ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 23
Maio a Agosto de 2014
 
   
 
   
  Artigos  
   
     
 

DAS AGONIAS DE UM LUTA(DOR): BREVE PERCURSO NA PRÁTICA DE INSERÇÃO SOCIAL DE UM CAPS NA BAHIA
FROM THE AGONIES OF A FIGHT (PAIN): A BRIEF PATH IN THE SOCIAL INSERTING PRACTICE OF A CAPS IN BAHIA

 
     
 

Antonia Vieira Santos
Psicóloga, com especialização em Psicologia Social e em Saúde Mental,
Mestre em Ciências Sociais. Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
E-mail: s.antoniavieira@gmail.com
Herbert Toledo Martins
Cientista social, Mestre e Doutor em Ciências Sociais.
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) E-mail: herbet.ufrb@gmail.com



 

Resumo: Esse trabalho tem como objetivo compreender as representações sociais dos profissionais do CAPS I Ana Nery na cidade de Cachoeira/BA, sobre os modos de construção da inserção social no cotidiano de sujeitos em sofrimento psíquico da referida cidade. As categorias analíticas norteadoras do estudo recaem sobre os conceitos de Inserção Social e de Desinstitucionalização. A abordagem qualitativa foi o método mais adequado para a compreensão do objeto desta pesquisa, através do uso de observação e entrevistas semiestruturadas. Para analise dos dados lançou-se mão do método da Análise do Discurso (AD) de Michel Pêcheux. O resultado da pesquisa revela os desafios, avanços e complexidades que se apresentam no investimento cotidiano nas ações de inserção social para usuários de CAPS e as agonias e lutas que uma equipe CAPS enfrenta cotidianamente para sustentar as ideias antimanicomiais em suas práticas nesse dispositivo de desinstitucionalização.


Palavras-chave: Saúde mental; Inserção Social; Desinstitucionalização.

Abstract: This work aims to understand the social representations of the professionals of CAPS I Ana Nery in the city of Cachoeira / BA, on the construction of social insertion in the daily life of subjects in psychic suffering of said city. The analytical categories of the study fall on the concepts of Social Insertion and Deinstitutionalization. The qualitative approach was the most appropriate method for understanding the object of this research, through the use of observation and semi-structured interviews. To analyze the data, Michel Pêcheux's Discourse Analysis (AD) method was used. The result of the research reveals the challenges, advances and complexities that present themselves in the daily investment in the actions of social insertion for CAPS users and the agonies and struggles that a CAPS team faces daily to support the antimanicomial ideas in their practices in this deinstitutionalization device.


Keywords: Mental health; Social Insertion; Deinstitutionalization.

 
 

Introdução


A atenção direcionada à saúde mental no Brasil vem passando por transformações marcantes nas últimas décadas, no entanto, ainda com poucos investimentos voltados para trabalhar o imaginário social sobre a loucura. É perceptível, a forma como a sociedade se relaciona com a loucura, relação muito marcada pelo modo de cuidado tradicional que uma pessoa em sofrimento psíquico era obrigada a se submeter, momento em que se escrevia sua história com a "loucura‟ e com o hospital psiquiátrico. Esse modelo de tratamento que era eminentemente manicomial/segregador passa, na atualidade, por uma transição: manicômio versus serviços substitutivos.

Nesta perspectiva, a saúde mental é um conceito que conota um campo de saber e de prática que agrega significados que perpassam por um processo que se faz contínuo; ou seja, o de transformação do modelo de cuidado aos sujeitos que vivenciam sofrimento psíquico, e têm seu cotidiano modificado por terem passado por um processo de exclusão ao serem vistos como "doentes mentais‟. Desse modo, as pessoas com transtornos mentais se percebem inseridas em uma história social marcada pela exclusão da loucura, e veem seu cotidiano e sua história de vida particular transformada pelas marcas do preconceito e da discriminação (SALLES & BARROS, 2013; p. 325).

