Resumo: O artigo em questão apresenta algumas considerações sobre a demissão do Outro na esquizofrenia. Ele é o resultado de uma pesquisa mais ampla cujo objetivo era a busca de balizas teóricas para a elucidação de um caso clínico. A pesquisa realizada inovou ao colocar a entidade clínica entre parênteses, fazendo o sujeito emergir. Tal foi o efeito por ter-se optado por não se prender a uma leitura patológica e ordenadora do caso. O artigo também levanta hipóteses sobre o fato de não haver muitas referências psicanalíticas que abordam o tratamento de sujeitos esquizofrênicos fora das instituições. Ao final do artigo lançou-se uma nova questão: o que pode fazer o psicanalista diante da ironia do esquizofrênico?
Palavras-chave: Outro; esquizofrenia; psicanálise; forclusão generalizada. A
bstract: This article aims to present some considerations about the dismissal of the Other in patients with schizophrenia. It is the result of a larger research which intented to search some theoretical boundaries to elucidate a clinical case. The research used a different approach and put some light at the subject instead of putting light at the disease. The article also discusses about the fact that there are not many theoretical references about treatments of patients with schizophrenia when they are outside the specialized institutions. At the end of the article a new question emerged: what can a psychanalyst do about the schizophrenic’s irony?
Keywords: Other; schizophrenia; psychanalysis; general forclusion
CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 16 Introdução O artigo em questão apresenta algumas considerações sobre a demissão do Outro na esquizofrenia. Ele é resultado de uma pesquisa mais ampla, que teve como objetivo a busca de balizas teóricas para a elucidação de um caso clínico. Não tendo sido encontradas as almejadas referências, coube à pesquisadora utilizar os fragmentos do caso como método de investigação na busca de elementos teóricos que, costurados, pudessem construir um ponto de partida para a leitura psicanalítica da chamada esquizofrenia.
A pesquisa realizada inovou ao colocar a entidade clínica entre parênteses, fazendo o sujeito emergir. Tal foi o efeito por ter-se optado por não se prender a uma leitura patológica e ordenadora do caso. Ao contrário, tomou-se a paciente como sujeito singular, cujo sofrimento causado por sua incansável ironia, representa uma das diversas formas possíveis de se posicionar diante do irrepresentável. Sobre o caso, não há um delírio estruturado, nem queixas intermináveis, ou, ainda, um quadro depressivo grave, por exemplo. Não existe na história da paciente nenhum fenômeno mental extraordinário ou alucinações de diferentes tipos, ou qualquer outra característica psicopatológica evidente que costuma aguçar o interesse dos psicólogos e psiquiatras. Os sintomas que prevalecem no caso de Valéria são outros: apatia, inércia e desinteresse. Esses sintomas são um assunto que interroga os estudiosos desde a época da psiquiatria clássica até a época presente. Na psiquiatria clássica, por exemplo, para Kraepelin, esses sintomas estavam entre os sintomas que compreendiam a chamada evolução deteriorante. Para Bleuler eles se caracterizavam como uma tendência ao isolamento em relação ao mundo (DALGALARRONDO, 2008). Atualmente, na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), esses sintomas aparecem como parte daqueles chamados sintomas negativos da esquizofrenia.
Na primeira, eles se configuram como perda do interesse e retração social, e, no segundo, como disfunções sociais e ocupacionais. Se observados de forma mais cuidadosa a apatia, a inércia e o desinteresse, é possível identificar a existência de algo que é comum aos três. A isso que os perpassa, dá-se o nome de demissão do Outro. Fragmentos Clínicos CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 17 Valéria, quarenta e poucos anos, paciente de um serviço público de saúde, era atendida duas vezes ao mês. O tempo da sessão era suficiente para propiciar um espaço de escuta para as possíveis queixas e demandas da paciente. Entretanto, na maior parte das vezes, ela se expressava com poucas palavras e se contentava em utilizar o tempo para relatar algo que havia acontecido em sua casa. Apesar de seu sofrimento não aparecer como conteúdo de sua fala, era visível que Valéria sofria; era perceptível o seu alto nível de angústia. Por vezes, a paciente chorava durante o atendimento. Quando era questionada sobre o motivo de seu choro, ela dizia: “Nada”. Diante dessas situações, sempre ao encerrar o atendimento com Valéria, a psicóloga – agora pesquisadora – despedia-se dela sentindo-se impotente e frustrada. Pensava que não havia feito nada para ajudá-la; pensamento que se repetia ao término de todas as sessões. Certa vez, Valéria anunciou que gostaria de colocar um fim à própria vida, já que esta não tinha sentido. Quando interrogada sobre o que havia acontecido para querer fazer tal coisa, ela simplesmente respondeu que não tinha acontecido nada. De fato, nada acontecia na vida de Valéria. Ela não trabalhava e não possuía um círculo social que ultrapassasse os vínculos com as pessoas com quem morava. Quase não saía de casa com o pretexto de evitar lugares tumultuados. Posteriormente, constatou-se que aquele não fazer nada pela paciente, do qual a psicóloga se queixava, superava o sentido mais óbvio, que era o de que ela estava sendo malsucedida na condução do caso.
