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ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 25/26 Janeiro a Junho de 2015
 
   
 
   
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ENTRE GÊNEROS E SEMBLANTES: ADOLESCÊNCIA E ENCRENCAS CONTEMPORÂNEAS BETWEEN GENDERS AND SEMBLANTS: ADOLESCENCE AND CONTEMPORARY TROUBLE

 

 
     
 

Vinícius Moreira Lima Graduando em Psicologia na UFMG (2015-2019). Bolsista de iniciação científica do PIBIC-CNPq (2016-2018), sob orientação da Profa. Dra. Ângela Vorcaro. Coordenador, juntamente com o Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha, da pesquisa “Psicanálise lacaniana e teoria queer: um debate possível?”, em andamento no Departamento de Psicologia da UFMG vmlima6@gmail.com

 

Resumo: No intuito de pôr a dialogar algumas das contribuições da psicanálise e da teoria queer, abordamos a temática do gênero e da sexualidade a partir da adolescência e do contemporâneo, tendo como norte os trabalhos de Freud, Lacan, Foucault e Butler. Sustentamos centralmente a hipótese de que os adolescentes, hoje, têm colocado sob suspeita a oferta dos semblantes de gênero tradicionais, apontando para a insuficiência dessas narrativas identitárias frente à pulsão. Assim, numa época em que o Outro não esconde sua inconsistência, esses adolescentes têm buscado outros tratamentos para o real do gozo. Suas soluções passam menos pelos arranjos de gênero tradicionais do que pelo que Butler chamaria de encrencas de gênero (gender trouble), na direção de um regime em que a inexistência da relação sexual precipita invenções pela via do singular. Como pode a clínica psicanalítica contribuir frente a esses impasses? Palavras-chave: gênero; gozo; adolescência; semblante; performativo.

Abstract: Here we intend to articulate some of the contributions from psychoanalysis and queer theory, discussing gender and sexuality through adolescence and contemporaneity. The works of Freud, Lacan, Foucault, and Butler were central to our orientation. We sustain the hypothesis that adolescents, nowadays, have been refusing the traditional offers of gender semblants and performances, pointing to the insufficiency of these identitarian narratives to give an account of the drive. Thus, in a time in which the Other does not hide its inconsistency, adolescents are searching other treatments for the real of jouissance. Their solutions do not intend to subscribe to traditional gender arrangements, creating instead what Butler would call gender trouble, towards a regime in which the inexistence of the sexual relation precipitates inventions through singularity. How can the psychoanalytical clinic contribute to these deadlocks? Key-words: gender; jouissance; adolescence; semblant; performative.

Introdução O contemporâneo nos defronta com uma série de mudanças na maneira de lidar com o gênero e nas formas como se apresenta o momento lógico da adolescência. Tanto a psicanálise quanto a teoria queer nos convidam a pensar o estatuto dessas transformações em nosso tempo. Apesar de serem vertentes divergentes em vários aspectos (epistemológicos, políticos etc.), acreditamos ser possível um debate entre elas, no qual, em vez de uma subsumir a outra, ambas possam abrir-se em um espaço de metabolização dessas diferenças. Um movimento em que tensões sejam apontadas sem necessariamente se resolverem em uma síntese terminal.

Afinal, não se trata de perseguir uma teoria unificada da adolescência e do gênero; antes, parece-nos mais interessante pôr a dialogar as contribuições que cada um desses campos pode trazer como enriquecedoras para o presente tema. Nesse sentido, nosso percurso tencionou desenvolver alguns dos pontos levantados na psicanálise e na teoria queer que nos franqueiam uma reflexão sobre a adolescência e os problemas de gênero, de maneira a articular certas leituras de Foucault, Butler, Freud, Lacan e seus comentadores, tendo em mente as questões do nosso tempo sem perder de vista seu desenrolar histórico. Portanto, discutimos primeiro a abordagem historicista de Foucault sobre o dispositivo de sexualidade, seguida dos avanços de Butler sobre o tema pensando o gênero como performativo. Na sequência, levantamos algumas das contribuições da psicanálise em Freud sobre a puberdade e a leitura de Stevens sobre a adolescência, para pensarmos qual é, para o período pubertário, o saldo das mutações históricas pelas quais passamos desde a modernidade, acompanhando a leitura de Safatle. Por fim, quisemos produzir algumas articulações de Butler com Lacan, para que, mesmo preservando as distâncias entre as correntes, pudéssemos alcançar algo de próprio nessa elaboração. Foucault e a história da sexualidade A grande novidade no pensamento de Michel Foucault (1976/2015) foi uma maneira de pensar o poder que não passasse preferencialmente pelas facetas da repressão e da interdição, nem pelas figuras do Estado e da classe dominante.