No modelo manicomial, os sujeitos eram tomados por seus sintomas não tendo chances de opor-se ao tratamento psiquiátrico tradicional, naquele momento o sujeito classificado como "doente mental‟ [...] jamais poderia opor-se a quem o exclui, porque todo o seu ato está circunscrito e definido pela doença (BASAGLIA, 2005, p. 38).
O paradigma psiquiátrico, alvo de críticas a partir dos movimentos pela reforma psiquiátrica, tem como campo de atuação o espaço delimitado pelo próprio serviço, seu objeto de trabalho é a doença e faz uso de métodos e técnicas baseados nos aspectos médico e biológico (LEÃO e BARROS, 2012; p. 574).

Com a inscrição social da Reforma Psiquiátrica, se constrói um novo paradigma em saúde mental, enquanto processo promotor de um efetivo circular de sujeito em sofrimento psíquico na comunidade e no convívio social. Para tanto, fez-se necessário, não apenas uma rede de atenção substitutiva, mas também, um novo olhar da sociedade sobre o louco, de modo a possibilitar a construção de um outro lugar para a loucura na comunidade e na cidade.
No modelo psicossocial, a loucura é considerada um fenômeno social, o sofrimento psíquico não tem que ser removido, mas sim integrado como parte da existência da pessoa. A

ênfase é dada na inserção social e na potencialização da autonomia do sujeito e de seu poder de contratualidade (COSTA-ROSA, 2000).
Desse modo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), enquanto um dos serviços substitutivo constrói estratégias territoriais e singulares na lida com esses sujeitos, investindo em inserção social e reduzindo ao máximo os traços da exclusão deixados pelo tratamento manicomial. Assim, o paradigma psicossocial faz oposição ao paradigma psiquiátrico ainda hegemônico, privilegia o indivíduo em suas condições sociais, utiliza formas de intervenção pautadas pelas necessidades do usuário e tem como objetivo a inclusão social (LEÃO e BARROS, 2012; p 574).
Esse movimento de transformação no modo de cuidado em saúde mental tem produzido efeitos significativos na oferta de novas modalidades de cuidados, e propõe realizar uma releitura do lugar que a "loucura‟ ocupa na sociedade. O modelo psicossocial de cuidado traz como principal lema a desinstitucionalização, viabilizando a diminuição de internações psiquiátricas e com a proposta de pôr fim aos manicômios, possibilitando que o sujeito em sofrimento psíquico, ao circular pela cidade, construa meios possíveis para sua inserção social.
A inserção social pode ser compreendida como um processo de circulação entre diferentes lugares sociais e de restituição do poder contratual do sujeito em sua vida em sociedade. Cabe destacar que a contratualidade, de acordo com Kinoshita (2001), não deve ser confundida com auto suficiência ou independência, mas entendida, nesse contexto da saúde mental, como uma ação potencializadora de direitos e desejos do sujeito em sua singularidade.

A loucura por séculos foi inscrita no imaginário social enquanto doença biológica e social, e o modelo psicossocial forjado no âmbito do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA), - que se constitui historicamente na década de 1970 no bojo da Reforma Psiquiatra, - produz um processo contrário, colocando a doença entre parênteses, para fazer surgir socialmente o sujeito que sofre.

Com a inserção social, não se busca uma modelagem/normatização dos sujeitos em sofrimento psíquico para fazê-los caber nessa sociedade, torná-lo "igual‟, padronizado. Também, a intenção não é reabilitá-lo, considerando a etiologia da palavra, "consertar o que foi quebrado‟ ou ainda conduzi-lo a um momento anterior a quebra, o que seria da ordem do impossível. Desse modo, a inserção social não opera por normatização dos sujeitos, pensando em uma modelagem que os façam aceitos, "desejados‟ socialmente, mas sim, investi na construção de sujeitos desejantes.

Desse modo, esse trabalho tem como objetivo compreender as representações sociais dos profissionais do CAPS I Ana Nery na cidade de Cachoeira/BA, sobre os modos de construção da inserção social no cotidiano de sujeitos em sofrimento psíquico da referida cidade.

