicas (pulsões) como as energias sexuais (libido), devem ser vistos como mitos, ou seja, conceitos que não possuem comprovação empírica ou experimental.
Ambos os conceitos, libido e pulsão, tem um valor heurístico na teoria psicanalítica. Freud afirmou que tinha a esperança de que a teoria da libido, o que ele chamava de "ideias provisórias", algum dia poderiam se basear em uma subestrutura orgânica. (FREUD, 1914/1996) Em outras palavras, o que Freud quer com estes termos "não é uma referência empírica objetiva, mas sim uma especulação teórica, de valor apenas heurístico, ou seja, útil para explica determinados fatos psíquicos" (FULGÊNCIO, L. 2002, p.102). Esse caráter transitório desses conceitos jamais foi transformado e, até hoje, pode-se dizer que essa "busca" ainda continua. A posição lacaniana, durante seu ensino, difere radicalmente desta, vale a ressalva (CAROSSI, 2012).
Dessa maneira, o que temos da posição de Freud em relação a estes conceitos é que a hipótese por ele escolhida possui a marca da provisoriedade: ela é a melhor ou a mais eficiente até o momento, até que algo melhor se apresente. "A metapsicologia pode ser considerada, portanto, como sendo um conjunto de ficções teóricas ou, como diz Freud, como uma supraestrutura especulativa (Spekulativer Überbau) da psicanálise" (FULGÊNCIO, L. 2002, p.109), sendo sempre aberta a transformações. Ao dizer dos métodos pelos quais Freud alcançou suas teorizações sobre suas construções metapsicológicas, ele diz que: "podemos

apenas dizer: ‘So muss denn doch die Hexe dran!’ — a Metapsicologia da Feiticeira. Sem especulação e teorização metapsicológica — quase disse ‘fantasiar’ —, não daremos outro passo à frente. Infelizmente, aqui como alhures, o que a Feiticeira nos revela não é muito claro nem muito minucioso" (FREUD, 1937/1996, p.241). Reforça-se o caráter mitológico exposto mais acima e de como pode-se construir que a "feitiçaria" freudiana, no que tange à biologia, através do conceito de corpo, faz dela uma concepção diferente, mitológica.
O caráter especulativo dessas teorias freudianas é o que dá forma à teorização peculiar dele sobre sua concepção de corpo e, eventualmente, a sua biologia. O fato é que esse corpo heurístico é a sua visão biológica, ou seja, uma influência dos fenômenos psicológicos, como ele colocou, em um corpo formado como superfície na mente humana. Santiago aponta que "não se deve buscar, nessas passagens, a simples confirmação da tese tão difundida do biologismo de Freud. A referência a esses processos orgânicos vai além de uma consideração biológica sobre a sexualidade" (SANTIAGO, 2001, p.83). O que se fez neste artigo é exatamente isso: não é adequar Freud à realidade epistemológica da biologia, mas dizer que ele faz uma outra coisa que não a biologia clássica, mas a psicanalítica, ou mais precisamente, biologia freudiana, produzida a partir de experiências clínicas. O aspecto biológico continua existindo em Freud, porém, não sem ressalvas, não deixando de ser, assim, uma biologia.


1 Para melhor esclarecimento deste ponto, reportar-se ao trabalho A Biologia Piscanalítica (CAROSSI, V. 2012)
2 Enxerga-se o mecanicismo como uma versão interacionista menos complexa do que o funcionalismo. Para esclarecimento melhor deste ponto, é possível remeter-se às obras de autores como Titchner e Skinner, por exemplo.
3 Já era nomeado, nessa época, de Trieb. Coloca-se entre aspas em respeito à tradução original

4 Tal fórmula é expressada em "S = K Log I" . Não é necessário delongar-se no assunto, valendo a indicação de sua obra: FECHNER, G. (1860/1966) Elements of psychophysics. Nova York: Holt, Rinehart, Winston, Inc.


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Recebido em: 15 de Setembro de 2015
Aceito em: 08 de Outubro de 2015



 
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