Na leitura foucaultiana, o poder só existe enquanto um jogo que se passa no nível das relações, compondo, com isso, sua microfísica. O que significa que ele não é algo que se tem, mas, antes, que se exerce, atrelando-se, assim, à noção de conduzir condutas. Isso quer dizer que, dadas certas possibilidades de ação, sujeitos são constrangidos a escolher algumas condutas em detrimento CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 69 de outras. Pensar as relações de poder desse modo, isto é, dando primazia ao lado produtivo e construtivo do poder, implica relançar as maneiras como os objetos poderão aparecer para o saber, uma vez que esses objetos do conhecimento só emergirão positivamente a partir de relações políticas previamente estabelecidas no tecido social (FOUCAULT, 1973/2013, p. 56).

A originalidade de Foucault se deve à sua concepção de que, aos complexos de saber, subjazem relações de poder que farão aparecer certos objetos a serem conhecidos, mas regulados por uma norma subterrânea, um conjunto de enunciados que virão administrar o campo do visível e do dizível. Seguindo nessa esteira, o filósofo francês desenvolve sua analítica do poder, fazendo uma releitura da história da sexualidade que leva em conta os mecanismos políticos que teriam permitido a emergência de saberes como a psicanálise no seio do século XIX, a partir de mutações que se deram nas formas de vida da modernidade. Seu primeiro passo foi suspeitar da dita “hipótese repressiva” (FOUCAULT, 1976/2015, p. 19), segundo a qual as sociedades modernas teriam reprimido sua sexualidade, em favor de uma ética burguesa do trabalho.

No lugar dessa tese clássica, Foucault procurou remontar ao mecanismo da confissão cristã para pensar um processo de “colocação do sexo em discurso” (p. 18), alavancado desde o fim do século XVI. Nesse deslocamento, mais do que repressão, o Ocidente teria, antes, passado a estimular e a incitar, progressivamente, uma proliferação de discursos em torno do sexo, mas regulando os locais, os agentes e os modos pelos quais esses discursos deveriam ser produzidos. Com isso, foi gerada uma falação em torno do sexo que, doravante, instalou-o como enigma inquietante a ser confessado para que os sujeitos pudessem conhecer sua verdade. Para Foucault (1976/2015), a psicanálise teria sido engendrada no seio desse dispositivo de sexualidade, sendo, portanto, devedora das formas de vida modernas, que inseriam o sexo como uma linha de ficção naturalizada ao torná-lo em um princípio oculto e produtor de sentido, que daria aos sujeitos até mesmo sua condição de inteligibilidade. E é desse ponto que parte a discussão de Judith Butler. Butler e as encrencas de gênero (Gender trouble1) 1 O título original de Problemas de gênero (Gender trouble), de J. Butler, dá margem a uma outra tradução, vertendo trouble não apenas como “problema”, que carrega a marca de uma abstração filosófica, mas também como a concretude de uma “encrenca”. Essa alternativa enfatiza sua vertente subversiva: “criar encrenca” com o gênero enquanto forma de engajamento político e de resposta ao mal-estar na civilização. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 70 Em seu texto “Inversões sexuais”, apresentando sua leitura da teoria foucaultiana, Butler (1996/2009) comenta que “a sexualidade opera primariamente investindo corpos com a categoria do sexo, isto é, fabricando corpos como os suportes de um princípio de identidade” (pp. 98-99).