O outro sentido, menos evidente naquele momento, era o de que a autodemanda de fazer pela paciente era uma resposta ao fato de Valéria nunca fazer nada. Logo, se a paciente não fazia nada, era preciso então, que um outro fizesse algo por ela. Em contrapartida, não era possível fazer algo por ela, pois ela nada demandava. Apesar disso, Valéria parecia ter interesse no tratamento, pois ela compareceu a todos os atendimentos agendados e nunca chegou atrasada. Quando chegava a sua vez de ser atendida, entrava na sala, falava de sua semana e, às vezes, de sua dificuldade com o seu sobrepeso, de maneira que o caso não exigia de mim nenhuma intervenção muito elaborada e os atendimentos aconteciam sem maiores complexidades. Sobre o início do tratamento psiquiátrico, ele se deu em 2000, no mesmo período do desencadeamento do surto psicótico. Valéria contou que, após ser acusada de furtar dinheiro do caixa de uma loja onde prestava serviço, e perder o emprego em decorrência do que CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 18 aconteceu, passou a ter ideias delirantes de cunho persecutório, cujo conteúdo era o de que as pessoas na rua estariam rindo e falando dela. Ela também relatou a existência de alucinações áudio-verbais nesse mesmo período. Depois desse episódio, nunca ficou mais do que alguns meses em um mesmo trabalho. As ideias delirantes e as alucinações já não configuram o atual quadro de Valéria. No entanto, a abulia, a apatia e a anedonia persistiam, mostrando resistência ao tratamento. Com relação ao nada que parecia circundar Valéria, seja nas respostas aos meus questionamentos, seja na sua rotina, em que nada acontecia, pode-se tecer algumas considerações iniciais.
A primeira delas corrobora a hipótese diagnóstica de uma psicose, uma vez que o nada da resposta da paciente tem um estatuto diferente do não sei do neurótico, índice de uma divisão subjetiva. Ela não parecia ter dúvidas quanto ao motivo de seu choro ou sobre o que estava causando a ideia de tirar a própria vida. Ela tinha certeza, era o nada. Isso permite uma segunda consideração: o nada que caracterizava a rotina de Valéria se assemelha à “atração pelo nada” (VILA-MATAS, 2004, p. 10), expressão que o escritor Enrique Vila-Matas utiliza para caracterizar o personagem principal da novela Bartleby, o Escrivão de Herman Melville. Apesar de se considerar aqui que o nada da paciente está relacionado muito mais a um não se deixar atrair por alguma coisa, a expressão do autor deve ser considerada como uma tentativa de nomear esse tipo de posicionamento subjetivo. Em linhas gerais, Bartleby era aquele que só falava quando tinha de responder a uma pergunta; . . . que nunca ia a um refeitório ou restaurante; o seu rosto lívido mostrava com clareza que nunca tomava uma cerveja, . . . nem chá e nem mesmo café, como os outros homens; que nunca ia a lugar algum . . .; que nunca saía para dar uma volta . . .; que tinha se recusado a dizer quem era ou de onde ele viera, ou se tinha parentes; que, embora fosse tão magro e tão pálido, nunca tinha se queixado de doenças. (MELVILLE, 2005, p. 18) Tudo o que ele queria era não ser perturbado, mas se, por acaso, acontecia, não era motivo para maiores aborrecimentos. Com a mesma serenidade de sempre ele declinava o pedido e tudo se passava como se nada o tivesse tirado de sua posição de retiro absoluto.