Referencial teórico metodológico

O referencial teórico utilizado nesse estudo refere-se à Teoria das Representações Sociais proposta por Serge Moscovici. Esse teórico faz uma análise filosófica, sociológica e psicológica do processo social de produção de conhecimento e da construção do conceito de Representação Social; com estrito interesse na compreensão de como o conhecimento é produzido, assim como, em analisar seu impacto nas práticas sociais, ou seja, de quais formas as ideias são colocadas em prática ancoradas no tripé grupos-ideias-atos (MOSCOVICI, 2003).
As categorias analíticas norteadoras do estudo recaem sobre os conceitos de Inserção Social e Desinstitucionalização. O primeiro conceito, o de Inserção Social, foi trabalhado na perspectiva dos estudos de Roberto Kinochita, por esse autor conceber a Inserção Social a partir da construção de valores socioculturais que perpassam pelas subcategorias que atravessam o sujeito; sendo elas, a potencialização/construção da autonomia e investimentos em contratualidade como estratégias promotoras de protagonismo do sujeito no âmbito das relações de produtividade, afetividade e gerenciamento de ações (KINOCHITA, 1996).
O segundo conceito, o de Desinstitucionalização, foi pensando na perspectiva de Paulo Amarante, pois de acordo com esse autor a desinstitucionalização caracteriza-se por ser um processo ético, que inscreve-se em posição contrária ao estigma, exclusão e violência de sujeitos em sofrimento psíquico, que age na construção de novas possibilidades de subjetivação e produção social (AMARANTE, 1996). Desse modo, Inserção Social e Desinstitucionalização foram dois referenciais analíticos importantes para essa investigação, pois, apresentam aspectos que possibilitam discutir as condições efetivas do paradigma psicossocial na saúde mental contemporânea.

Método e técnica de pesquisa

A abordagem qualitativa foi o método mais adequado para a compreensão do objeto desta pesquisa, o qual está intrinsecamente relacionado aos aspectos estruturais, culturais e

históricos da realidade social em que se configura o cuidado às pessoas com transtornos mentais; por considerar que a metodologia qualitativa é a mais indicada aos estudos que buscam uma discussão da realidade social em que está inserida uma população. A pesquisa qualitativa pode ser entendida como a tentativa de obter profunda compreensão dos significados e definições das situações, como as pessoas nos apresentam (MINAYO, 1998).
Desse modo, "a finalidade real da pesquisa qualitativa não é contar opiniões ou pessoas, mas ao contrário, explorar o espectro de opiniões, as diferentes representações sobre o assunto em questão". Que uma vez levantadas, são sustentados de modo livre e espontâneo pelo pesquisador, no intuito do aprofundamento no tema para melhor fluir o discurso e construir uma analise. (GASKELL, 2008; p.68).
Para apreensão dos significados do objeto em estudo, a categoria escolhida de pesquisa qualitativa foi o estudo de caso. Os levantamentos dos dados se deram considerando para seu processo: observação participante, registro das impressões em diário de campo e entrevistas semiestruturadas individuais com permissão expressa dos sujeitos para uso de aparelho de áudio.
Campo de pesquisa, colaboradores da pesquisa e procedimentos éticos

A pesquisa foi realizada em um CAPS na Cidade de Cachoeira, localizada na Região do Recôncavo na Bahia. Esse CAPS funciona na modalidade de CAPS I de acordo a portaria MS 366/02.
Os sujeitos dessa pesquisa constituíram-se da equipe de trabalhadores desse serviço que é formada apenas por mulheres: enfermeiras, médica, assistente social, educadora física, pedagoga e psicóloga. Desse modo, a pesquisa abrangeu todas as profissionais de nível superior da equipe interdisciplinar desse serviço de saúde mental.
Os discursos das profissionais pesquisadas aparecem identificados pela letra "P‟, que corresponde à palavra "profissional‟, e seguindo de uma numeração variando entre um e sete, números correspondentes aos profissionais entrevistados. A numeração foi dada aleatoriamente a partir da ordem de cada transcrição. A identificação do profissional pela sequência numérica só é feita pelo pesquisador.
Essa pesquisa foi realizada após ser aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, com parecer sob o número 211.027 no ano de 2013.