Isso significa que a sexualidade como dispositivo atribui ao construto do sexo a matriz binária para produzirmos e regularmos os corpos dentro das oposições macho-fêmea, homem-mulher, masculino-feminino. Esse processo vem impor uma “ficção de coerência e unidade” (p. 99) a atributos que, de outra maneira, seriam profundamente descontínuos, não relacionados. De maneira que, por uma ilusão de óptica, o sexo parece compor uma matriz identitária, uma origem causal e substancial para a identidade de gênero, que estaria localizada por detrás das performances de gênero. No entanto, Butler (1990/2015) vem colocar essa ideia sob suspeita, por derivar de uma metafísica da substância, que supõe uma essência, uma estabilidade insustentável.

Tudo isso porque houve um rompimento entre dois regimes sociopolíticos: um em que o sexo existia como “um atributo, uma atividade, uma dimensão da vida humana” (BUTLER, 1996/2009, p. 91), e outro mais recente, em que “o sexo foi estabelecido como uma identidade” (p. 91). Em vez de ser um aspecto contingencial ou arbitrário da identidade, o sexo se torna sua condição de inteligibilidade, matriz central para a constituição identitária dos sujeitos modernos. Por causa disso, afirmar que os corpos são de um ou de outro sexo, macho ou fêmea, mesmo podendo parecer uma assertiva neutra e objetiva, já é, na verdade, uma demanda discursiva de que os corpos sejam produzidos dentro da regulação de uma matriz heterossexual binária, que depende da estabilidade oposicional desses dois termos, macho e fêmea, homem e mulher, masculino e feminino. Essa matriz desenha uma teleologia da reprodução em nossas montagens de gênero, como se a sexualidade tivesse de alcançar seu telos reprodutivo, sendo organizada em torno disso. O que, a nosso ver, escamoteia o regime mais propriamente sexual da sexualidade, seus aspectos opacos e descontínuos, associados com o gozo e a pulsão, que não têm como fim a reprodução sexuada.

De maneira que o gênero tenta erigir uma “aparência de substância” (BUTLER, 1990/2015, p. 243, grifos da autora) por trás de suas performances, fazendo crer que há algo ali onde não há nada. Este é o significado do gênero como performativo: uma “repetição estilizada de atos” (p. 242, grifos da autora), gestos, rituais, práticas que citam e, com isso, sustentam uma norma que não existe em si, uma norma sem estatuto ontológico – isto é, a norma heterossexual. Assim, os performativos de gênero con-formam a realidade a partir de atos citacionais e reiterativos, pelos quais o discurso produz de forma derivativa aquilo que CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 71 ele nomeia. Isso acarreta a materialização de práticas que vêm fixar os corpos dentro da matriz binária heterossexual (BUTLER, 1993, p. 2). Tais considerações permitem afirmar que o gênero não é uma escolha voluntariosa por parte dos sujeitos, mas, antes, uma condição para que os sujeitos emerjam dentro de um horizonte de reconhecimento possível (BUTLER, 1993, p. xi).

Afinal, o gênero não é algo que alguém possa vestir ou despir sob sua própria vontade ou arbítrio; diferentemente, ele corresponde às normas regulatórias que condicionam o aparecimento de sujeitos inteligíveis. Assim, não há sujeito que decide seu gênero; antes, o gênero é que é parte do que decide pelo sujeito (BUTLER, 1993, p. x). Por isso, a performatividade consiste em uma “reiteração de normas que precedem, constrangem e excedem o performer e, nesse sentido, não podem ser tidas como fabricadas pela ‘vontade’ ou ‘escolha’ do performer” (BUTLER, 1993, p. 234, tradução nossa2). Pelo contrário, a repetição e reiteração dessas normas promove uma aparência de naturalidade para algo que é um construto histórico, um arranjo contingencial que tenta passar aparência de necessidade e a-historicidade.