Avessos às trocas sociais, Valéria e Bartleby configuram um tipo de posicionamento subjetivo caracterizado como estando fora do laço social. Tal qual o Acho melhor não de Bartleby – frase repetida por ele todas as vezes em que lhe era demandado alguma coisa –, o nada de Valéria acaba evidenciando uma demissão do Outro por parte dela, de maneira a não se ver obrigada a responder as suas convocações. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 19 Entretanto, diferente de Bartleby, a paciente não se encontrava completamente alheia à realidade que a rodeava. Apesar de recusar, na maior parte das vezes, os apelos provenientes do Outro, deixando-o, com isso, distante, isso não impedia que ela sofresse os efeitos do que acontecia à sua volta. A psicose de Valéria se manteve sem muitas alterações desde o início de seu tratamento. Em contrapartida, era possível perceber que pequenas alterações na sua rotina, como festas de família, casamentos e velórios – eventos em que não lhe era facultada a decisão de não ir – faziam com que ela respondesse a essas situações com ansiedade exacerbada e discreta persecutoriedade. Nas semanas anteriores a esses eventos, Valéria comparecia ao atendimento despenteada e com os olhos bem atentos. Se tomarmos de empréstimo o raciocínio utilizado outrora por Teixeira (2000), ao compararmos um caso clínico de psicose com um caso fictício que retrata uma ataraxia inabalável, – aqui representado por Bartleby – estamos, de certo modo, às voltas com a questão da forclusão generalizada. A forclusão generalizada O termo forclusão generalizada é cunhado por Jacques-Alain Miller no momento em que ele propõe que a estrutura da forclusão do Nome-do-Pai se remete a um modo restrito desse mecanismo de funcionamento psíquico, e que haveria a possibilidade de se propor uma generalização da forclusão.
De acordo com Miller (1987/2010), para se chegar ao fundamento da forclusão generalizada, é necessário opor a comunicação à forclusão. Para esse autor, a comunicação se configura essencialmente como a relação do sujeito com o Outro. A título de ilustração, entendemos que a linguagem possibilita uma comunicação bem-sucedida, quando uma pessoa solicita à outra que lhe faça o favor de trazer-lhe um copo d’água e tem o seu pedido atendido. Ela foi bem-sucedida porquanto não houve espaço para mal-entendidos entre o enunciador e o receptor da mensagem. Levando em consideração esse exemplo, podemos constatar que, por meio da comunicação, parece ser possível estabelecer uma relação simbólica entre o sujeito e o Outro. Sendo assim, tudo indica que o sujeito, usando o significante, atinge o outro sujeito, dado que, a partir do endereçamento da pessoa que pediu o favor, seu interlocutor se coloca prontamente em movimento para executar a ação. Do mesmo modo, o significante parece atingir também o referente, ou seja, o objeto, que no exemplo é o copo d’água. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 20 Se, supostamente, o significante alcança o outro sujeito e o referente, é porque ele também atinge o Outro como o lugar do código.
Esse Outro que, ao decidir quanto à verdade da mensagem, por sua pontuação, acaba por decidir também quanto ao significado (MILLER, 2000), permitindo que a pessoa tivesse o seu pedido atendido. A comunicação leva a crer, pois, que aquilo que se fala é igual ao que o seu interlocutor ouviu. A comunicação é, então, um tipo de preconceito de que a linguagem permite uma relação codificada entre nome e coisa, nome e referente. Levando em conta o que foi dito, e, acreditando que a linguagem está direcionada e limitada por alguma espécie de ordenação representativa (TEXEIRA, 2009), fazemos dela o “cimento fundamental de toda associação entre os seres falantes” (MILNER, 2006, p. 33). Entretanto, o que acontece se passarmos a um exame mais detalhado dessa questão? Não é possível deixar de perceber que diversos desvios poderiam ter ocorrido na situação descrita acima.