Coleta e Análise de dados

A partir da transcrição do áudio das entrevistas se iniciou a análise dos dados considerando-se para tal, o método da Análise do Discurso (AD) de Michel Pêcheux visando problematizar o campo efetivo de possibilidades que se apresentam ao sujeito em sofrimento psíquico em seu processo de inserção social.

A realização da AD exigiu a atenção do pesquisador no momento da captação dos discursos dos entrevistados, assim como, do registro desse discurso, além de uma leitura exaustiva desse material falado e transcrito nas entrevistas. Essa exploração do material falado, ou seja, a análise profunda se constituiu no principal momento de compreensão das construções e categorias emergentes do jogo de intersubjetividade e objetividades dadas no discurso dos entrevistados. Considerando, segundo Orlandi (2011) que os discursos são envoltos de traços ideológicos, culturais, históricos e linguísticos. Desse modo, esse método de análise se constituiu o facilitador no processo de significação e categorização dos discursos dos participantes dessa pesquisa.

Resultados e Discussões: um modo possível de inserção social em um CAPS

Os Centros de Atenção Psicossocial se constituem enquanto dispositivos estratégicos de saúde mental para a efetivação da desinstitucionalização e inserção social dos usuários desse serviço, considerando o modelo psicossocial de cuidado - nesse modelo, os profissionais devem planejar suas ações não mais tendo a cura como meta das intervenções, e sim o exercício da contratualidade (LEÃO e BARROS, 2008. p. 99).
Ferreira e Pereira (2012), destacam a importância dos profissionais dos serviços substitutivos trabalharem na perspectiva da inserção social visando sempre o empoderamento dos sujeitos para a vida em sociedade. Para tanto, os profissionais dos CAPS precisam direcionar seu saber-fazer cotidiano na perspectiva de potencializar a autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico que são atendidos nesse serviço de saúde mental, assim como empoderá-los para uma vida em sociedade.
Nos serviços substitutivos a inserção social é tomada como estratégia para investimentos na autonomia, na potencialização da capacidade dos sujeitos em sofrimento psíquico a fim de construir sentido para seu circular na cidade, valor social para suas relações e contratos sociais efetivos. Promovendo, assim, a contratualidade desses sujeitos em espaços sociais (FERREIRA E PEREIRA 2012; p.36).

Trabalhar promovendo inserção social no campo da saúde mental é uma atividade complexa que requer formação de rede de apoio entre profissionais, familiares e comunidade. Essa complexidade na inserção na saúde mental é colocada pelos entrevistados – nos discursos transcritos abaixo – falas em que se percebe certa fragilização na corresponsabilização de ações e mesmo da aceitação de um outro imaginário social sobre o sofrimento psíquico no cotidiano do serviço.

Promover inserção, assim, é uma coisa bem complicada mesmo, frágil quando não temos uma rede de apoio. (P7)
A proposta é o CAPS, esse serviço, ser promotor da inserção social de todos os usuários que aqui são assistidos, claro que considerando suas singularidades. Mas o CAPS sozinho não dá. É necessário uma rede de apoio sabe, assim, família, atenção básica, CRAS, Hospital, Escola, padaria, supermercado todos como facilitadores desse processo. (P5)
Para Soalheiro (2012), para a manutenção da dinâmica que sustenta a inserção social e a desinstitucionalização se faz necessário um trabalho continuo e diário nos CAPS. Um trabalho realizado em conjunto com os usuários, familiares, comunidade e profissionais do CAPS. No entanto, é função diretamente dos profissionais assumir e acompanhar as estratégias de trabalho com os familiares e usuários em uma posição facilitadora para a emergência da experiência subjetiva em detrimento de uma posição de autoridade e padronização de metas.
Como nos aponta Barros e Claro em pesquisa de 2011 (p. 701):

[...] dada à dimensão complexa da questão, que envolve a inserção social de sujeitos em sofrimento psíquico, desafios são continuamente apresentados a todos: profissionais, usuários e seus familiares e gestores do serviço no âmbito do SUS.