Mas esses efeitos performativos do gênero têm sido progressivamente postos em causa; a referida aparência de naturalidade, de bom encontro possível, vem sendo colocada em questão pelos sujeitos no contemporâneo, que têm buscado encrencas com o gênero ao tentarem quebrar as linhas fictícias de coerência e unidade entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais. Seu objetivo é desestabilizar os significados culturais do que significa ser homem ou mulher, dando margem ao aparecimento daquilo do sujeito que não convém a certa tradição normativa; algo que, em psicanálise, talvez possamos localizar como o sexual, avesso a toda regulação ou captação completa pelas normas sociais. A adolescência e as mutações do capitalismo no contemporâneo No intuito de pensar as condições de possibilidade histórico-políticas que franquearam esse processo de “desconstrução de gênero”, recorremos a uma leitura de Safatle (2008) sobre algumas mutações ocorridas no interior do capitalismo ao longo da modernidade. Para o filósofo, as sociedades de produção, que vigoraram na época de uma ética calvinista e ascética do trabalho, promoviam uma renúncia ao gozo a partir de condutas de encorajamento à acumulação de capital. Isso implicava certa fixidez identitária, porque a relação dos sujeitos 2 “reiteration of norms which precede, constrain, and exceed the performer and in that sense cannot be taken as the fabrication of the performer’s ‘will’ or ‘choice’” (BUTLER, 1993, p. 234).

CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 72 ao trabalho era tratada como vocação divina, o que lhes estimulava a sustentar uma matriz de identidade, vinculada ao exercício de uma profissão especializada (SAFATLE, 2008, p. 126). Dessa maneira, os sujeitos gozavam de uma renúncia ao gozo, invadidos por imperativos de continência em suas condutas, em favor da explosão discursiva dos saberes sobre o sexo e da aceitação pública de certas formas de sexualidade em detrimento de outras. No mundo contemporâneo, por sua vez, as sociedades de produção transmutaram-se em sociedades de consumo, que pedem a fluidez identitária para um gozo irrefreado com a plasticidade infinita das mercadorias. Presenciamos a ascensão de uma ética do direito ao gozo – ou mesmo de seu dever –, em que os sujeitos são incitados a se desprenderem das formas estáveis de identidade para melhor se adequarem aos imperativos de consumo. A fixidez identitária se volatiliza, “já que a circulação no mundo do consumo absorve a desconstrução da noção de autenticidade pensada como autoidentidade e exigência de conformação a um ideal” (SAFATLE, 2008, p. 126). Tendo isso em mente, levantamos a hipótese de que essa mutação nos modos de vida franqueada pelo capitalismo pode ter sido um fator político proeminente para o processo histórico de desconstrução dos gêneros. Isso na medida em que essa desconstrução releva de uma crítica aos fundamentos metafísicos da identidade, considerando os arranjos identitários como oriundos de estratégias de poder que tentam fixar sujeitos a posições determinadas no tecido social. No contemporâneo, a crise das identidades se torna mais assinalada no período da adolescência, confrontada a uma época em que as exigências de conformação a um Ideal estão sendo denunciadas como ficções.

Se o gênero não passa de semblante, vigorosamente apontado enquanto tal pelos adolescentes de hoje, acabamos por presenciar uma espécie de hesitação, de descrença em relação aos semblantes tradicionais dos gêneros, na medida em que esses padrões normativos não oferecem nenhuma garantia para o sujeito. É certo que o semblante nunca foi um garante da ordem simbólica; mas ele nem sempre foi posto na berlinda tal como no século XXI. De certa maneira, é precisamente essa insuficiência do semblante em dar conta do real que é denunciada pelos sintomas adolescentes no contemporâneo. Algo que aponta para uma torção na saída do Édipo clássico narrada pela psicanálise.

No Seminário 5, abordando o Édipo em sua “função normativa” (LACAN, 1957-58/1999, p. 170) para a “assunção do próprio sexo pelo sujeito” (p. 171), Lacan assinala que esse complexo é o responsável por “que o homem assuma o tipo viril” e “que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de mulher” (p. 171). Por causa disso, a virilidade e a feminização traduziriam a função CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 73 edipiana de “normalização”, tanto em termos da norma social, quanto em termos de uma normalidade psíquica, isto é, a neurose (p. 167). Para além do seu papel estrutural – que não precisa ser negado –, observamos também a faceta disciplinar que o Édipo, em suas variações históricas, carrega para os sujeitos.