A pessoa encarregada de realizar o favor poderia, por exemplo, se equivocar, e trazer, ao invés de um copo d’água, um copo de refrigerante, sabor limão, que tenha perdido o gás. Esse desvio aponta para o fato de que a linguagem fracassa quando utilizada para referir. Esse fracasso se dá, porque há uma inadequação entre o significante e o referente que se busca significar (TEIXEIRA, 2009). Ou seja, o significante, por mais que ele evoque um referente, ele nunca o alcança. Em outras palavras, não importa quão rigorosos sejamos com o uso formal da linguagem, sempre haverá a possibilidade de um desvio semântico. Por conseguinte, a eficácia da comunicação está colocada em questão.
A comunicação não pode mais ser considerada a garantia de um laço entre os seres falantes, uma vez que ela também passa a reivindicar a sua própria garantia, visto que não há relação biunívoca entre palavra e coisa. Trilhando o caminho sugerido por Miller (1987/2010), para se chegar ao entendimento da forclusão generalizada, é preciso, então, entender a forclusão para futuramente opô-la à comunicação. Dessa forma, esse conceito será abordado não de maneira extensa, mas apenas levantando os pontos necessários para se chegar ao objetivo mencionado. E, para isso, Miller (1987/2010) orienta a não analisar a forclusão sob o prisma da dissolução da cadeia simbólica pela ausência do significante do Nome-do-Pai no Outro. Mas, por outro viés, que “geralmente é deixado de lado” (BRODSKY, 2013), qual seja aquele que aponta para uma rejeição no real.
Dessa maneira, deve-se seguir pela constatação lacaniana de que o que está forcluído no simbólico reaparece no real. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 21 Para abordar essa faceta da forclusão, Miller (1987/2010) utiliza como exemplo o episódio recolhido e analisado por Lacan em uma apresentação de pacientes com duas mulheres, mãe e filha. Lacan relata que tudo acontece quando ambas estão no corredor saindo de casa e encontram o amante da vizinha. A filha, então, escuta um insulto, que não é outra coisa senão uma alucinação: Porca!. Durante a apresentação de pacientes, a menina, contudo, alerta para o fato de não ser tão inocente, pois ela mesma havia dito algo ao passar. Ela confessa ter dito: Eu venho do salsicheiro. Lacan (1959/1998), chama a atenção para o fato de Porca ter sido ouvida no real, ainda que, definitivamente, a injúria não tenha sido pronunciada. Segundo ele, a injúria Porca vem substituir o que não tem nome, isto é, um objeto indizível que é rechaçado no real. Ainda sobre o retorno no real de algo forcluído no simbólico, Lacan (1959/1998) faz menção à cadeia rompida, enunciando que “a função de irrealização não é tudo no símbolo. Pois, para que a sua irrupção no real seja indubitável, basta que ele se apresente, como é comum, sob a forma de cadeia rompida” (p. 542).
O fenômeno da cadeia rompida e a alucinação evidenciam, dessa forma, que o significante não pertence apenas ao simbólico, isto é, ele também faz aparições no real, não como símbolo, mas como algo sem significação. Assim, afirmar que o que está forcluído no simbólico reaparece no real é muito mais do que dizer que aquilo não está inscrito. Isso implica que o que não está inscrito existe e sempre vai retornar desde outro registro (BRODSKY, 2013). É nesse sentido que podemos opor comunicação e forclusão. Enquanto a primeira fala de um deslocamento do sujeito ao Outro, isto é, algo que se dá apenas no simbólico, a estrutura da forclusão propõe uma mudança de registro. A forclusão se opõe à comunicação porque torna evidente que o rigor formal da linguagem visado na comunicação, “quando muito, mascara, mas, na verdade, não impede o desvario semântico da linguagem nem tampouco seu desligamento para com o referente” (TEIXEIRA, 2009, p. 161-162). Por conseguinte, desfaz-se a crença de que o simbólico é passível de revestir o real por completo e explicita-se o fato de que sempre restará algo por representar. Isso significa que sempre haverá um ponto de sem sentido.