Para as entrevistadas nessa pesquisa a inserção social está relacionada a aceitação do louco na sociedade, a possibilidade desse sujeito circular pelas malhas da cidade, frequentar instituições diversas, sem ser rejeitos e podendo ser respeitados e empoderados em sua alteridade. Para a realização do processo de inserção social, para tanto se faz urgente uma rede de apoio que se faça corresponsável por essa ação que se faz em ato, como clama as entrevistadas dessa pesquisa.

Nesse sentido, a inserção social torna-se uma dimensão estratégica dos CAPS, mas não apenas desse lugar, para a invenção de novas tecnologias de intervenção para questionar a exclusão e inventar caminhos que produzam outra representação social sobre a loucura e o circular de sujeitos em sofrimento psíquico pelas malhas da cidade (ALKIMIM, 2000).

A inserção social aparece também nos discursos das entrevistadas como o oposto de exclusão, construção de outra representação social para a loucura, como uma quebra de paradigma e independência nas relações que envolvem instituições.

Trabalhar promovendo a aceitação do louco na sociedade não é fácil, são muitos preconceitos que precisam serem quebrados. O usuário de CAPS, circula pela cidade, mas a questão é, até onde ele vai? Quais as portas que lhes estão abertas? O fato de circular lhes garante estar inseridos? São muitos os olhares de desconfiança, medo, pena ... quando estamos em atividades na rua. (P1)

Até que ponto a gente tem conseguido inserir eles na sociedade? Até que ponto a gente está conseguindo quebrar esse paradigma da exclusão ou esse olhar que é o diferente? até que ponto a gente não cria uma relação de dependência com eles. (P2)
As trabalhadoras desse serviço e participantes desse estudo apresentam um traço muito importante, que é o critico-reflexivo, problematizam suas ações no cotidiano do serviço, ações que estão direcionadas ao cuidado em saúde mental. Suas ações no cotidiano estão voltadas para o empoderamento, a potencialização de autonomia e a promoção do circular livre desses sujeitos pela comunidade, essas ações tiram os usuários desse serviço da opacidade. Contudo, essas trabalhadoras da saúde mental, observam e criticam os modos como a sociedade os vêem e recebem. Vale ressaltar, porém, que é por meio desses olhares de confronto que se criam modos possíveis de outra representação social ser construída sobre o louco e a loucura nessa sociedade.

Construir estratégias de trabalho a ser realizado junto aos familiares e na comunidade, torna as ações produzidas pelos profissionais dos CAPS facilitadores de inserção social e auxilia no processo de desinstitucionalização por essas estratégias permitirem outra construção social sobre o fenômeno da loucura e consequentemente sobre o sujeito que apresenta sofrimento psíquico e que recebe o estigma de "louco‟ da sociedade. Estigma esse que afasta os sujeitos e o cessa de relações sociais como nos relata Leão e Barros em pesquisa de 2011 (p.142).
O estigma [...] ele é uma das barreiras tanto para a realização das trocas sociais e a vinculação do indivíduo numa rede de sociabilidade, quanto para a inserção no trabalho, visto que a periculosidade, a improdutividade e a incapacidade são estigmas, em torno de pessoas com transtornos mentais, fortemente presentes no imaginário social, marcado por uma cultura de exclusão e de intolerância.

O estigma enquanto barreira à inserção social de usuários CAPS, é colocado pelas participantes dessa pesquisa como algo preocupante devido as dificuldades encontradas de construção na sociedade de outra representação para a loucura e das consequências que a

discriminação do sujeito louco traz para o caminhar desse sujeito na sociedade. O estigma da loucura é presente socialmente, rotula o sujeito em sofrimento psíquico e dificulta o processo de inserção. Como nos coloca a seguinte entrevistada:
Há uma dificuldade de entrarmos em alguns espaços quando as coisas estão acontecendo... o preconceito é mais forte, não vêem o sujeito que está em sua frente, mas aquele rótulo que a loucura traz que não quer se soltar, aquele estigma ainda... (P5)
Às vezes as pessoas nas ruas ficam meio receosas quando passamos, as pessoas ficam um pouco com medo dos usuários serem agressivos, essa é a imagem que eles têm da loucura. (P3)