Afinal, no desenlace do complexo, as identificações simbólicas entram em jogo para fundar o Ideal do eu, o lugar de cada um como ser sexuado no campo do Outro. Essa fundação do Ideal, ao tentar garantir que os sujeitos assumam seu sexo, acaba por implicar, no limite, um constrangimento para a manutenção da aparência ilusória de substância da norma heterossexual. Como coloca Lacan (1957-58/1999), o Ideal do eu tem uma função “tipificadora no desejo do sujeito” (p. 302), ligada à “assunção do tipo sexual”, ao orientar as “funções masculinas e femininas” não apenas para levá-las ao ato sexual, mas também “na medida em que comportam toda uma modalidade de relações entre o homem e a mulher” (p. 302).

Esse Ideal é o que vem sendo posto sob suspeita pelos adolescentes no contemporâneo, em favor de montagens de gênero com menos fixidez e mais espaço para a invenção, o que também não é sem embaraços para o sujeito. Psicanálise, puberdade, adolescência Em Freud (1905/1996a), a puberdade é a ocasião de uma reedição do Édipo, que significa uma atualização da interdição do incesto e um consequente desligamento relativo dos pais. Ao chegar à puberdade, uma nova onda sexual surge para o sujeito, a partir da qual é necessário construir o parceiro sexual fora do corpo. Sendo reiterada a barreira do incesto, torna-se patente a eleição de outros objetos sexuais que não os incestuosos. Assim, após o período de latência, o púbere deve refazer sua escolha objetal, em conjunto com o declínio da autoridade dos pais.

Estes, outrora idealizados, são rebaixados em sua consideração pelo sujeito, na medida em que a criança descobre que seus pais não detêm toda a perfeição que lhes fora uma vez atribuída. Em decorrência disso, uma vez que o púbere aprende a reavaliar seus pais, mais atento aos seus lugares na sociedade, ele irá compensar a decepção com o desligamento das figuras parentais. De modo que Freud (1914/1996b) poderá mesmo dizer que tudo “que há de admirável e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai” (p. 249). Portanto, nesse movimento de reavaliar o que foi herdado, parece haver, hoje, uma denúncia da ausência de substância, de garantia, nos arranjos identificatórios tradicionais – CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 74 como naqueles de gênero –, de maneira que os adolescentes não têm assumido os lugares sexuados que lhes são propostos pelo Outro da tradição.

Em virtude das mutações históricas que vimos comentando, acreditamos que as saídas adolescentes se atêm cada vez menos aos modelos clássicos, como consequência do desligamento dos pais em um mundo no qual o Outro tem escancarado sua inconsistência. Dessa forma, temos mudanças nas maneiras como os sujeitos buscarão suas amarrações e organizarão seus semblantes. A colocação em evidência da ausência de fundamento para as posições sexuadas vem sendo respondida muitas vezes com uma espécie de hesitação em relação ao semblante, essa aparência que vem velar um nada.

Essa aparência vem sendo evidenciada enquanto tal, isto é, enquanto mera aparência sem substância, como herdeira de montagens históricas contingenciais que não franqueiam uma garantia para o sujeito. De maneira que, ao reavaliarem os arranjos herdados do Outro, os adolescentes têm procurado encrencas com o gênero como forma de responder ao mal-estar inerente à civilização, pondo de lado as vias normativas tradicionais facilitadas pela cultura e tentando promover suas saídas com soluções que não passam tanto pela tradição, mas que também encontram suas próprias dificuldades. Segundo Lacan (1974/2003b), para que os meninos possam fazer amor com as meninas, é necessário, primeiro, que seus sonhos se despertem. O que, no entanto, nada garante, pois há um fundo de insatisfação que “é para todo o mundo” (p. 557), uma vez que a sexualidade faz furo no real. Assim, é no terreno da fantasia que se constroem as primeiras expectativas de um saber que funcione em relação ao sexo.