Tal é o fundamento da forclusão generalizada. Tendo em vista a proposta de uma forclusão generalizada, e, levando em conta que a ordem simbólica não se ordena pelo referente (TEIXEIRA, 2000), pode-se concluir que a CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 22 veracidade de um fato ou de um enunciado não pode ser mais medida de acordo com a sua adequação ou não ao referente, seja na neurose, seja na psicose. Assim, associse à forclusão generalizada a assertiva de Lacan: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31), que elimina qualquer possibilidade de se pensar a psicose em déficit em relação à neurose. Diante do exposto, ambas as estruturas são deficitárias no tocante a apreensão do referente. Não obstante, os efeitos de uma forclusão generalizada são experimentados de formas distintas pelo neurótico e pelo psicótico, como se verá adiante. Retornando ao caso de Valéria, poderíamos dizer que ela vivia momentos de imersão na forclusão generalizada.
Em outras palavras, períodos de completa ausência de sentido que, como se pode observar na sua fala, geravam episódios de ruptura com o Outro. O Outro, porém, não lhe permitia a reclusão. Valéria era obrigada a ir a festas de família, casamentos e velórios. Era convidada a celebrar a união entre os membros de sua família, era chamada a se mostrar consternada com o sofrimento alheio e, ainda, a brindar o laço matrimonial de um casal apaixonado, entre outros. Todas essas situações lhe causavam grande ansiedade e, de alguma forma, a desorganizavam psiquicamente. Nesse sentido, o caso interroga a teoria sobre a possibilidade de existência de algum sujeito completamente imerso em uma forclusão generalizada, o que configuraria “um sujeito para o qual não haveria o menor traço de conflito” (TEIXEIRA, 2000, p.51). Fato é que não se encontra com tanta frequência sujeitos cujo confronto com o Outro é nulo.
Consequentemente, resta-nos supor que a forclusão generalizada incide sobre os sujeitos psicóticos ao modo de uma forclusão local (TEIXEIRA, 2000). Isso, porque, como foi possível observar, a forclusão generalizada não deve ser tomada como algo patogênico em si, haja vista que ela é uma condição imposta para todos aqueles que falam e não há a mínima evidência clínica de que somos todos psicóticos. Logo, deve-se tomar a forclusão generalizada como parte constituinte do processo de estruturação de todo sujeito. Com o intuito de se chegar em um exame mais detalhado dessa questão, é preciso questionar qual a condição para se usar a linguagem para representar, isto é, para a comunicação. Em outras palavras: na conta do quê pode se creditar o “sucesso” desse feito humano? Um exemplo que ajuda a refletir sobre esse ponto é aquele trabalhado por Stavrakakis em “Lacan y lo político”1. 1 Versão consultada. Versão original: Stavrakakis, Y. (1999). Lacan & the Political. Abingdon, Oxon: Routledge. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 23 O significante-mestre Segundo Stavrakakis (2207), um dos maiores desafios da humanidade, até a criação de cronógrafos adequados, era estabelecer a longitude no mar. Até a criação desses instrumentos, as grandes embarcações navegavam praticamente às cegas, impossibilitadas que estavam de calcular a longitude exata. Criado o cronógrafo, era possível, então, conservar um registro da distância até um ponto de referência (o grau zero de longitude). O problema era estabelecer a localização deste grau zero, mediante o qual estaria possibilitado o cálculo de qualquer longitude.
Gerou-se, então, toda espécie de debates sobre onde posicionar este referente, já que “não havia ancoragem natural no real. Não havia uma localidade geográfica que corporificara naturalmente o grau zero de longitude” (STAVRAKAKIS, 2007, p.98 – tradução nossa).2 A decisão final foi tomada na Conferência Meridiana Internacional, realizada em Washington em 1884 que instituiu o meridiano de Greenwich como o ponto de referência universal. Como argumenta Stavrakakis, não houve surpresa, haja vista que a decisão foi apenas “o resultado da gradual hegemonização dos usos das cartas náuticas para a navegação marítima pelo Nautical Almanac, que eram impressas na Inglaterra e já utilizava o meridiano de Greenwich como ponto de referência universal” (STAVRAKAKIS, 2007, p. 99).3 Tratava-se, dessa forma, de uma disputa hegemônica, logo política e ideológica. Partindo desse exemplo, constata-se que a localização do primeiro meridiano é a referência que permite, através de uma ordenação, o cálculo da longitude. É interessante observar que ele assume uma função universal – decidir sobre as demais coordenadas longitudinais –, justamente por ser um elemento esvaziado de qualquer conteúdo particular específico. Isso implica que a sua coordenada não é determinada pela mesma lei que determina as outras, o que o coloca como exceção ao próprio campo que ele organiza.