O diferente é estranho, a sociedade exclui, não aceita, não quer. (P2)
As falas das profissionais desse CAPS abrem pontes de discussões para a expectativa de uma sociedade adaptada para a lida com padrões de "normalidade- anormalidade‟, destituído o estranho de um lugar, de um reconhecimento, de um ser sujeito de sua história e com possibilidades de construções diversas para além de um imaginário restrito. Essas profissionais apostam em uma lida na contra mão desse imaginário, construído possibilidades de empoderamento social para esses sujeitos.

No trabalho de potencialização do processo de inserção social, realizados nos CAPS, acontece concomitantemente a intensificação do processo de desinstitucionalização, ou seja, à medida que o sujeito vai se inserindo no cotidiano das ações na sociedade, menos ele vai necessitando dos serviços de saúde mental, vai ganhando liberdade dessa instituição. Considerando para essa afirmação o que diz (AMARANTE, 1996, p.115):

A desinstitucionalização é um processo ético porque, em suma, inscreve-se em uma dimensão contrária ao estigma, á exclusão, a violência. É manifestação ética, sobretudo, se exercitada quanto ao reconhecimento de novos sujeitos de direito, de novos direitos para os sujeitos, de novas possibilidades de subjetivação daqueles que seriam objetivados pelos saberes e práticas cientificas, e inventa – prática e teoricamente – novas possibilidades de reprodução social desses mesmos sujeitos.

Nesse sentido, Jorge et al (2006, p. 2) coloca a desinstitucionalização ao lado da desconstrução de tradicionais representações sociais sobre a loucura e consequentemente de novos modos de lida com esse fenômeno. A desinstitucionalização almeja em seu continuo processo, além do fim dos manicômios concretos, também, o fim dos manicômios mentais. Nesse sentido, a assistência em saúde mental visa à inserção social de sujeitos em sofrimento psíquico convergindo para a desinstitucionalização desses sujeitos. Amarante e Diaz (2012, p.86) sinalizam que:

A proposta de desinstitucionalização, um dos mais fortes marcos teóricos dessas políticas públicas, tem ressonância na sociedade pelos aspectos econômicos, afetivos e ideológicos que produz. Entendendo essa metamorfose a partir do descrédito atribuído aos lugares de segregação, a transformação do modelo em saúde mental como expressão de uma outra política torna-se um conjunto instável, repleto de conflitos, de tensões, de crises e de derrapagens. Um sistema é dito "ultrapassado‟ quando não tem mais quem o defenda. Essa não é a realidade da reforma psiquiátrica brasileira: suas mudanças vêm trazendo questionamentos e fortes embates.

A saúde mental na contemporaneidade está investindo no empoderamento do paradigma focado no modelo psicossocial, no entanto ainda em coexistência com o modelo tradicional e hospitalocêntrico, tendo em vista que os serviços substitutivos dividem terreno com os antigos hospitais psiquiátricos. Nesse sentido, uma problematização também coerente nesse momento de transição e transformação no cuidado em saúde mental, diz respeito às ações desenvolvidas nos dispositivos CAPS, o quanto esse serviço é desinstitucionalizador, pois há riscos desses serviços reproduzirem ações manicomiais e os recorrentes efeitos da porta-giratória.
Em seu sofrimento e/ou na impossibilidade de diálogo com a sociedade, o sujeito sente dificuldade em estabelecer relação, e o CAPS aparece como possibilidade de objetificação (institucionalização) ou presentificação (Desinstitucionalização) desse sujeito. Historicamente, essa tem sido uma das funções da instituição manicomial, mortificar, objetificar o sujeito socialmente; logo se espera função contrária do CAPS, consolidando seu lugar de serviço substitutivo. Contudo, percebemos, através das falas das entrevistadas, dúvidas quanto à efetivação das ações para as quais esse serviço se propõe. (AMARANTE, 1996; FAUCAULT, 2001; GOFFMAN, 2005).