Não obstante, o encontro com o real do sexual precipita um buraco para o sujeito, no que, confrontado com um não saber, ele terá de responder a um impossível (STEVENS, 2004), a partir das transformações que se dão nos três registros psíquicos. No Real, ali onde deveria aparecer uma garantia biológica do sexo, irrompe, parasitariamente à maturação corporal, o caráter estrangeiro da pulsão, exigindo a construção do parceiro sexual fora do corpo. No Imaginário, há o estilhaçamento da imagem infantil do corpo, a partir das mudanças hormonais. No Simbólico, a criança terá de se localizar de maneira diferente, não podendo mais ser uma criança entre outras e tendo de lidar com a alteração das insígnias que lhe definiam um lugar no Outro, passando de criança a adolescente. Devido a isso, há o encontro com o impossível do sexo, a impossibilidade de uma resposta pronta e garantida para a sexualidade. De maneira que, conforme Stevens (2004), ao criar uma resposta possível para o impossível do real, a adolescência pode ser vista como CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 75 sintoma da puberdade.

A adolescência é aquilo que o sujeito fará com o ponto de opacidade que lhe concerne, dando a isso um tratamento que tem passado, hoje, pelas encrencas com o gênero. Tal ponto de opacidade, concernente ao gozo, está articulado com o buraco deixado para o ser falante pela inexistência da relação sexual. Entre gêneros e semblantes Tomemos o aforismo de Lacan segundo o qual “não existe relação sexual”. Se, na leitura de Foucault, haveria na modernidade uma proliferação de saberes sobre o sexo, a tese da psicanálise é justamente a oposta: não existe um saber no real sobre o sexo. Ninguém sabe o que fazer com o sexual, embaraço maior do ser falante. De maneira que o homem, por exemplo, é “aquele que se vê macho sem saber o que fazer disto, no que sendo ser falante” (LACAN, 1972-73/2008b, p. 78).

Doravante, não haverá nenhuma razão, proporção ou complementaridade entre os sexos, nada que diga ao sujeito o que fazer no real do encontro com o Outro: cada um se sai como pode. Segundo Lacan (1956-57/1995, p. 60), o grande escândalo da psicanálise seria o de revelar que não existe maturidade adulta, pulsão genital, objeto harmonioso para o ser falante. Afinal, no psiquismo, “não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou ser de fêmea” (LACAN, 1964/2008a, p. 200). Mesmo a referência polar de “atividade-passividade” (tradicionalmente traduzida como macho-fêmea nos arranjos de gênero) só está ali para recobrir, metaforizar “o que resta de insondável na diferença sexual” (p. 188). Diferentemente dessa polaridade, a referência simbólica pela qual os sujeitos podem se situar no campo da sexualidade, no “ideal viril” e no “ideal feminino”, é, na verdade, a mascarada (p. 189). Contrariamente ao mundo animal, em que a exibição que precede a copulação se restringe à via do imaginário, o semblante no mundo humano é veiculado por um discurso (LACAN, 1971/2009, p. 31).

A partir daí, desde que o ser humano é falante, “está ferrado, acabou-se essa coisa perfeita, harmoniosa, da copulação, aliás impossível de situar em qualquer lugar da natureza” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34), pois o significante não é feito para as relações sexuais. Antes, o significante demarca o exílio do ser falante de qualquer esperança num saber sobre o sexo. Por causa disso, “o que se deve fazer, como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro” (LACAN, 1964/2008a, p. 200). CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 76 Nessa direção, se “as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, do que se coloca no campo do Outro” (LACAN, 1964/2008a, p. 200), o gênero parece ser uma tentativa de constituir um saber possível sobre o impossível do sexo, na medida em que, passando pelo campo do Outro, ele tenta ensinar aos sujeitos o que se deve fazer em sendo homem ou mulher. Algo que inevitavelmente fracassa no real do encontro com o Outro.

Se, no ser falante, a relação entre os sexos não se dá, “é somente a partir daí que se pode enunciar o que vem, a essa relação, em suplência” (LACAN, 1972-73/2008b, p. 72). Uma dessas suplências, acreditamos, por meio da linguagem, é justamente o gênero e seus arranjos. De modo que o gênero responde à impossibilidade da relação sexual, tentando fazê-la existir por meio das performances e dos semblantes tradicionais, que, num regime de heterossexualidade normativa, veiculam uma aparência ilusória de complementaridade, de naturalidade, de um encontro pretensamente garantido pelo Outro, escamoteando a angústia de se haver com o real do gozo. Assim, o gênero parece utilizar o imaginário dos semblantes tradicionais para tamponar o buraco no real, ao simular um saber sobre o sexual, tentando anestesiar, desconhecer a ausência estrutural de saber sobre o sexo. Com isso em mente, podemos avançar nossa hipótese de que o gênero faz semblante de relação sexual, no que seus arranjos tradicionais fornecem uma ilusão de completude, consistência e complementaridade, pela pretensa existência de um objeto natural e adequado ao desejo, em um encontro que seria sem falhas, sem questões. Entretanto, no contemporâneo, esse semblante está posto em causa, na medida em que o caráter barrado, inconsistente do Outro está hoje mais evidente.