O exemplo retrata exatamente o que se passa com o significante-mestre, tal qual a psicanálise o compreende. O significante-mestre é, pois, um significante que gera a possibilidade de um discurso significativo na medida em que ele próprio não comporta nenhum tipo particular de significação. É nesse sentido que podemos identificá-lo ao elemento de exceção que organiza a possibilidade de um discurso deliberativo, desde que não seja alvo, ele próprio, de nenhum tipo de deliberação. (TEIXEIRA, 2010, p. 35) 2 No original: « no había un anclaje natural e lo real. No había una localidade geográfica que corporizara naturalmente el grado cero de longitud. » 3 No original: « el resultado de la gradual hegemonización del uso de las cartas náuticas para la navegación marítima por el Nautical Almanac, que se imprimia en Inglaterra y utilizaba el meridiano de Greenwich como punto de referencia universal. » CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 24 A partir disso, podemos afirmar que a eleição do significante-mestre não é do campo do debate ou do consenso. Ela é, antes de tudo, arbitrária e impositiva. Diante do exposto, tem-se que toda tentativa de representar a realidade por meio da língua depende da submissão desta a uma relação de poder. Visto que, longe de ela se corresponder ao mero reflexo da representação das coisas, ela é a expressão das formas instituídas de negociação do poder político (TEIXEIRA, 2010). Diante disso, o significante-mestre é o elemento que impõe, restringe o sentido de um discurso, cuja garantia repousa apenas neste elemento.
A forclusão local A partir daí, importa analisar a hipótese freudiana para a perda da realidade na psicose, com todos os seus conflitos e desorganizações implicados para se chegar à forclusão local na psicose. Segundo Freud (1924/2006), toda espécie de conflito psíquico é decorrente do embate entre a exigência de satisfação ao nível da pulsão e a consideração da realidade pelo sujeito. No caso da psicose, se isso ocorre, haverá o afastamento do fragmento de realidade pelo sujeito, em benefício da pulsão, na tentativa de resolver esse embate. Porém, o fragmento de realidade rejeitado pelo sujeito retorna constantemente à mente. Por consequência, “há conflito porquanto é exigida do sujeito psicótico uma consideração parcial da realidade que ele recusa” (TEIXEIRA, 2000, p. 51). De acordo com Teixeira (2000), essa exigência de consideração da realidade parcial recusada é exatamente a imposição, ao psicótico, daquele princípio de ordenação discursiva do significante que não se explica. Em outras palavras, o psicótico é colocado frente a frente com a insuficiência do Outro. A forclusão restrita, então, é, efeito de uma recusa da crença em um princípio que não dá a conhecer sua causa nem sua origem. Ou seja, o psicótico não se submete à função de comando desse significante, cuja eleição é completamente arbitrária.
Se todo discurso se autoriza por um significante-mestre, todos aqueles que compartilham um mesmo discurso devem se sujeitar às suas regras. Aquele, pois, que coloca em questão as normas codificadas, fica impossibilitado de se inserir no discurso. Tal é a hipótese que se defende aqui para explicar o funcionamento singular de Valéria, problematizado desde o início do texto. Valéria nega as regras do discurso e recusa CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 25 uma significação imposta por um operador que, por não se deixar conhecer, só pode ser investido por uma crença. A psicóloga não é senão a personificação de um discurso. Ela, então, é demitida por Valéria de seu lugar, no exato momento em que a paciente não demandava nada da profissional. Tudo se passa como se ela dissesse “Nada de imposição de sentido para mim, pois, até você desconhece a garantia do que está enunciando”. Entretanto, o mais interessante, é que ela não o dizia. E ainda assim dava o seu recado. Com a sua presença quase muda, ela denunciava a escroqueria de todo e qualquer laço, ao se recusar responder do lugar do paciente. Da mesma forma, ela não respondia do lugar que o Outro lhe demandava.