Estamos mesmo trabalhando de modo à desinstitucionalizar, ou estamos institucionalizando? Olha o nível de dependência dessas pessoas ao CAPS! Quando vamos entrar em recesso, você precisa ver o desespero deles, é como se só tivesse ao CAPS. (P3)

Eu acho que tudo começa pela conscientização, é necessário um trabalho de conscientização, do que é a saúde mental, qual sua proposta. Conquistar parceiros entende... Então, acho assim, que é preciso fazer um trabalho de conscientizar sobre qual é a função do CAPS. (P2).
A valorização da subjetividade pelos profissionais nos CAPS desloca o foco da atenção, que antes era dirigido à doença mental, para o sujeito e para a construção de relações no serviço, na comunidade e na cidade. Possibilitando, desse modo, a vinculação do usuário nas atividades abertas e a circulação na comunidade, o que pode vir a se constituir como meio de inserção social.

À percepção dos entrevistados sobre a relação da loucura na sociedade e as limitações que tais estigmas impõem ao convívio social amplo dos sujeitos em meio público, Saraceno (2001) nos alerta que é no cotidiano que os sujeitos realizam escolhas, se comunicam com os outros e tornam-se aptos a participarem do coletivo, movendo-se no ambiente social. Dessa forma, mostra-se necessário que a sociedade seja trabalhada quanto a seu imaginário sobre o louco e a loucura, para que o sujeito em sofrimento psíquico possa ser visto como ser singular e, ao mesmo tempo, parte de uma coletividade, da pólis.

As atividades realizadas na rua, extramuros para mim são as maiores em incidência no processo de inserção social e as mais gostosas, por possibilitar trocas com a comunidade. Então, eu busco participar com eles de diversas atividades em lugares diversos e possibilitar incluí-los na sociedade. (P5)
Sempre que a gente pode, vamos à exposição no museu, participamos de atividades culturais em praça pública, festas populares e tradicionais na cidade; vamos para algumas palestras na Universidade que a gente tem aqui como parceira muito forte. Às vezes participamos de atividades em cidades vizinhas. (P2)

Rotelli (2001) afirma que o circular na sociedade do sujeito usuário dos serviços CAPS, possibilita colocar em questão não apenas o manicômio, mas a loucura e seu lugar na sociedade, ou seja, devem ser questionadas as relações previamente estabelecidas de amizade, de trabalho, de circulação pela cidade.

Ao analisar as falas das entrevistadas, percebe-se que a cidade precisa se abrir a esses sujeitos, oferecendo a possibilidade de novos contatos sociais e de alternativas de circulação que favoreçam sua inserção social. Considera-se ainda a necessidade de práticas de cuidado que não se restrinjam aos ambientes de tratamento ou, de forma ainda mais ampla, que os serviços substitutivos desenvolvam práticas extra-muros, como modos de circulação social pela cidade. A partir das falas dos sujeitos entrevistados, pode-se perceber uma grande fragilização de vínculos e poucos investimentos em redes que sustentem um livre circular desses sujeitos na cidade.

Considerações finais

A reforma psiquiátrica se encontra em processo, não sendo, portanto, uma meta já atingida ou uma proposta acabada de atenção em saúde mental. Deparamo-nos em várias localidades do Brasil, com os serviços substitutivos, em especial os CAPS, convivendo ainda