Escancara-se que não há Outro do Outro, não há garantia para o desejo, cuja consequência é a crescente suspeita, por parte dos adolescentes, em relação aos semblantes de gênero tradicionais. Sabemos que, como narrativa identitária, o gênero não dá conta de esgotar a pulsão. As narrativas são insuficientes, como também reconhece Butler (2005/2015): “O relato que faço de mim mesma é parcial, assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva. [...] Há algo em mim e de mim do qual não posso dar um relato” (p. 55), pois existem, no sujeito, “um excesso e uma opacidade que estão fora das categorias da identidade” (p. 61), articulados com o pulsional, que sinaliza a impotência de toda determinação identitária frente ao gozo. Frente a isso, cada um precisa elaborar sua própria forma de lidar com a inexistência da cópula: o real sem sentido de gozar como Um-sozinho, que não se liga satisfatoriamente ao Outro sexual. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 77 Em Lacan (1974/2003b), o princípio da iniciação sexual é que “o véu levantado não mostre nada” (p. 558), isto é, que, no encontro com o real da não relação, quando os semblantes de gênero falham, quando o saber sobre o sexo é posto à prova e não garante um encontro harmônico, o sujeito terá de se haver com a angústia da sua sexuação, buscando uma resposta para além dos arranjos identitários cristalizados pela cultura. Por isso, Lacan afirmou que “não há iniciação” (LACAN, 1973-74, lição de 18 de dezembro de 1973), o que seria a “mesma coisa de dizer que não há relação sexual”, ainda que a iniciação não seja idêntica à relação sexual. O fio comum entre essas duas inexistências aparece na medida em que, em ambas, o sujeito é convocado a dar uma resposta singular para o furo a partir do encontro com um não saber.

Assim, a inexistência da iniciação quer dizer que “há velamento do sentido” (LACAN, 1973-74, lição de 8 de janeiro de 1974); o sentido do gozo sempre escapa. Se o sentido é aparência, o sentido do sentido é o enigma, de modo que “o escape do tonel deve ser sempre reaberto” (LACAN, 1973/2003a, p. 554). O sexual é da ordem do enigmático que insiste, mesmo quando a mensagem é decifrada. De modo que o sentido, isso desliza. É por isso que Lacan compara as nuptiae, as núpcias do casamento, com as nubes, as nuvens, naquilo que elas velam as luzes, ocultam toda iluminação no imaginário, pois “não há sentido senão disso que se opercula, se posso dizer, de uma nuvem” (LACAN, 1973-74, lição de 8 de janeiro de 1974).