Ela não desejava participar de reuniões familiares, tais como casamentos e velórios. E, toda vez que lhe era impingido comparecer a esses eventos, semanas antes da data, ela apresentava uma discreta desorganização psíquica. Entende-se que essa obrigação tem a mesma estrutura do retorno do fragmento de realidade rejeitado pelo sujeito, o qual Freud responsabilizou pela perda da realidade na psicose. E que, como se viu, é semelhante à imposição do princípio de ordenação discursiva do significante. É muito importante se atentar para tal fato, justamente porque, a relação entre a discreta desorganização psíquica de Valéria e a imposição da ordenação discursiva do significante é um elemento essencial para se afirmar que, o caso em questão, encontra-se representado, na literatura médica, sob a rubrica da esquizofrenia. A ironia de Valéria Sobre o desencadeamento da psicose de Valéria, tudo o que se sabe em relação ao ocorrido é que ela foi acusada de furto pelo chefe da loja em que trabalhava como operadora de caixa. E que, após esse episódio, ela foi acometida por ideias delirantes de cunho persecutório e, também, por alucinações. Logo, deve-se procurar o motivo do desencadeamento.
O desencadeamento da psicose da paciente parece ter como causa o encontro de Valéria com a falta que constitui o Outro. Isso porque, ao se ver convocada a tomar a palavra e atestar a sua inocência, ela se depara com a insuficiência do Outro como garantia da verdade e se vê sem recursos para se defender desse vazio gerador de angústia. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 26 O mesmo se passa nos episódios posteriores ao desencadeamento. Ao constatar a existência de um descompasso entre regras sociais e a realidade, ela se depara com a inconsistência do Outro. Isso se dá quando ela era constrangida pelos familiares a participar de reuniões e festas de família. Tudo se passa como se Valéria interrogasse o fundamento dessas regras e se deparasse com o fato de que ser obrigada a demonstrar sentimentos dos quais ela não compartilha não possui lógica alguma. Desse modo, ao compreender que nas relações sociais nada é o que parece, ou, de um outro modo, tudo pode parecer sem necessariamente ser, o Outro se apresenta insuficiente para Valéria. Ele não é garantia da verdade. Valéria não acredita no Outro, porque sabe que ele não existe. Assim, essa dimensão do engano, a dimensão mentirosa da verdade e a qualidade de ficção que estrutura essa verdade (ALOMO, 2013) não fazem parte da realidade da paciente. Essa descrença radical no Outro, característica de Valéria, fundamenta a proposta milleriana de aproximar o esquizofrênico do maior dos irônicos.
É preciso, então, reconhecer a ironia de Valéria. Não se deve procurá-la nos procedimentos característicos do que se entende de maneira geral por ironia. Isso porque o esquizofrênico não é nenhum ironista, de sorte que não se deve atribuir a ele uma prática consciente da ironia (ALOMO, 2013). Com efeito, o que se vê no caso de Valéria é muito mais um efeito irônico – logo, não intencional – gerado pelo seu posicionamento em relação ao laço social. A ironia do esquizofrênico e também a de Valéria é, então, aquela da qual o sujeito esquizofrênico faz arma e que incide na raiz de toda relação social. O que ela diz? Diz que o “laço social no fundo é uma escroqueria, que não há discurso que não seja do semblante” (MILLER, 1988/1996, p. 191). Em outras palavras, o laço social não se sustenta por si, na verdade ele é sustentado pela crença daqueles que dele participam. Nesse sentido, são dois os momentos em que a ironia de Valéria se faz mais evidente: na relação com a psicóloga e quando ela recusa os convites para os eventos familiares. Como afirmamos anteriormente, não é difícil observar a ironia por detrás da posição de Valéria em relação à psicóloga. Ainda que, à primeira vista, ela parecia dar credibilidade ao tratamento – comparecendo pontualmente a todos os atendimentos agendados – surpreendentemente ela recusava o saber da profissional ao não lhe endereçar nenhum questionamento sobre si e afastando-a com o “Nada” como resposta às investidas da psicóloga. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 27 Percebemos que, em ato, Valéria aponta o aspecto contingencial de um tratamento psicológico.