com serviços ofertados pelos hospitais psiquiátricos, a saúde mental no país experiência um momento de revolução científica, com fortes pretensões de uma mudança de paradigma na atenção a saúde mental. Havendo em muitos momentos o encontro do velho modelo de atenção com o novo modelo, o que causa estranhamento e por vezes confunde familiares, profissionais, comunidade e os próprios usuários que precisam ser submetidos ao modelo ultrapassado e que se faz atual coexistindo paralelamente ao que se propõe como substitutivo.
No contexto atual do campo da saúde mental, mesmo com toda ebulição de discursos, ações e contradições, se faz importante salientar os avanços principalmente no que se refere aos processos de inclusão social, que embora pareça incertos perante o desafio de enfrentar uma história social e secular de exclusão social, os CAPS têm se apresentado para esses sujeitos e seus familiares como um lugar de referência, um lugar de acolhimento, um espaço social, clínico, político e subjetivo em que as pessoas em sofrimento psíquico podem buscar ajuda, estabelecer vinculo, construir novos laços sociais e receber investimentos para seguir em sociedade.
Na cidade de Cachoeira na Bahia, a relação com a saúde mental não se faz destoante da realidade do território nacional. A estrada é árdua contando em seu percurso com avanços e retrocessos na politica e na prática.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. (2005). A loucura interrompida nas malhas da subjetividade. In: Archivos de saúde mental e atenção psicossocial, 2. Coordenação Paulo Amarante. Rio de Janeiro: Nau.
ALKMIM, W. (2000). Entrelaçamento transferência na psicose. In: CURINGA. Escola brasileira de psicanalise. Há algo de novo nas psicoses. Belo horizonte.
BABINSKI, T.; HIRDES, A. (2004). Reabilitação psicossocial: a perspectiva de profissionais de centro de atenção psicossocial do Rio Grande do Sul. Rev. Texto contexto enferm.
BARROS, R. B. (2003). Reforma Psiquiátrica Brasileira: Resistências e capturas em tempos neoliberais. Loucura, Ética e Política: Escritos Militantes. Revista do Conselho Federal de Psicologia. Brasília: Casa do Psicólogo.
DIMENSTEIN, M.; LIMA, A. I.; MACEDO, J. P. (2013). Integralidade em saúde mental: coordenação e continuidade de cuidados na Atenção Primária. In: PAULON, Simone e NEVES, Rosane. Saúde Mental na atenção básica: a territorialização do cuidado. Porto Alegre: Sulina.
GOLDBERG, J. I. (1996). Reabilitação como processo – o Centro de Atenção Psicossocial. In: PITTA, Ana Maria Fernandes. Reabilitação psicossocial no Brasil. (org) 2ª edição. São Paulo. Hucitec.
LEÃO, A.; BARROS, S. (2011). Inclusão e exclusão social: as representações sociais dos profissionais de saúde mental. Revista Interface: comunicação, saúde e educação, Rio de Janeiro.
LIMA, M.; JUCÁ, V.; NUNES, M. (2010). Tecnologias de cuidado em saúde mental em centros de atenção psicossocial na Bahia e em Sergipe. In: FONTES, B. A. S. M. FONTE, E. M. M. da. Desinstitucionalização.
CliniCAPS, Vol 8, nº 23 (2014) – Artigos
24
Redes sociais e saúde mental: análise de experiências da reforma psiquiátrica em Angola, Brasil e Portugal. Ed. Universitária. Recife.
LOBOSQUE, A. M. (1997). Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos. São Paulo, Hucitec.
NAVARINE, V.; HIRDES, A. (2008). A família do portador de transtorno mental: identificando recursos adaptativos. Texto contexto Enfermagem, Florianópolis.
SOALHEIRO, N. I. (2012). Política e empoderamento de usuários e familiares no contexto brasileiro do movimento pela reforma psiquiátrica. Cadernos brasileiro de saúde mental, Rio de Janeiro. KINOCHITA, R. T. (1996). Contratualidade e Reabilitação Psicossocial. In: PITTA, Ana. Reabilitação psicossocial no Brasil. (org) 2ª edição. São Paulo. Hucitec.

Recebido em: 22 de Dezembro de 2015
Aceito em: 13 de Outubro de 2016


 
  Arquivo em PDF do artigo  
 
Revista N° 23 .
. Editorial .
. Sumário .
. Artigos  .
. Relato de Experiência .
 
. Corpo Editorial .
. Instruções aos Autores .
. Números Anteriores .
. Indexadores .
Topo da página
CliniCAPS - Todos os direitos reservados © - 2006