O opérculo, que é, em biologia, algo que tapa um orifício, tampona um buraco, diz do aspecto fugidio, enganoso, do sentido do gozo. É a isso que serve a metáfora lacaniana das nuvens: o velamento do insuportável da luz, algo do semblante que precisa estar presente para se sustentarem os ritos do casamento. Esse encontro não é garantido, porque, no real, só podemos supor, fazer suposições, o que nunca deixa de ser suspeito (LACAN, 1973-74, lição de 12 de fevereiro de 1974). De modo que aí sempre restará um buraco: “Não há nada atrás, nisso em que é preciso se sustentar, no suporte do semblante” (LACAN, 1973-74, lição de 8 de janeiro de 1974). Se o semblante oculta um nada, é porque o sentido está aí não para refletir o sexual, mas para lhe fazer suplência: o sentido se substitui justamente no sexual que falta, isto é, no lugar do saber natural e harmônico que inscreveria a relação entre os sexos (LACAN, 1973-74, lição de 11 de junho de 1974). Uma vez fraturados os semblantes de gênero da tradição, a adolescência no contemporâneo se defronta, hoje de forma mais marcada, com a ausência de garantias implicada na assunção de qualquer posição sexuada. As encrencas de gênero fazem CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 78 objeção à ficcionalidade desses arranjos, apontando o buraco por trás dos semblantes, o vazio por trás das performances. Nessa direção, a crescente quantidade de adolescentes encrencados com o gênero, por assim dizer, apresenta consequências para a clínica psicanalítica. Se, por um lado, é importante denunciar as urgências do Ideal como sendo da ordem do impossível, por exemplo, nas suspeitas frente aos arranjos compulsórios da heterossexualidade normativa, por outro lado, também é preciso saber-fazer com o semblante: não se trata de simplesmente descartá-lo, uma vez apontado o buraco que ele vela. Antes, como formula Butler (1992), é preciso “trabalhar a armadilha na qual inevitavelmente se está” (p. 84, tradução nossa3).

Da perspectiva da clínica psicanalítica, sabemos que o gênero não garante a assunção de uma posição sexuada; para isso, é preciso colocar algo de si. Se os adolescentes no contemporâneo denunciam, com efeito, a ausência de garantia do Outro, fazendo objeção à tradição, ainda assim, somente apontar a castração no Outro não é suficiente para tratar o sofrimento subjetivo. Nesses casos, a oferta de uma psicanálise é a possibilidade de que um sujeito possa se servir dos semblantes de gênero sem tornar-se servo de seu ideal, sem servir à força avassaladora dos ideais de gênero. Isso implica operar com uma crença fraturada nos semblantes herdados da tradição, uma vez que a posição sexuada não é redutível ao gênero. Num percurso analítico, trata-se de se haver com a estranheza de gozar como ser sexuado mesmo suspeitando do gênero, uma vez que o gozo não subscreve aos ideais. Acessar essa dimensão pressupõe o consentimento com a oferta sem garantias do Outro, com uma promessa que depende da crença subjetiva no semblante para operar. Evidentemente, não se trata de lamentar o dito “declínio do Pai”, sonhando com o retorno a um passado nostálgico em que o simbólico e suas identificações de gênero seriam pretensamente mais consistentes.

Pelo contrário, é preciso pensar, no caso a caso, soluções para que cada sujeito possa operar com os semblantes a seu modo, sabendo fazer alguma coisa com o peso do ideal, sem abandonar de todo a crença no Outro. Considerações finais Assim, se os jovens no contemporâneo tendem a suspeitar dessas narrativas identitárias tradicionais, de suas performances e seus semblantes como insuficientes para dar conta do gozo, é preciso, numa análise, abrir espaço para a invenção de cada ser falante que 3 “to work the trap that one is inevitably in” (BUTLER, 1992, p. 84). CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 79 possa dar um destino sexuado para seu corpo. Se a posição sexuada não coincide com o gênero, então, mesmo denunciando o caráter histórico e contingente dos gêneros, o sujeito ainda tem de fazer alguma coisa para aparelhar seu corpo para o gozo.

Ainda é preciso colocar algo de si para lidar com a faceta sem sentido da satisfação pulsional, tarefa que não exige uma adesão incondicional ao Ideal da tradição, mas pressupõe um saber-fazer aí (savoir-y-faire) com a inconsistência inerente à linguagem. Desse modo, mesmo às voltas com o furo que assombra a tradição, esses sujeitos adolescentes podem se beneficiar de uma análise para se haver com aquilo do seu gozo que, para além do gênero, não se enlaça com o Outro, com a dimensão do gozo na qual o Outro não mais responde ao apelo do sujeito, esbarrando nos limites do significante. Pois “todos inventamos um troço para tapar o buraco no real. Aí onde não há relação sexual, isso faz troumatisme” (LACAN, 1973-74, lição de 19 de fevereiro de 1974). Troumatisme, esse trauma-buraco ao qual cada um é convocado a inventar sua própria resposta, na ausência de um Fiador Supremo que lhe forneça sua garantia.

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