Nesses tipos de tratamento, a competência do profissional conta muito pouco, se o paciente não autoriza o profissional a “curá-lo” – isto é, se ele não deposita no psicólogo e em todo o processo de tratamento uma crença. A ironia está no fato de que o saber do qual a profissional se reveste não vale nada se ele não puder ser aplicado. Sem a crença que o sustenta, ele não passa de um engodo. Por esse saber, Valéria não se interessa. Ela também não se interessava em participar das festas de família, de casamentos ou de velórios. Por que celebrar a união entre os membros de sua família que mal se encontravam durante todos os outros dias do ano? Por que demonstrar consternação pela perda de alguém com quem ela pouco se relacionava? Mais uma vez, Valéria aponta em ato o engodo que sustenta o laço social. É como se ela dissesse: “Se eles estão felizes (ou tristes), que seja. Isto diz respeito a eles e não a mim, prefiro ficar em casa. Prefiro não fazer nada”. Volta-se a salientar que o interessante no caso de Valéria é ela agir como se dissesse, mas sem dizer. É por se dar em ato que a ironia de Valéria é tão contundente. Ao realizá-la, a paciente rejeita de antemão qualquer possibilidade de lhe ser atribuído o desejo de apresentar novos modelos estáveis para as relações sociais. Para que isso se torne inteligível, basta lembrar que é isso que está em questão quando Miller (1988/1996) afirma que é a partir da posição subjetiva do esquizofrênico que o simbólico não passa de semblante.
É por não operar por meio do semblante, e sim em ato, que Valéria consegue interrogar a verdade do laço social, sem se ver constrangida a propor outros modelos de relações sociais. Nesse sentido, sua ironia “apenas leva a sério o ponto irremediável da suspensão do sentido, fazendo valer a antiga acepção do termo eironeia, que significa interrogação” (RUBIÃO, 2014, p. 205). Logo, a ironia de Valéria não é aquela que faz laço social, ao contrário, ela arrasta o sujeito para o pior, pois de tanto interrogar a verdade de toda articulação discursiva, a paciente termina por se ver privada de todo recurso significativo. Esta, como foi possível perceber, é uma questão central no caso de Valéria. A ausência de sentido que marca a vida da paciente decorre da sua incapacidade de atribuir significação aos pequenos fatos e comportamentos que fazem parte de sua rotina.
Desse modo, Valéria não consegue mais se defender do real pelo simbólico. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 28 Além disso, ao suspender indefinidamente o sentido, a ironia dessa paciente estampa o furo no Outro, deixando entrever “que o campo do Outro, onde os efeitos de significação se organizam, não tem nenhuma existência fora da crença que o sustenta” (TEIXEIRA, 2010, p. 14-15). Isso é o que faz Valéria agir como se dissesse: “Bom, disso eu não participo!” Essas são as duas consequências da ironia do sujeito esquizofrênico: deixá-lo sem defesas contra o real e impedi-lo de entrar no laço social. Conclusão O que se vê no caso de Valéria, seja com a ironia, seja com a apatia, a inércia e o desinteresse, é que se trata mais precisamente de um sujeito sem defesas contra aquilo que o invade. Sua resposta retrata justamente a sua impossibilidade de elaborar uma resposta, se podemos dizer assim.
Esses mesmos elementos, pautados na demissão do Outro, transformam em problema qualquer tentativa de se colocar um plano de tratamento em ação. Pois, como foi falado anteriormente, para que isso seja possível é necessário que a paciente deposite uma crença no tratamento e responda do lugar da paciente – algo que Valéria recusa veementemente. A partir disso, uma nova questão se apresenta no horizonte de uma possível pesquisa: o que pode fazer o psicanalista diante da ironia do esquizofrênico? Observou-se que poucos são os psicanalistas que se dedicam à pesquisa ou à escrita de artigos que tem como assunto a experiência de atendimentos aos pacientes chamados esquizofrênicos fora das instituições. A hipótese que se levanta a partir desse artigo é a de que isso se dá porque o psicanalista, quando se encontra com pacientes como Valéria, tem de lidar com o fracasso iminente. Desse modo, escrever sobre essa experiência, muitas vezes significa escrever sobre o não saber e sobre o fracasso.
Entende-se que esse tipo de escrita deve ser incentivado. Em outras palavras, a escrita de artigos científicos que se originam da experiência clínica não devem se restringir somente àqueles que tem como objeto os casos clínicos em que se obteve sucesso. Afinal, não é pelo fato de que um caso não pode ser tratado, que ele não pode ser pensado. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 29
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